• Nenhum resultado encontrado

Messianismo a Ocidente

No documento Lisboa Medieval (páginas 132-134)

Para compreender esta conjuntura conturbada, que levou à queda de Lisboa, importa rever a carreira de Ahmad b. Qasi, o qual, à semelhança de Ibn Tumart entre os almóadas, reclamou uma condição de mahdi. Aviltado na sua dimensão política pelos historiadores do período almoáda, que não lhe perdoaram a concorrência ao seu messias, e ressuscitado na atualidade sob a égide do orgulho nacional, escasseiam as críticas equilibradas quando se fala daquele que suscitou a chamada “revolta dos muridinos”. O al-Hullat al-Siyyara, de Ibn al-Abbar, e o

Kitab A’mal al-A’lam, de Ibn al-Khatib, fornecem as informações mais relevantes8.

Ibn Qasi tinha origem muladi, ou seja, contava com antepassados cristãos, o seu local de nascimento era Silves e terá sido o primeiro a sublevar-se no al-Andalus no fim da dinastia almorávida. Hedonista durante a juventude, ao tomar contacto com os ensinamentos do mestre sufi al-Ghazali, vendeu a fortuna, distribuiu-a pelos pobres e lançou-se no ascetismo ostensivo, num percurso pessoal de extremo a extremo. Progressivamente, foi construindo um ideário de revolta associado ao sufismo. A ligação ao movimento dos muridinos de personagens da elite militar, administrativa e intelectual do Gharb, como Sidray b. Wazir, de Beja, e Ibn al- -Mundhir, de Silves, permitiu-lhe alargar influência. No desafio ao poder instituído, Ibn Qasi procurou legitimar-se pela religião. Uma fonte almóada, Abd al-Wahid al-Marrakushi, diz que recorria a ardis, prestidigitação e oratória com o objetivo de ganhar o coração do povo9. Ibn al-Abbar, por sua vez, acusa-o de afirmar-se

detentor de poderes sobrenaturais. A propaganda do mahdi do Gharb garantia que tinha feito a peregrinação a Meca numa só noite e comunicava com o Além10.

Pelo potencial de desestabilização social e política, o sufismo era alvo da repressão almorávida. A obra de al-Ghazali foi publicamente queimada em Córdova e os seus seguidores perseguidos e executados.

O investigador Abdallah Khawli revela uma carta do místico sufi Ibn al-Arif, de Almeria, a Ibn Qasi, redigida entre 1131 e 1135. Aconselha-o vivamente a rejeitar este caminho: “A difamação do poder político e a espera de um mahdi para a reforma é uma ilusão que ninguém razoável pode admitir; apenas um homem vulnerável

8 IBN AL-ABBAR – al-Hullat al-Siyyara. Trad. parcial por Martim VELHO – “A Vida de Ibn Cássi

Narrada por Ibn al-Abbar”. in Trabalhos Apresentados no Simpósio Internacional da Reconquista Cristã da Península Ibérica. Évora, 1966, pp. 101-105; e por David LOPES – “Os árabes nas obras de Alexandre Herculano”. Separata do Boletim da Segunda Classe, III e IV. Academia das Sciencias de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1911, pp. 100-109. IBN AL-KHATIB – Kitab A’mal al-A’lam. Trad. parcial por David LOPES – “Os árabes nas obras de Alexandre Herculano”, pp. 110-116.

9 ABD AL-WAHID AL-MARRAKUSHI – Kitab al-Mu’yb fi Taljis Ajbar al-Magrib. Trad. por Ambrosio

HUICI MIRANDA – Colección de Crónicas Árabes de la Reconquista, IV. Tetuán: Editora Marroquí, 1955, p. 172.

pode acreditar em tal”. Mas a estratégia de Ibn Qasi, ao insistir numa linha religiosa interdita, estava longe de desajustada. Como argumenta Khawli, denotava um conhecimento profundo da realidade do Gharb, região sem classe urbana de juízes e em cujo meio rural as tendências místicas se encontravam difundidas11.

Os sábios do Islão anunciavam a vinda de um messias a partir do ano 500 da Hégira (2 de setembro de 1106 a 22 de agosto de 1107), facto aproveitado por Ibn Qasi. A figura do mahdi consubstanciava a resposta a uma necessidade de voz política das camadas mais desfavorecidas. Os riscos teriam, pois, sido cruzados com o potencial de benefícios. Ibn Qasi estava consciente da importância da propaganda religiosa na ascensão de uma dinastia, mais-valia, de resto, sublinhada por Ibn Khaldun. Porém, ao contrário do mahdi dos almóadas, carecia de um grupo unido ao seu redor pelo sentimento clânico (asabiyya). O próprio historiador tunisino avisa: a propaganda religiosa constitui um poder adicional face ao simples sentimento de grupo, mas não pode materializar-se nele12. Ou seja, sem a asabiyya, a dinastia corre o risco de

morrer à nascença, como os acontecimentos viriam a provar de forma tangível. A revolta dos muridinos começou com a conquista do castelo de Mértola, estava Ibn Qasi na clandestinidade devido a uma tentativa falhada, anos antes, para tomar o castelo de Monte Agudo. Desta feita, enviou uma expedição liderada por Ibn al-Qabila para conquistar o castelo (hisn) que controlava a região de Mértola, nas palavras de Ibn al-Abbar, um dos mais fortes do ocidente do al-Andalus. A 14 de agosto de 114413, a

fortaleza foi tomada e, a 1 de setembro14, o novo senhor tomou posse dos seus domínios.

Ibn al-Abbar não tem dúvidas: Ibn Qasi aproveitou-se do enfraquecimento político no território para lograr esta conquista15. Pouco depois, escreveu às cidades do Gharb para

se rebelarem contra o poder almorávida. Ibn al-Khatib diz que teve muitos seguidores e que “toda a gente má se lhe veio juntar”, fidelidade subsidiada por “grandes liberalidades em dinheiro”16. Évora e Silves foram as primeiras cidades a reconhecê-lo. Em setembro,

os seus líderes deslocaram-se a Mértola para prestar homenagem ao novo homem forte do Gharb, que lhes confirmou as possessões, qual prerrogativa de monarca. “Naquele tempo, ismaelitas insurgiram-se contra moabitas, isto é, andaluzes contra árabes, e expulsaram-nos dos seus castelos e cidades”, eis as palavras do Chronicon Lusitanum para relatar o início da rebelião contra o regime almorávida no al-Andalus (fitna).17

11 KHAWLI, Abdallah – “Le Garb al-Andalus à l’Époque des Secondes Taifas (539-552/1144-1157)”.

in Arqueologia Medieval 7 (2001), p. 26.

12 IBN KHALDUN – Muqaddimah. Trad. por Franz ROSENTHAL – An Introduction to History.

Princeton: Princeton University Press, 2005, pp. 126-127.

13 Al-Hullat al-Siyyara. Trad. por David LOPES, p. 101. 14 Kitab A’mal al-A’lam, p. 115.

15 Al-Hullat al-Siyyara. Trad. por Martim VELHO, p. 103. 16 Al-Hullat al-Siyyara, Trad. por David LOPES, p. 115. 17 Chronicon Lusitanum, p. 425.

No documento Lisboa Medieval (páginas 132-134)