• Nenhum resultado encontrado

Relação com a materialidade

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 115-119)

4.2 Ciência e psicologia

5.1.1 Relação com a materialidade

A relação com a materialidade que nos cerca é a primeira condição de existência de alguém. Todos nascemos inseridos em uma dada sociedade, num certo momento histórico, incluídos num certo conjunto de relações sociais que nos remetem, necessariamente, aos objetos e às condições materiais que nos cercam. Por exemplo, nascer na França, em termos de estrutura produtiva, econômica, social, cultural é muito diferente de nascer no Brasil; ou ainda, viver em uma favela, sob condições socioeconômicas precárias ou viver em condições socioeconômicas de classe média-alta são situações bastante diferenciadas e oferecem subtratos diferentes para o processo de subjetivação; assim como viver no início do século XX implica em outra materialidade do que a que do século XVIII. São possibilidades materiais, antropológicas e sociológicas diferentes.

Essas condições materiais, em um primeiro momento, não são por nós escolhidas, nascemos no meio delas. Mas, no entanto, devemos nos apropriar delas, já que essas questões objetivas são aspectos definidores de nossa subjetividade. Os sujeitos apropriam-se dessas condições de uma maneira singular, particular. A maneira de processar essa subjetivação tem a ver com a história individual, com a sua rede de mediações sociológicas, com o projeto de cada um. É exatamente essa apropriação singular que deve ser esclarecida pela psicanálise existencial, na busca de encontrar o ser do sujeito. Portanto, o que deve ser esclarecido é a dialética entre a objetividade e a subjetividade. Declara Sartre, em seu Questão de método: “o acaso não existe, ou, pelo menos, não como se acredita: a criança torna-se esta ou aquela porque vive o universal como particular” (SARTRE, 1960, p. 45).

Cada sujeito é um singular/universal, o que quer dizer que é um indivíduo idiossincrático, mas também é o fruto de seu tempo, das relações sociais que o engendram, é um universal. O existencialista tece aqui críticas contra o marxismo, acusando-o de reduzir a análise do sujeito às infraestruturas da sociedade. Dizer que Flaubert é um escritor pequeno- burguês ou que Genet é um escritor contra os valores burgueses são fatos incontestáveis, mas isolados não ajudam a compreender quem foram efetivamente Flaubert e Genet, nem como eles chegaram a elaborar suas obras. O existencialismo pretende, assim, “sem ser infiel às teses marxistas, encontrar as mediações que permitem engendrar o concreto singular, a vida, a luta real e datada, a pessoa a partir das contradições gerais [...]” da família, do local onde vive, enfim, da sociedade (SARTRE, 1960, p. 44).

Sendo assim, o subjetivo é apenas um momento do processo objetivo. A subjetividade não é uma entidade em si, uma estrutura mental; ela é um processo dialético de apropriação da objetividade, de interiorização da exterioridade, portanto só existe enquanto subjetividade objetivada. Quer dizer, o sujeito encontra-se inserido em condições materiais, antropológicas, sociológicas, existenciais concretas, e é no processo de apropriação dessas condições que constitui sua subjetividade, que imediatamente se objetiva, através de seus atos (sua práxis), seus pensamentos, suas emoções.

Daí que para compreender o ser de um sujeito devemos, em primeiro lugar, verificar o contexto material, antropológico onde ele se encontra e, para tanto, investigar a função dos objetos em seu ser; pois o homem está mediado pelas coisas na exata medida em que as coisas estão mediadas pelo homem. Ou seja, a materialidade que o cerca, os objetos do seu mundo são fundamentais para ajudarem a definir seu ser, da mesma forma que os objetos só adquirem sentido porque o sujeito se relaciona com eles. O homem, por exemplo, que viveu muito tempo em situação de escassez material ou aquele que passa por um processo de falência financeira fica, em geral, obsecado pelo dinheiro; aquele que está apaixonado não pode sentir o perfume da pessoa amada que fica afetado, ou não pode ver sua foto que o coração dispara, e assim por diante. Esse processo é, portanto, psicofísico, o ser do sujeito é imbricado do valor dos objetos para ele.

Para entender melhor a mediação dos objetos para o sujeito, mais especificamente com relação à sua dinâmica psicológica, utilizar-se-á um exemplo que, apesar de longo, nos ajudará a elucidar a nossa temática, retirado do livro de Van Den Berg, um psiquiatra fenomenológico:

É inverno. A noite está caindo e eu me levanto para acender a luz. Olhando para fora vejo que começou a nevar. Tudo está coberto pela neve brilhante, que está caindo silenciosamente do céu encoberto. [...] Esfrego as mãos e aguardo a noite com satisfação, pois, faz alguns dias, telefonei a um amigo convidando-o a vir ter comigo esta noite. Dentro de uma hora estará batendo à minha porta. [...] Ontem comprei uma boa garrafa de vinho, que coloquei à distância apropriada do fogo. [...] Meia hora mais tarde toca o telefone. É o meu amigo, a dizer que não poderá vir. Trocamos algumas palavras e marcamos novo encontro para outro dia.. Quando torno a colocar o fone no gancho, o silêncio do meu quarto ficou mais profundo. As próximas horas se parecem mais longas e mais vazias. [...] Dentro de alguns momentos estou absorto num livro. O tempo passa lentamente. Ao levantar os olhos por um momento, para refletir sobre um trecho pouco claro, a garrafa, perto do fogo, chama a minha atenção. Percebo mais uma vez que o meu amigo não virá e volto à minha leitura. (VAN DEN BERG, 1981, p. 36).

A expectativa em relação à visita do amigo, a solidão momentânea, todas essas experiências são mediadas pelos objetos, que tem função sobre o ser do sujeito. Enquanto espera o amigo as condições do tempo, os objetos, os móveis, vão desenhando um dado ambiente, que oferece, pouco a pouco, os contornos da atmosfera em que o personagem é lançado: quando fica sabendo que o amigo não vem, o quarto ganha outro contorno afetivo, que tem função em nosso personagem − ele fica triste −; antes tudo era mais brilhante, mais acolhedor, depois do telefonema tudo passa a ser cinzento, frio. Essa afetação só ocorre porque já no momento da combinação da visita havia se armado uma atmosfera de expectativa em relação ao encontro com seu amigo. Quer dizer, eventos objetivos, mediados pela materialidade, foram desencadeando a atmosfera que envolveu nosso personagem: um telefone que foi usado para falar com o amigo, a compra de uma garrafa de vinho, a arrumação da casa para recebê-lo, um ambiente acolhedor com o fogo crepitando na lareira, etc. Quando o amigo avisa de seu não comparecimento, o sujeito já está dentro daquele ambiente que tem função no seu ser, daí sua afetação pela sua ausência. Essa afetação é mediada pela mesma materialidade: telefone, ambiente da casa, livro sendo lido, etc. Dessa forma, basta olhar para a garrafa de vinho que lhe aparece a ausência do amigo. A garrafa de vinho é a sua ausência; ela não é uma representação, a ausência é uma objetividade da garrafa.

Para compreender melhor devemos utilizar o conceito de situação. Um objeto, no caso a garrafa, sempre se encontra em uma dada situação: uma garrafa em um supermercado é um objeto para ser comprado, parece até que ela fala “me compre, me compre”; para qualquer pessoa que vá ao supermercado ela aparece como uma garrafa para ser comprada. No entanto, para aquela pessoa que pensa em dar uma festa ou receber um amigo a garrafa ganha um poder de atração maior do que para aquele que não bebe ou que não está nesse contexto de comemoração. Assim, a garrafa de Van Den Berg é objetivamente a ausência do amigo, pois ela está cuidadosamente colocada em cima da lareira, comprada exatamente para recebê-lo. Se fosse um grupo de pessoas que estivesse esperando o amigo, para todo o grupo a garrafa quando observada seria a ausência do amigo. No entanto, para alguém de fora daquela situação, que entrasse na casa de Van Den Berg naquele momento, ela poderia ser simplesmente uma garrafa a ser bebida. Portanto, a situação se faz objetiva na medida em que é social, sociológica e material. A função dos objetos sobre o ser dos sujeitos depende, portanto, do contexto em que se inscrevem, mas uma vez constituída essa relação de função se impõe objetivamente. Não é algo que está na “cabeça de cada um”, mas nas propriedades objetivas (materiais, antropológicas, sociológicas) dos objetos.

Um psicólogo empírico diria que essas afirmações são pura poesia, que o personagem descrito estaria contaminando sua percepção do objeto ao “projetar” nele a sua decepção ou desilusão. Pergunta Van Den Berg: “se fosse minha projeção que eu estava vendo, não teria eu observado minha solidão mais distintamente, menos adulterada, com mais realidade e mais diretamente, se eu tivesse perguntado como me sentia, não à garrafa, mas a mim mesmo?” (VAN DEN BERG, 1981, p. 37). Sabemos que a resposta é não. Percebemos a dimensão da decepção experimentada quando olhamos para aquela garrafa; ela nos incomoda. Quando perguntamos sobre nós mesmos, a resposta está no mundo que nos cerca, afirma Van Den Berg. “Cada esforço que faço para concentrar-me no meu puro íntimo resulta na tomada de consciência do meu ambiente: o quarto, o fogo, a garrafa e, dentro de tudo isso, o meu amigo ausente” (VAN DEN BERG, 1981, p. 37). Quer dizer que na busca da definição de “quem somos” não chegaremos a lugar algum se olharmos para “dentro de nós mesmos”; devemos, sim, olhar para a realidade circundante, para o significado que

atribuímos às coisas, para o nosso conjunto de relações de funções que os objetos têm sobre nós.

Sendo assim, as coisas adquirem significado conforme a situação em que se está inserido e implicam na experimentação psicofísica que dela se tem.

No documento Sartre e a psicologia clínica (páginas 115-119)