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Até o final do século XX, as pesquisas vinham sendo hegemonicamente categorizadas pela redução como método de conhecimento, o determinismo como conceito principal e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial ao estudo da vida e do social. O princípio da separação instituído por Descartes fundou os progressos do conhecimento na capacidade de separar as dificuldades umas das outras, resolvê-las sucessivamente, de maneira a melhor conhecer um problema, tornando mais difícil a sua contextualização. A partir do início daquele século é que ocorre a revolução no campo da ordem e da certeza, e o reconhecimento da desordem e da incerteza. “A ciência, rainha da ordem, tornou-se uma ciência que busca fazer dialogar a ordem com a desordem [...]”. E somente na sua segunda metade, é que surge o pensamento sistêmico (MORIN, 1999, p. 22-24).

Gonzaléz (1999, f. 1) assinala que esse pensamento simplificador se caracteriza por ser um ponto de vista absoluto, onde existe um observador externo, onisciente, e que essa concepção epistemológica implica a idéia de uma objetividade ilusória absoluta que afeta o sujeito/observador. Acrescenta ainda que esse fracasso do pensamento simplificador e da praxis social e política que dele deriva tem submetido o homem contemporâneo e o seu mundo a uma profunda e radical crise. Daí surge para Morin um novo modo de pensar, o paradigma da complexidade.

Para Prigogine (2003, p. 49) não há dúvida de que, assim como a humanidade está em transição, a ciência também está. Ao afirmar que “reencontrar um tempo que não volte a separar o homem do universo mas que, pelo contrário, assinale a sua pertença a esse universo”41, acredita que a noção de complexidade marca o ponto de partida dessa evolução. Assemelha-se o mundo que se começa a compreender a um romance, como as Mil e Uma

Noites “onde as histórias se ligam umas às outras: a história cosmológica, no interior da qual

evolui a história da matéria, depois a da vida e, finalmente, a nossa própria história”. Acrescenta que a idéia da certeza dominou a ciência durante séculos e que ainda não estamos acostumados a esta visão muito diferente das coisas, que considera a complexidade do universo (Idem, 1996, p. 231- 237 passim). Contra uma concepção alienante do universo, diz que

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72 [...] Procuramos hoje encontrar essa via estreita entre duas concepções alienantes do universo, a determinista, que recusa ao homem a possibilidade de imaginar ou de criar, e a outra, céptica, que diz que o universo é aleatório, estranho à razão. É entre esses dois escolhos que se encontra a direcção a seguir. Nós só encetamos esta aventura, cujos começos são prometedores, face a um universo mais complexo, mais flutuante do que o imaginamos, um universo evolutivo que reclama uma linguagem nova, tanto nas ciências físicas como nas ciências humanas. Só com esta nova linguagem é que poderemos descrever este mundo espantoso em que vivemos (PRIGOGINE, 1996, p. 236-237)42.

Morin assinala que a ciência é um domínio de muitas certezas de fato e não o domínio da certeza absoluta no plano teórico, e que a grande descoberta do século XX é que “a ciência não é o reino da certeza” (MORIN, 1996, p. 239). Destaca a importância da obra de Popper “para a compreensão de que uma teoria científica não existe como tal senão na medida em que aceita ser falível e se submete ao jogo da sua ‘possibilidade de ser falsa’” e também a contribuição de Bachelard, pelo início dessa renovação epistemológica (Ibidem, p. 240; Idem, 1999, p. 24, grifo do autor).

Na discussão do paradoxo do separável e inseparável, Morin aponta para o pensamento de Pascal, quando diz: “todas as coisas sendo ajudadas e ajudantes, causadas e causantes e tudo estando ligado por um laço natural e insensível, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como considero impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”. Essa seria a formulação do programa do pensamento contemporâneo (MORIN, 2003, p. 76).

A partir dos três pilares da certeza da ciência clássica - ordem, separabilidade e lógica - é que Morin extrai os três traços que considera fundamentais do pensamento complexo. O primeiro é que pensar a complexidade é respeitar o complexus (aquilo que é tecido em conjunto), o complexo que este tecido constitui para além de suas partes; o segundo é a incerteza, onde “o pensamento complexo deve poder não apenas relacionar, mas ter uma estratégia em relação ao incerto”. O terceiro traço é a oposição da racionalização fechada à racionalização aberta, sendo que o pensamento da primeira é o de que a razão está a serviço da lógica e a segunda pensa o inverso. O autor afirma que racionalizar é “acreditar que um sistema é coerente, portanto perfeito e sem necessidade de ser verificado” e que “vivemos sob o domínio de idéias racionalizadoras, que não consideram aquilo que se passa, mas que privilegiam os sistemas fechados, coerentes, consistentes” (Idem, 1996, p. 248).

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73 Como exemplo de racionalização, Morin apresenta a ciência econômica contemporânea, por não considerar a vida do ser humano, sendo incapaz de realizar uma previsão para um acontecimento inesperado. Lembra que a complexidade também corre os seus riscos, dado que uma sociedade muito complexa concede muitas liberdades de ação aos seus indivíduos e grupos, permitindo-lhes que sejam criativos mas, muitas vezes, delinqüentes. Assume que em extrema complexidade a sociedade pode se desintegrar. Para que isso não ocorra, pode se recorrer a medidas de autoridade, mas supõe que caso se queira o mínimo possível de coerção, alerta que o único cimento que resta é o sentimento de solidariedade vivida. Sugere a solidariedade e a ética como caminhos para a religação dos seres e saberes (MORIN, 1996, p. 245-248, 254), em consonância com o caminho apontado por Santos (2002a, p. 65) e por Gonzaléz (1999, f. 439-449), que declara que para a humanidade se conscientizar de sua necessária humanização, o homem precisa se transformar, de um ternário (indivíduo/ espécie/sociedade) em uma tetralogia (indivíduo/espécie/sociedade/humanidade), e apresenta, como caminho para a realização dessa tarefa, além da solidariedade, a compaixão, o perdão e o amor.

Morin declara que “de fato, os matemáticos engenheiros estão no seu canto, fazem as suas máquinas, e não podemos absolutamente pensar que possa haver entre eles grandes pensadores. Todavia houve grandes pensadores, podemos dizer que Wiener é um grande pensador, Asby é um grande pensador, von Neumann”. Considera que existe muita resistência a essa forma de pensar em alguns domínios científicos e que “o conhecimento ideal implicava fechar inteiramente um objeto e pesquisá-lo exaustivamente. Isto ainda é o ideal das teses de doutorado que, em geral, são tão estéreis por essa razão” (MORIN, 1999, p. 31, 25). Giddens (1991, p. 15) lembra que o número de cientistas que trabalham no mundo é maior hoje do que antes em toda a história da ciência; a ciência e a tecnologia tornaram-se elas próprias globalizadas. Prigogine (2003, p. 52, 64) alerta para a necessidade de uma união, superação das fragmentações devidas aos filósofos e aos cientistas do passado; assim a ciência poderia fornecer uma mensagem mais universal.

A reforma do pensamento só é possível com a reforma da educação, e esse começo só pode se dar na escola primária e em pequenas classes, na opinião de Morin. Não descarta essa mudança na universidade, mas se reporta à aporia da reforma das instituições pois, se uma reforma não atinge também os espíritos, então ela não serve para nada, como já ocorreu em reformas do ensino no passado. Afirma que o modo complexo de pensar reúne, ensina uma

74 ética da solidariedade, postula a compreensão entre os humanos. O autor apresenta a seguinte questão: “Como reformar os espíritos se não reformarem as instituições? Círculo vicioso”. E acrescenta: “Mas se tivermos o sentido da espiral, em dado momento começaremos um processo e o círculo vicioso se tornará um círculo virtuoso”. Lembra o problema no segundo paradoxo colocado por Marx a respeito da educação: “Quem educará os educadores?” E responde: “É preciso que eles se eduquem a si mesmos” (MORIN, 1999, p. 34). Quanto a essa resposta de Morin, Bindé (2003, p. 7) concorda que isso é possível e apresenta o exemplo de Spinoza que sobreviveu à ruptura filosófica e espiritual. A necessidade da reforma da educação dá-se pela necessidade da reforma do mundo, pois como salienta Freire (1996, p. 98), “a educação é uma forma de intervenção no mundo”.