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Os domínios de São Vicente e de Chelas

No documento Lisboa Medieval (páginas 159-164)

André de Oliveira Leitão

2. Os domínios de São Vicente e de Chelas

Para além da dissertação de Carlos Guardado da Silva, deve-se ainda destacar o estudo de Isabel Branquinho sobre a composição patrimonial durante o priorado de D. Paio Gonçalves15. De facto, devem-se a São Vicente – o mais antigo dos cenóbios

fundados na periferia de Lisboa – os primeiros testemunhos que possuímos sobre a ocupação do espaço rural de Lisboa. Datam da década de 1170 (com um único caso isolado), sendo, no entanto, a partir da década de 1180 que se iniciam, de modo mais sistemático, as compras, doações e escambos entre esta unidade monástica e particulares na região em estudo. No caso de São Vicente, a maior parte das aquisições conservadas ficou a dever-se a compras, sobretudo de terras de vinha, nas regiões de Alvalade16 e periferia (Lumiar, Charneca, Concha, Telheiras), bem

12 Cf. VILAR, Hermínia Vasconcelos – “Estruturas e protagonistas religiosos na historiografia

medieval”. Lusitania Sacra. Lisboa. 2.ª Série, n.º 21 (2009), pp. 125-151. ISSN: 0076-1508.

13 Cf. SILVA, Carlos Guardado – O Mosteiro de São Vicente de Fora. A Comunidade Regrante e o

Património Rural (Séculos XII-XIII). Lisboa: Edições Colibri, 2008. ISBN: 972-772-288-1.

14 Cf. ANDRADE, Maria Filomena – O Mosteiro de Chelas: uma comunidade feminina na Baixa Idade

Média. Património e gestão. Cascais: Patrimonia, 1996. ISBN: 972-744-020-7.

15 Cf. BRANQUINHO, Isabel – “Estratégias de composição do património do Mosteiro de São Vicente

de Fora – priorado de D. Paio Gonçalves (1172-1205)”. in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro. Lisboa: Edições Colibri, 2005, pp. 75-88. ISBN: 972-772-590-2.

16 Sobre o étimo Alvalade, cf. a nossa síntese em VIVAS, Diogo e OLIVEIRA-LEITÃO, André de – “A

presença islâmica no Alentejo Litoral. Uma abordagem à luz da toponímia”. In SILVA, I.; MADEIRA, J.; FERREIRA, S. (coord.) – Actas do 1.º Encontro de História do Alentejo Litoral. 18 e 19 de Outubro de 2008. Sines: Centro Cultural Emmerico Nunes, 2009, ISBN: 978-972-99027-5-8, p. 225: “hoje parece comummente aceite a sua origem no vocábulo al-balaṭ com o significado geral de «parte chata ou plana, plano, chão», donde «campo, terreno plano, planície» (sendo essa a característica física dos terrenos que levou à adopção deste topónimo). No entanto, David Lopes propôs que a origem do topónimo fosse o substantivo latino palatium («palácio, paço») precedido do artigo árabe al-, atestado em outros topónimos, como na derivação regressiva

como terras de herdade, na região de Alpriate, como se pode depreender da análise do Quadro I (cf. Anexos), havendo ainda a elencar algumas doações (constantes do

Quadro II) e, residualmente, os escambos e permutas (assinalados no Quadro III).

A inquirição de c. 1220 (cf. Quadro IV) revela-nos um património consolidado que, na maior parte dos casos, parece não ter tradução com a documentação preservada pelo mosteiro, isto é, não chegaram até nós os informes relativos à forma como foram adquiridos, salvo a granja referida em São Julião do Tojal, de que conhecemos o documento de doação, datado de 1218; além disso, deve ainda assinalar-se a passagem de duas cartas de povoamento concedendo privilégios a todos os povoadores que aceitarem courelas nos lugares do Tojal e de Carnide, bem como aos seus descendentes, a título perpétuo e hereditário, contra o pagamento de várias exacções ao mosteiro (cf. Quadro V).

Relativamente ao mosteiro de São Félix de Chelas, onde teria existido um antigo cenóbio que viria a ser refundado durante o reinado de D. Afonso Henriques como mosteiro de regrantes agostinhas, o mais antigo informe que aí subsiste data de 1183. No fundo do mosteiro de Chelas preserva-se ainda muita documentação relativa a doações régias a particulares para os primeiros anos da sua existência. Tal como para São Vicente, a maior parte dos testemunhos diz respeito a compras, havendo também algumas aquisições por doação, destacando-se sobretudo as vinhas em Leceia e as herdades no Arranhó (cf. Quadros VI, VII e VIII).

Com base na documentação compulsada (que figura nos quadros elencados em anexo), podem-se traçar, desde logo, algumas conclusões preliminares relativamente ao quadro das compras, doações e escambos das suas maiores unidades monásticas situadas na periferia de Lisboa. Em primeiro lugar, importa referir que os mosteiros em causa foram fundados e amplamente engrandecidos e privilegiados pelos monarcas portugueses; ambos parecem manter uma estreita ligação com velhos santos moçárabes que teriam sido cultuados na região antes e durante o domínio muçulmano da Península – em São Vicente, o mártir hispânico do mesmo nome, cujas relíquias eram cultuadas no Cabo de São Vicente, no Algarve, e que foram solenemente trasladadas para Lisboa em 1173; em Chelas, os também mártires Félix, Adrião e Natália (da mesma forma que, em Santos-o-Velho,

de Almoster < al-Monasterium (cf. LOPES, David – “Toponímia árabe de Portugal”. in Revista Lusitana. Lisboa. Vol. XXIV (1922), pp. 264-265). No entanto, como notou Joaquim da Silveira, a consoante final da palavra (ṭā’), uma das letras enfáticas do alfabeto árabe, sendo fortemente aspirada, não poderia, pelas leis da fonética, corresponder à evolução do t romance de palatium (que nesta altura já teria adquirido o som sibilante de s, como em paço ou palácio), propondo assim, em alternativa, a significação que é hoje aceite (cf. SILVEIRA, Joaquim da – “Toponímia portuguesa (esboços)”. in Revista Lusitana. Lisboa. Vol. XXIV (1922), pp. 193-198)”. O topónimo surge já mencionado em documentação cristã do início do século X, embora referindo-se a outras povoações com o mesmo nome, no Centro do País (id., ibid.); a primeira menção à Alvalade ulissiponense é das mais antigas da documentação para o espaço em apreço (década de 1180).

se cultuavam os santos Veríssimo, Máxima e Júlia, cujas relíquias aí se preservavam e que mereceram até uma menção no De Expugnatione Ulyxbonensi, quando o cruzado inglês se refere ao culto destes antigos mártires no sítio de Compolet17).

Ambos os mosteiros eram de cónegos regrantes agostinhos, sendo um feminino (as donas de Chelas) e outro masculino (São Vicente), estando assim eclesiasticamente vinculados ao não menos importante mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.

Sob o ponto de vista da ocupação do território, constata-se, como nos recorda Isabel Branquinho, a “territorialização do conjunto dos bens rurais: as vinhas concentravam-se em Alvalade, Concha, Chelas, sempre a menos de uma jornada da urbe. As herdades, num raio substancialmente maior. […] Do conjunto geral das propriedades rústicas, doadas, compradas, aforadas e dadas em préstamo, ressaltam de imediato alguns núcleos e linhas de expansão territorial”18. Verifica-

-se uma tendência para a ocupação de certos espaços por determinadas casas monásticas, tendendo assim para o engrandecimento espacial dos seus domínios, de uma forma territorialmente contínua; além disso, o estabelecimento dos domínios destes mosteiros parece ter seguido uma lógica de ocupação do espaço centrada primeiro nas áreas mais próximas dos arrabaldes, passando só depois, a

17 Cf. NASCIMENTO, Aires Augusto do (ed.) – A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado

[= De Expugnatione Lyxbonensi]. Ed., trad. e notas de […] e introd. de Maria João Violante Branco. Lisboa: Vega, 2001, p. 79 e 95. ISBN: 972-699-683-X. De acordo com o cruzado inglês, as relíquias destes santos estariam guardadas no sítio de Compolet, topónimo que tem sido identificado com Campolide, e que seria a melhor tradução, aos ouvidos de um anglo-normando, da pronúncia do topónimo (da mesma forma que o castelo de Sintra seria latinizado em “castro Suchtrio” (cf. NASCIMENTO, Aires Augusto do (ed.) – op. cit., p. 110). Compolet parece ser, de acordo com LOPES, David (“Toponímia Árabe de Portugal”, p. 268.), um híbrido de língua romance e árabe, com o significado de “Campo de Olide”, derivado do substantivo latino “campus” e do antropónimo masculino árabe “Walīd” (o que, a confirmar-se tal asserção, poderia talvez designar a posse da dita terra por um certo Walīd, reflectindo assim este topónimo a presença da língua romance como importante substrato linguístico num mundo predominantemente arabizado – lembremo-nos do exemplo aduzido por Álvaro de Córdova no seu Indiculus luminosus, onde deplorava o facto de os seus conterrâneos cristãos, no século IX, falarem e conhecerem o árabe, ao mesmo tempo que ignoravam por completo o latim em que se liam as Sagradas Escrituras), e constituído assim, talvez, uma importante indicação da sobrevivência moçárabe nos arredores de Lisboa. Já NASCIMENTO, Aires Augusto (op. cit., p. 164), propõe em alternativa que o termo Compolet derive de dois étimos latinos, com o significado de “campo do olival”, o que não seria igualmente inverosímil atendendo à vegetação tipicamente mediterrânea dos arrabaldes de Lisboa, muito embora – julguemos nós – não explique de modo tão cabal como a deturpação de um “campus oliuae”, sugerida pelo autor da epístola, daria lugar a Compolet. De qualquer forma, a associação do topónimo Compolet à moderna Campolide não ressalta evidente, dado o cruzado afirmar que aí se erguera um templo arruinado à data da “Reconquista” – contendo as relíquias dos santos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, pelo que o Compolet do De Expugnatione não coincidiria espacialmente com a hodierna Campolide, mas sim com a zona de Santos, o que poderá traduzir ou uma deslocação do topónimo (o qual surge mencionado amiúde na documentação monástica), ou uma restrição da sua superfície primitiva, que traduziria assim uma zona mais ampla dos arrabaldes de Lisboa, não se encontrando limitada à actual freguesia do mesmo nome – por sinal, distante daquela onde se ergueu o mosteiro de Santos. Aires do Nascimento sustenta uma real destruição física da primeira ermida dos mártires, no lugar de Compolet, ainda antes da Reconquista, ficando apenas a memória do culto, sendo as relíquias pura e simplesmente trasladadas para a nova ermida, junto ao rio, no local a que por isso mesmo se chamou de “Santos”, baseando-se para tal numa leitura da Vrbis Olisiponis Descriptio, de Damião de Góis: “Foi dado ao local por ali terem estado guardados durante longos tempos os corpos dos santos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia” (cf. NASCIMENTO, Aires Augusto do (ed.) – op. cit., p. 79).

partir da segunda metade do século XIII, para a periferia do termo, certamente menos povoada e, por conseguinte, menos sujeita a disputas pela sua posse. Tais parecem ser os casos da região de Alvalade-Telheiras-Concha, onde se multiplicam as aquisições por parte de São Vicente, bem como um conjunto de outras compras, um pouco mais distantes, ao longo do leito do rio de Sacavém, nas zonas da Romeira e de Bucelas19, no Tojal e em Alpriate, assim como ao longo do eixo Agualva-Águas

Livres-Belas-Idanha-Queluz (cf. Mapa I); já Chelas, detendo embora também uma presença significativa na zona de Alvalade-Lumiar, parece privilegiar as compras

19 O topónimo Bucelas, na forma arcaica Abuzelas, parece derivar de uma qualquer kunya árabe – Abū

seguido de um segundo elemento onomástico que não conseguimos deslindar e não, como sustentou LOPES, David (“Os Árabes nas Obras de Alexandre Herculano”. in Nomes Árabes de Terras Portuguesas. Colectânea organizada por José Pedro Machado. Lisboa: Sociedade de Língua Portuguesa/Círculo David Lopes, 1968, p. 99), de uma alcaria de nome Mawṣil (nome cognato da cidade hoje iraquiana de Mossul), citada na Takmila de Ibn al-Abbār como situada nos arredores de Lisboa. O arabista procurou interpretar este topónimo como Bucelas, embora não explique convenientemente como se processaria a passagem do min inicial árabe para o b romance, nem a assimilação do lam do artigo al-, visto tratar-se o bā’ de uma consoante lunar – ainda que não fosse impossível de isso suceder já em romance, pois nos falares ocidentais o l medial tende geralmente a ser elidido (cf. MARQUES, A. H. de Oliveira – “O «Portugal» Islâmico”. in SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, vol. II – Portugal das Invasões Germânicas à “Reconquista”. Coord. de A. H. de Oliveira MARQUES. Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp. 206-211. ISBN: 972-23-1719-9); assimilação desnecessária caso se tratasse, efectivamente, de uma kunya. A precocidade com que surge na documentação cristã e a evidente reminiscência toponímica árabe apontam claramente para um povoamento muçulmano nesta povoação do termo de Lisboa.

em espaços mais periféricos do termo, como os eixos Arranhó-Arruda, Alfornel- Louro, e ainda uma importante concentração na zona de Leceia (cf. Mapa II).

Quanto à estruturação deste vasto território, consubstanciada no apareci- mento, nas fontes, de novos topónimos no termo de Lisboa, verifica-se que uma parte bastante significativa das pequenas unidades de povoamento se achava já constituída até à data da “inquirição” de c. 1220 (cerca de 32 lugares), sendo que os cem anos que se seguiam até à produção do “rol das igrejas” de 1320-21 ditaram uma relativa estabilização no aparecimento de novas unidades (cerca de 22, muito embora várias delas apareçam já mencionadas anteriormente em documentação régia ou de particulares, pelo que o incremento não é assim tão significativo), tendendo, pelo contrário, para o desaparecimento de alguns topónimos mais arcai- zantes que não subsistirão na documentação para além do século XIII (como o curioso topónimo de cariz arabizante Benalfarzom ou Benefarzom, nos arredores de Alvalade20). Desta forma, é-nos possível traçar um mapa relativamente bem

20 O prefixo ben- (correlato de banū) deste topónimo parece apontar para uma fixação clânica árabe

(ou, até, berbere) neste lugar, muito embora não nos tenha sido possível descortinar qual a raiz do segundo elemento da palavra (cf. MARQUES, A. H. de Oliveira – “O «Portugal» Islâmico”, pp. 140-143, e ainda, sobre a ocupação arabo-berbere na região ocidental do Ândalus, veja-se o estudo clássico de LAUTENSACH, Hermann – Maurische Züge im geographischen Bild der Iberischen Halbinsel. Bonn: In Komission bei Ferdinand Dümmlers Verlag, 1960). Este curioso lugar situar-se-ia nos limites de Alvalade, visto que, nos documentos que se lhe referem, alude-se sempre a uma relação de dependência (in termino de Alvalade),

estruturado do que poderia ter sido uma parte da ocupação humana no termo de Lisboa ao longo do século XIII e primeiro quartel do século XIV, com base nos domínios fundiários de São Vicente e Chelas.

No documento Lisboa Medieval (páginas 159-164)