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O fim do século XX foi marcado por grandes mudanças na face da Terra. Observou-se uma grande quantidade de acontecimentos no mundo, que segundo Tarride (2002, p. 17, grifo do autor), “conferiram um tom quase dramático à sensação de passagem do tempo [...] O mundo parece tornar-se menor. Mas esse ‘encolhimento’ o fez mais complexo”. A unificação do planeta, devido ao avanço das novas condições técnicas, levou a uma ação humana globalizada, sendo que, segundo Santos (2002a),

[...] Nos últimos cinqüenta anos criaram-se mais coisas que nos cinqüenta mil precedentes. Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qual a ideologia penetra objetos e ações. Por isso mesmo, a era da globalização mais do que qualquer outra antes dela, é exigente de uma interpretação sistêmica cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa, natural ou artificial, seja redefinida em relação com o todo planetário. Essa totalidade-mundo se manifesta pela unidade das técnicas e das ações. [...] A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais de selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada. [...] Nossa grande tarefa, hoje, é a elaboração de um novo discurso, capaz de desmitificar a competitividade e o consumo e de atenuar, senão desmanchar, a confusão dos espíritos (Ibidem, p. 171, 65, 55, grifos nossos).

12 O termo globalização está na ordem do dia e segundo alguns autores (BAUMAN, 1999, p. 7; GIDDENS, 2003, p. 18; LAIDI, 2003, p. 183), dada a sua popularidade, o seu significado nem sempre é claro. Até o final da década de 1980 esse termo quase não era empregado tanto na literatura acadêmica como na linguagem cotidiana, que segundo Giddens (2003, p. 15) “surgiu de lugar nenhum para estar em quase toda parte”. Entretanto, somente o termo é recente, pois esse mesmo autor afirma que esse fenômeno não é recente dado que “a modernidade é inerentemente globalizante” (Idem, 1991, p. 69, 175). Castiel (2003, p. 80) diz que o etnólogo francês Georges Balandier (1999) “enfatiza a grande fragilidade das palavras quando se tenta explicar estes tempos vertiginosos. O vocabulário disponível consegue apreender precariamente tão-somente partes limitadas do que acontece ao nosso redor”.

Na transição do novo milênio, a globalização aparece como a mudança mais importante da ordem mundial. Segundo Leff (1998, p. 124) “este processo tende a dissolver as fronteiras nacionais, homogeneizando o mundo através da extensão da racionalidade do mercado a todos os confins do orbe”.

Bauman (1999, p. 7-9 passim) vê a globalização como uma encantação mágica, como uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presente e futuros. Busca mostrar que no fenômeno da globalização existem mais coisas do que o olho possa apreender. No exame das causas e consequências sociais da compressão tempo/espaço, e os seus efeitos na estruturação das sociedades, evidencia que os processos globalizadores não têm a unidade de efeitos que se supõe comumente, “ a globalização divide tanto como une; divide enquanto une - e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade no globo”. Destaca como uma parte integrante dos processos de globalização a própria segregação espacial, a progressiva separação e exclusão. Salienta ainda que uma causa específica de preocupação na cultura globalizada é a progressiva ruptura entre as elites extraterritoriais cada vez mais globais e o restante da população, cada vez mais localizada.

Quanto às consequências culturais das transformações por que a humanidade vem passando, Bauman (Ibidem, p. 11; Idem, 2001, p. 30) cita Castoriadis: “o problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de se questionar” e acrescenta que “questionar as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos” e alerta para a afirmação de que “o preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano”, ao que Freire lembra que:

13 [...] O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca (FREIRE, 1996, p. 128).

Com a mesma opinião de Bauman, Laidi (2003, p. 183) alerta que “não devemos nos iludir, a globalização também vem acompanhada por uma fragmentação perante a qual, ou contra a qual, devemos lutar”. Ao que Giddens (1991, p. 25) afirma que “a globalização não está se desenvolvendo de uma forma eqüitativa, e está longe de ser inteiramente benéfica em suas conseqüências”.

A globalização, segundo Laidi (2003, p. 184-186 passim), possui três dimensões complementares. A primeira, o autor atribui ao processo de transformação das condições de produção da identidade individual e coletiva pela intensificação da interatividade dos indivíduos ou pelos fatos sociais. A segunda dimensão, que considera mais clássica, é a mundialização, que é a que se refere à compressão tempo/espaço. A terceira dimensão é a interpenetrabilidade das sociedades. Afirma ser:

[...] Um momento em que as sociedades humanas renegociam seu vínculo com o tempo e com o espaço para fundar, se assim preferirem, um novo imaginário; sendo que a construção desse imaginário decorre de um determinado número de encadeamentos bastante decisivos que facilitam a sua construção (LAIDI, 2003, p. 186).

Esse autor assinala que a globalização desenvolve um imaginário de forma comum, um imaginário de similaridades, de conformismo. Aponta para a semelhança dos centros urbanos, formas de modernização padronizadas, a exemplo dos aeroportos e shoppings (Ibidem, p. 186).

Sobre essas características de tempo e espaço que resultam na compressão de distâncias e de escalas de tempo, Giddens (1991, p. 69, grifo do autor) diz que “na era moderna, o nível de distanciamento tempo-espaço é muito maior do que em qualquer outro período precedente, e as relações entre formas sociais e eventos locais e distantes se tornam correspondentemente ‘alongadas’”. O autor, ainda, se refere à globalização como “a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa”.

Sobre a globalização da economia e suas conseqüências macroeconômicas, Paim e Almeida Filho (2000) dizem que:

14 Ao mesmo tempo, verifica-se um aumento das desigualdades entre os povos e os grupos sociais, a eclosão de movimentos nacionalistas, a exacerbação dos conflitos étnicos, a agressão ao meio ambiente, a deterioração do espaço urbano, a intensificação da violência e o desrespeito aos direitos humanos (PAIM; ALMEIDA FILHO, 2000, p. 12).

A respeito da transformação das cidades e de seus entornos pelo processo de industrialização, Feltmann (2002, f. 22) comenta que a população urbana multiplicou e, citando Argan (1999), destruiu “a coesão das comunidades urbanas tradicionais. Multiplicou-se, portanto, a quantidade e, paralelamente, degradou-se a qualidade urbana”.

Bouguerra (2004, p. 122, grifo do autor) diz que “à medida que a ‘cidade planetária’ se expande, terras agrícolas são transformadas em desertos devido à salinização e ao hidromorfismo consequentes de uma irrigação duvidosa ou mal conduzida” e para demonstrar os sofrimentos humanos e os dramas que os povos experimentam por causa disso, apresenta dados estimados pela ONU: 135 milhões de pessoas são severamente atingidas pela desertificação, e 850 milhões são afetadas, de algum modo, por esse fenômeno. Diz ainda que “em escala planetária, são os ricos que desperdiçam e poluem mais; e a grande maioria entre eles se recusa o mínimo de austeridade” (Ibidem, p. 130).

Apesar da compreensão de alguns grupos de que a globalização seja um fenômeno exclusivamente econômico, Giddens (1991, p. 15) afirma que, a globalização é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica. Portanto, “não é um processo singular, mas um conjunto complexo de processos”. Morin (2001, p. 46) diz que “nas misérias das favelas africanas, asiáticas e da América Latina também há a presença do mercado mundial, porque é o mercado que afeta o custo do cacau, do açúcar e do café”.

Giddens (2003, p. 29) assinala que a globalização está sacudindo o nosso modo de vida atual, que está emergindo de uma forma anárquica, fortuita, trazida por uma mistura de influências. Acrescenta que a globalização não é firme e nem segura, mas repleta de ansiedades, como também marcada por profundas divisões, e atribui a impotência que hoje vivenciamos à incapacidade das instituições e não a considera como um sinal de deficiências individuais. Alerta para a necessidade de reconstrução das instituições existentes bem como da criação de novas. Conclui que “a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora”. E, segundo Castiel (2003),

15 [...] Nossos tempos labirínticos se caracterizam pela produção incessante e engenhosa de novas tecnologias e correspondentes repercussões na ampliação e na velocidade de circulação de trocas econômicas, na proliferação de estratégias de mediação comunicacional, na multiplicação e diluição das matrizes identitárias, no clima generalizado de ambigüidade quanto às perspectivas de orientação em curto prazo e na crise de sentido (CASTIEL, 2003, p. 80).

Giddens (1991, p. 69) comenta ainda que a globalização implica um movimento de distanciamento do conceito clássico de sociedade: “a importância indevida que os sociólogos têm conferido à idéia de ‘sociedade’, no que ela significa um sistema limitado, deveria ser substituída por um ponto de partida que se concentra em analisar que a vida social é ordenada através do tempo-espaço”.

A sociedade não é a simples soma de indivíduos; segundo Durkheim (1966, p. 96), é um sistema constituído pela associação dos indivíduos, que representa uma realidade específica com suas características próprias, onde o grupo pensa, sente e age diferentemente do modo de pensar, sentir e agir dos seus membros, quando separados. “As representações, as emoções, as tendências coletivas não têm por causas geradoras determinados estados de consciência dos indivíduos, mas sim as condições em que se encontra o corpo social em conjunto” (Ibidem, p. 98). “Para compreender a maneira pela qual a sociedade se vê a si mesma e ao mundo que a rodeia, é preciso considerar a natureza da sociedade, e não a dos indivíduos” (DURKHEIM, 1966, p. xxv). Refere-se a fato social como “tudo aquilo que se produz na sociedade”, ou ainda, “o que interessa e afeta de algum modo o grupo social” (Ibidem, p. xxix). Acrescenta que os fatos sociais são constituídos por crenças, tendências, práticas do grupo tomadas coletivamente; e não são fatos sociais um pensamento encontrado em todas as consciências particulares, ou mesmo um movimento que todos os indivíduos repitam (Ibidem, p. 6).

Adorno e Horkheimer (1969) entendem sociedade em seu sentido mais importante como:

[...] Uma espécie de contexto inter-humano na qual todos dependem de todos; na qual o todo subsiste graças à unidade das funções assumidas por seus co- participantes, a cada um dos quais, por princípio, se disciplina uma função; e de onde todos os indivíduos, a sua vez, são determinados em grande medida pelo pertencimento ao contexto em sua totalidade. O conceito de sociedade, pois, designa melhor as relações entre os elementos e as leis às quais essas relações estão subjacentes, e não aos elementos e suas descrições simples9 (Ibidem, p. 23, tradução nossa)

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16 Esses autores afirmam que o conceito de sociedade é essencialmente dinâmico e que abarca precisamente a unidade do geral e o particular na correlação total e autoreprodutiva dos seres humanos (ADORNO; HORKHEIMER, 1969, p. 33-37 passim). Hall (2003, p. 16-17) argumenta que a sociedade está constantemente sendo “deslocada por forças fora de si mesma” e critica os sociólogos que muitas vezes pensaram a sociedade como uma totalidade, em um todo unificado e bem delimitado, pois, como diz Morin (1999, p. 28), “a sociedade nasce das interações entre os indivíduos, mas com sua cultura, com seu saber, ela retroage sobre os indivíduos e os produz para tornarem indivíduos humanos”.