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A gestão do sistema defensivo e os combatentes (recrutados e voluntários)

No documento Lisboa Medieval (páginas 102-105)

Marco Oliveira Borges

5. A gestão do sistema defensivo e os combatentes (recrutados e voluntários)

Estando identificados vários locais e possíveis estruturas entre a costa de Sintra e as imediações da cidade de Lisboa que dariam forma ao sistema defensivo que temos vindo a referir, como seria feita a sua gestão? Dependia exclusivamente do poder central? Era feita a nível local? A nível distrital? Quais os meios humanos mobilizados?

Embora logo após os ataques nórdicos de 844 o poder central tenha ordenado o reforço da defesa marítima ao longo da costa atlântica e mediterrânica, a arquitectura militar do Garb al-Ândalus também foi dirigida por rebeldes e dinastias regionais184. Para além da mão-de-obra local e das forças enviadas pelo

poder central, sabe-se também que vinham voluntários de outras partes do al- -Ândalus a favor da jihad, devendo também ter ocupado locais costeiros estratégicos e que se revelavam mais sensíveis à chegada inimiga185.

181 Cata-que-farás também aparece na Évora medieval e em Portel (ibidem, pp. 193-194, (n. 39)). 182 Ibidem, p. 196; REI, António – ob. cit., p. 35; PIRES, Hélio – ob. cit., p. 108.

183 Adaptado de MARQUES, A. H. de Oliveira e DIAS, João José Alves – ob. cit., p. 47. 184 CORREIA, Fernando Branco – “Fortificações de iniciativa omíada”, pp. 74-75.

185 Idem – “A acção do poder político”, pp. 15, 21 e 24; idem – “Fortificações de iniciativa omíada”, p. 75.

Fig. 11 – Complexo defensivo no Baixo Vale do Tejo durante

Ao mesmo tempo que o poder central (Córdova) tomava medidas defensivas, é possível que se deixasse aos governadores dos distritos (kuwar) alguma margem de manobra nas lides da defesa costeira186. Porém, parece que algumas zonas costeiras

mais sensíveis, como era o caso das que estavam situadas perto de cabos ou promontórios (taraf, pl. atraf), chegaram a ser administradas independentemente dos distritos e dos seus governadores187. Este tipo de autonomia administrativa

comprova-se para o caso da Península de Setúbal, que chegou a ser considerada um distrito costeiro autónomo da jurisdição dos kuwar de Lisboa e Alcácer do Sal, pelo menos durante o califado omíada, estando dependente de um governador responsável pela coordenação da defesa e vigilância marítima e terrestre188.

Não é difícil imaginar, porém, que as próprias rebeliões do mundo islâmico devam ter condicionado – ao longo dos tempos – a organização do sistema de defesa costeira e até mesmo provocado a sua paralisação. Note-se que esta área costeira, estando nas proximidades de Lisboa (cidade que viveu várias rebeliões contra o poder central e que, por vezes, se alastravam a outras cidades do al-Ândalus), parece ter estado em permanente insegurança. Na verdade, a área territorial entre Lisboa e Santarém gozou de uma certa autonomia face aos centros de decisão política do al-Ândalus até ao século XI, dando assim origem a uma zona de refúgio propícia a revoltas e que ficou marcada pelo aparecimento de dinastias locais autónomas189. Em 886, por exemplo, o wali de Lisboa revoltou-se contra Córdova.

Como consequência, e para repor a ordem, o poder central enviou um exército por terra e uma frota de guerra (saída de Sevilha) a al-Ushbuna190.

186 Idem – “A acção do poder político”, p. 15; idem – “Fortificações de iniciativa omíada”, p. 75. 187 Poderia ter sido este, em certo momento, o caso de Sintra, daí a importância dada pelos geógrafos

muçulmanos a esta área situada na ponta extrema da Europa, o cabo da Roca, exercendo um papel de vigilância importante (PICARD, Christophe – Le Portugal musulman, p. 62).

188 PICARD, Christophe; FERNANDES, Isabel Cristina Ferreira – ob. cit., pp. 75-77; PICARD,

Christophe – Le Portugal musulman, pp. 62 e 163; idem – “Les Ribats au Portugal à l’époque musulmane”, pp. 204-205; CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Sesimbra, sobre a Costa do Mar”. in Arquipélago. História. Revista da Universidade dos Açores. Ponta Delgada. 2ª sér., VII (2003), p. 248; MENDES, Francisco José dos Santos – O Nascimento da Margem Sul. Paróquias, Concelhos e Comendas (1147-1385). Lisboa: Edições Colibri, 2011, p. 27.

189 COELHO, Catarina – “A ocupação islâmica do Castelo dos Mouros (Sintra)”, p. 208; idem –

“O Castelo dos Mouros (Sintra)”, p. 394. Uma revolta iniciada em Lisboa, em 808-809, teve repercussões a toda a faixa ocidental entre Coimbra e Beja. Entre as décadas de 860 e 880 o Ocidente da Península foi agitado por quatro rebeliões sucessivas, todas elas chefiadas por Abd al-Rahman Ibn Marwan Ibn Yunus, governador da marca de Mérida, que chegou a conquistar e saquear Lisboa após uma dessas rebeliões iniciada em 876 (MARQUES, A. H. de Oliveira – ob. cit., pp. 124-126). Em 889-890, deu-se nova revolta em Lisboa e nos territórios a Norte, “o que mostra que o controlo por parte dos Marwânidas conhecia eclipses e tomadas de poder por outros magnates, ainda pouco conhecidos” (ibidem, pp. 124-126).

190 DOMINGUES, José D. Garcia – História Luso-Árabe. Episódios e Figuras Meridionais. Lisboa: Pró-

-Domo, 1945, p. 101; idem – O Nacionalismo Luso-Árabe e a sua Contribuição para a Constituição de Portugal. Sep. do XXIII Congresso Luso-Espanhol (Coimbra, 1-5 de Junho de 1956). Coimbra. T. VIII, 1957, p. 9 (n. 6).

Conclusão

Estamos perante uma área geográfica fulcral, bastante exposta ao perigo, quer cristão, nórdico ou até mesmo interno, e que ganha destaque não só por ter vários locais de desembarque capazes de oferecer resguardo e aguada à navegação, mas também por ter alvos importantes e por estar na rota das navegações para a cidade de Lisboa. É neste sentido que o sistema defensivo que ganhava forma a partir de Sintra tem de ser encarado como um todo, abrangendo o actual litoral de Cascais, Oeiras e a restante área costeira até Lisboa, numa tentativa de proteger possíveis locais de desembarque e de difundir sinais visuais que permitissem alertar sucessivamente os vários postos ao longo da costa para a chegada de navios inimigos. Contudo, o funcionamento do sistema defensivo desta área também teria sido condicionado por diversos factores e afectado pelas próprias cisões e conjunturas do mundo islâmico, situação que tentaremos compreender melhor futuramente.

Em todo o caso, subsiste uma lógica de continuidade de ocupação de espaços estratégicos, de aproveitamento de estruturas ou de materiais pétreos (comprovada no caso do Alto da Vigia) com o decorrer dos séculos. O recurso à toponímia local permite perceber que ao longo da costa e um pouco mais para o interior existiram estruturas de carácter defensivo e de vigilância, não esquecendo alguns possíveis povoados, embora isso não signifique que todos funcionaram ou foram ocupados ao mesmo tempo. Para além disso, importa não esquecer que alguns topónimos têm uma etimologia bastante duvidosa e não se sabe ao certo se tiveram derivação de um contexto militar islâmico. Diversos topónimos necessitam de ser investigados do ponto de vista arqueológico.

Finalizando, há que tentar agora alargar a área geográfica e compreender melhor o sistema defensivo em torno da cidade de Lisboa (a Leste, a Sul e a Norte), sendo que as várias questões acima colocadas, e que não foram totalmente respondidas, darão azo a novas explorações e hipóteses. Para além disso, de futuro há que focar de forma mais aprofundada os ataques dos Majus a al-Ushbuna. Espera-se, igualmente, que as investigações em curso possam fornecer pistas a outros investigadores para que se iniciem novos trabalhos ou se aprofundem os que estão em andamento.

árabes do “maravilhoso”

No documento Lisboa Medieval (páginas 102-105)