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3.1 I MPORTÂNCIA DA ÁGUA

3.1.2 O acesso ao serviço de água em casa

O acesso ao serviço de água é considerado de muita importância (38/40), pois possibilita conforto ao sujeito:

“Você carregar água de um lugar para outro?... Você já imaginou se não tivesse encanamento em casa? Que diferença...” (MSe).

A água é uma necessidade básica para a vida, mas o homem assumiu a ‘viabilização do seu

acesso’ como necessidade básica. Para isso, precisa lançar mão de tecnologias apropriadas. A água, desde o manancial até a torneira da residência, percorre um longo caminho - o sistema público de abastecimento de água – ‘um conjunto de atos técnicos específicos que modificam a natureza da água’.

Ortega Y Gasset (1991, p. 12) diz que esse conjunto de atos técnicos específicos é a técnica. Esse autor define técnica “como a reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades”, ou seja, “a técnica é a reforma da natureza”. Diz ainda que

110 [...] O sentido e a causa da técnica estão fora dela: ou seja, no emprego que o homem dá às energias que lhe sobram, energias economizadas pela técnica. A missão inicial da técnica é esta: dar liberdade ao homem para ele poder entregar-se a si mesmo (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 35).

O desenvolvimento da sociedade moderna impôs ao homem necessidades básicas de sobrevivência que estão além do que a natureza oferece. O acesso à água, expresso como conforto, possibilita ao sujeito a higiene pessoal e da casa, ir à escola, ir ao trabalho, ter momentos de lazer e descanso, cuidar de si e de sua família. Como disse ainda Ortega Y Gasset (1991, p. 67, 13), em 1939, “hoje, os fundamentos técnicos da vida superam consideravelmente os fundamentos naturais, de tal modo que o homem não pode materialmente viver sem a técnica por ele alcançada. [...] A técnica é adaptação do meio ao sujeito”.

Na voz do entrevistado, água é sinônimo de vida, o que é demonstrado quando, em seu discurso, é feita a comparação à presença física de pessoas em casa, modificando seu estado de objeto para sujeito:

“Uma casa sem água é mesmo que não ter ninguém, né?” (ICa).

A água exerce um fundamental papel na transmissão de doenças. Em todas as áreas de estudo aparecem depoimentos expressando uma esclarecida consciência sobre a necessidade da água para a higiene doméstica e pessoal. A literatura mostra a importância da prática de lavar as mãos na prevenção da transmissão de doenças (CAIRNCROSS, 2003; CURTIS, 1998; CURTIS; CAINRCROSS, 2002, 2003; HOQUE, 2003; LUBY, 2001; PITTET, 2005; WEBER et al., 2003) e, nas entrevistas, apesar do uso da água na higiene pessoal aparecer em depoimentos de todas as áreas, somente nas de Mangue Seco e da Ilha das Caieiras é expressa, claramente, esta prática:

“É pra você fazer a higiene do corpo... Pra você tomar um banho... Escovação de dente, lavar as mãos... Pra você limpar a casa... Lavar as roupas, pra lavar o chão, lavar o banheiro, a descarga, que é necessário, né? Pra mim cozinhar... Lavar as verduras... Lavar as louças... (MSe); “Pra beber, pra tomar um banho, lavar as mãos, lavar roupa... Pra fazer almoço, né?... Lavo roupa, dar descarga... Pra lavar a calçada...” (ICa); “Pra beber... Na minha higiene pessoal, tomar banho, lavar roupa, fazer comida... Lavar as vasilhas, limpo a casa, lavo banheiro... Fazer limpeza geral.” (ST). “Pra beber, tomar banho, escovar dente,

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dar descarga, lavar o banheiro, lavar roupa, cozinhar, lavar vasilha... Limpeza, todo serviço de casa, né?... Pra higiene...” (JC).

Strang (2004, p. 27) afirma que foi a revolução industrial que trouxe mais mudanças na relação das pessoas com a água. No Brasil, essas mudanças, associadas ao crescimento populacional, levaram a uma proposta de controle do uso da água regulamentado pela legislação nacional vigente (BRASIL, 1997), conferindo a ela valor econômico. Ainda assim, nos discursos verifica-se que a água é encarada como um dom de Deus:

“Tem que agradecer a Deus! Se eu não tiver isso eu não tenho nada, eu estou de mão

atada... Eu nem imagino sem água... Eu rezo na hora que eu abro a torneira... Eu acho lindo!” (JC).

Eles apresentam, ainda, uma confiança em uma força superior, forma de segurança que, segundo Feltmann (2002, f. 66), serve “como apoio nos momentos de maior desamparo, onde as ações do governo estão ausentes”. Também em Bouguerra (2004, p. 135) está presente esse comportamento de religiosidade no depoimento de uma aldeã da África do Sul: “nós somos obrigados a escolher entre a comida e a água. Então, compramos o que comer e rezamos para que a água não nos deixe doentes”.

Strang (2004, p. 28) também discute esse domínio sobre a água. Para isso, se reporta a Goldsmith (1794):

Deus nos contemplou com habilidades para verter esta grande extensão de água para nosso próprio proveito. Ele fez essas coisas, talvez, para outros usos; mas Ele nos deu facilidade para converter isso para nós próprios... Vamos então, corajosamente afirmar, que a terra, e todas as suas maravilhas, são nossas, já que nós somos providos de poder para dirigi-las ao nosso serviço44 (GOLDSMITH, 1794, p. 143 apud STRANG, 2004, p. 28, tradução nossa). Ela salienta ainda que essa idéia da água como uma obrigação cristã não desapareceu totalmente, pois os cidadãos, quando pagam suas contas, somente o fazem pela execução e operação do sistema de abastecimento (STRANG, 2004, p. 28), ou seja, pelo pagamento do que a técnica possibilita: o acesso da água na torneira no domicílio.

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112 O agradecimento a Deus que aparece nos discursos incluídos nesta pesquisa também foi registrado nos depoimentos do trabalho realizado por Strang (2004, p. 58, tradução nossa): “Obrigado, Deus, por ter criado isto”45 .

A maioria dos sujeitos acredita que existem pessoas que não têm acesso à água em casa (31/40). Essa visão global da questão só foi unânime pelo grupo de sujeitos de Jardim Camburi, possivelmente por causa da melhor condição de acesso à informação, já que a maioria do grupo possui 2º grau completo (6/10).

“A gente vê aí na televisão, né? Ainda muita carência...” (ICa); “Se vê que tem lugares aí que nem água pra beber eles têm, né?... Acho que nem todo o mundo tem o privilégio que a gente tem!” (ST); “Tem muita gente que não tem, né?” (JC).

Há aqueles que acham que todos têm acesso à água. Talvez isso se dê pelo fato de ele e as pessoas do bairro não sofrerem com o problema, o que se estenderia a todas as pessoas do mundo (6/40):

“Eu acho que hoje é muito difícil não ter alguém que não tenha água encanada em casa.

Hoje em dia a CESAN está ajudando muito nessa área, né? Porque a gente vê vários lugares bem distante que já têm a água encanada, tudo direitinho. Isso aí está diminuindo muito, né?” (MSe).

Interessante nesse discurso é atentar para a maneira como os sujeitos reduzem o “mundo” à área de alcance da CESAN, como se a empresa pudesse abastecer toda a população mundial. Eles mostram uma visão da questão limitada ao espaço próprio. Ainda afirmam que o acesso à água está deixando de ser um problema. A falta de informação aparece de forma clara, dado que grande parte da população mundial não tem esse acesso. Como lembra Bouguerra (2004, p. 16-17), a triste realidade do número de crianças que morrem no mundo diariamente por doenças veiculadas pela água não aparece na televisão. E, ainda, de acordo com o RDH 2006: “Esta privação pode ser medida por estatísticas, mas os números não mostram os rostos humanos dos milhões de pessoas a quem é negada a oportunidade de realizar o seu potencial” (PNUD, 2006, p. 17).

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113 Cairncross e Feachem (2005, p. 47) discutem sobre os enganos na percepção do acesso à água por parte daqueles que pensam que o acesso é para todos. Pelos dados da OMS de 1988, somente cerca de 65% das casas têm ligações à rede, e 20% têm acesso a chafarizes públicos, metade dos quais são intermitentes. Quando se trata da população rural, somente 60% têm acesso à água segura, e apenas uma pequena parcela dessa porcentagem tem ligações prediais (Ibidem, p. 47).

A maioria dos sujeitos acha que o fato da comunidade ter acesso à água é tão importante quanto eles próprios o terem (30/40):

“Acho que a mesma importância pra mim, né?” (MSe); “É o bem mais precioso que tem,

todo mundo gosta!” (ICa); “Ah, é ótimo para eles também! Deus me livre as pessoas sem água, ué? Todo mundo tem que ter água, todo mundo merece ter água, né?” (ST); “Ah, eu acho fantástico, sinceramente maravilhoso, se todos todos pudessem ter, se toda a comunidade, onde existe o ser humano, né? Eu acho que quase todo mundo deve dar muita importância a água, eu acho maravilhoso, né?” (JC).