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Episódio 01: Construção dos combinados – 2ª sessão de leitura (28/10/10)

P. T.: Se o colega daqui está falando, eu vou ter que estar escutando

4. A CHAVE DA LITERATURA

4.3 A GUERRA ENTRE A LITERATURA IMPRESSA E A LITERATURA ELETRÔNICA

Após a discussão do conceito de literatura e de literatura eletrônica, seguiremos em busca de uma terceira chave, em que confrontamos a literatura impressa e a literatura eletrônica, evidenciando o valor de cada linguagem a partir de suas aproximações e de seus distanciamentos. Para isso, tomaremos como objeto de análise alguns textos privilegiados para a realização das sessões de leitura com as crianças, tomando como alvos de atenção o flipalbum, a literatura eletrônica disponível na internet e a literatura impressa.

Neste percurso, mais importante do que o termo “literatura”, que acompanha os novos textos de essência eletrônica, é o modo como se apresentam e como possibilitam novas práticas de formação de leitores. Disso resulta o entendimento de que, assim como os contos, os poemas e a literatura de cordel, a literatura eletrônica apresenta especificidades que fazem um uso diferenciado da linguagem verbal, agregando outros recursos de linguagem imagética e sonora.

Importa-nos, nesse ponto, questionar a qualidade desses textos, em uma perspectiva de hipermídia, sem pensarmos essencialmente sobre o que falta à literatura eletrônica que podemos encontrar no impresso, e também sobre o que a literatura eletrônica traz de inovador e de acréscimo para se comuniciar com os leitores pós-modernos.

Na verdade, interessa-nos evidenciar os aspectos de convergência e de divergência entre a literatura impressa e a literatura eletrônica, de modo que possamos avançar na compreensão desses modos de organização textuais e, consequentemente, situar suas contribuições em um processo de formação do leitor literário.

Para isso, é importante ter em vista que a literatura eletrônica, em suas variações de gênero apresentadas no tópico anterior, não pode ser entendida como um texto impresso, cuja principal distinção é o hyperlink, pois, há muito, os impressos já utilizavam a tecnologia dos hyperlinks, em notas de rodapé, notas finais e referências cruzadas.

Além disso, o impresso sempre ofereceu flexibilidade e liberdade ao leitor para saltar trechos, pular páginas, selecionar, voltar ao começo, avançar e suspender a leitura, o que sinaliza uma não linearidade. Embora os críticos afirmem que, na literatura eletrônica, os leitores-usuários podem compor um texto único, intangível e difícil de avaliar (já que os links acessados são decisão do leitor e não estão previamente dados em um texto que o leitor não pode modificar), é importante considerar que os impressos de marcada literariedade possuem vazios que funcionam como links verbais de acesso à imaginação individual do leitor, que possibilitam uma composição única e uma experiência inalcançável.

Com base nesses aspectos, ora convergentes, ora divergentes, recorreremos às seis propostas de Italo Calvino (1990) para a literatura, no contexto deste milênio, como eixo de comparação entre a literatura impressa e a literatura eletrônica. Nessa obra, Calvino defende valores para a literatura, que ainda se apresentam relevantes e aplicáveis às reinvenções do literário.

Com esse intuito, convocamos as obras privilegiadas para a pesquisa, para uma análise inicial que evidencia os seguintes aspectos nos textos: os valores defendidos para o texto literário da atualidade, conforme Calvino (1990), os aspectos que conferem literariedade à obra e os aspectos relevantes à formação leitora, no processo de leitura que o texto promove. Para tanto, apresentamos uma caracterização geral, com descrição e tentativa de classificação de gênero das obras selecionadas para esta pesquisa.

Quadro 14: Caracterização das obras literárias selecionadas quanto ao gênero

Literatura eletrônica Caracterização

- Coletênea de literatura eletrônica, publicada pela Organização de Literatura Eletrônica.

Literatura eletrônica

- História para dormir mais cedo, de Angela Lago. Ficção interativa - La pelota dorada – conto popular espanhol,

domínio público.

- Los três animalitos – conto popular espanhol, domínio público.

Ficção interativa

Literatura adaptada para flipalbum

- Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque. - O fazedor de amanhecer, de Manoel de Barros. - Flicts, de Ziraldo.

Ficção digital – literatura digitalizada por meio de uma transposição do meio impresso para o meio eletrônico.

Literatura impressa

- A pequena vendedora de fósforos, de Andersen. - O fazedor de amanhecer, de Manoel de Barros. - Flicts, de Ziraldo.

Literatura impressa e apresentada no suporte livro

Nesses novos tempos, em que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica, é inegável o modo como o texto literário persiste e reafirma a sua necessidade em todos os tempos em que podemos registrar a existência do humano. Sobre isso, Calvino (1990) adverte que sua “confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar” (CALVINO, 1990, p. 11). Resta-nos saber, à luz dos valores que ele identificou como essenciais para a literatura do futuro que já chegou, quais as contribuições que as novas formas de literatura eletrônica podem trazer para o território de formação leitora.

Escolhemos olhar para as obras de literatura eletrônica com uma ótica que parte do impresso, mas que busca valores para uma literatura de hoje, que se perpetua nos novos tempos, pois se partíssemos de um referencial que teoriza somente acerca da literatura eletrônica, perderíamos o potencial crítico e não avançaríamos na compreensão do seu real caráter literário. Na verdade, o foco de análise não é a literatura impressa, cujos valores de arte verbal já estão consolidados e seu estatuto de linguagem diferenciada é superprotegido (CULLER, 1999). Ou seja, ela será evidenciada como um contraponto nas categorias leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade.

A leveza, o primeiro valor defendido por Calvino, é apontada como uma característica fundamental para a literatura do novo milênio, dado o peso da vida humana e considerando que a arte literária pode levar o leitor a se abrir para outras perspectivas de mundo e a “considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle” (CALVINO, 1990, p. 19).

A literatura eletrônica, por sua própria essência, carrega o peso do hardware, pois precisa de uma máquina para realizar-se no encontro com o leitor, sendo mediada por materiais concretos e relativamente pesados, considerando as constantes mudanças nesses suportes com vistas à leveza. Porém, com o avanço da internet e dos recursos de software, a literatura eletrônica ganhou maior fluidez, uma vez que se apresenta “como bits de um fluxo de informação que corre sob a forma de impulsos eletrônicos. As máquinas de metal continuam a existir, mas obedientes aos bits sem peso” (CALVINO, 1990, p. 20).

Podemos, então, pensar a literatura eletrônica, em sua essência de software, suspendendo, por ora, o peso da máquina que a suporta em uma interface digital. Se tomarmos como exemplo a obra de literatura eletrônica Birds singing other

birds’song, de Maria Mencia, publicada na Coletânea de Literatura Eletrônica (2009), podemos identificar aspectos de leveza a partir das definições de Calvino (1990), como o despojamento da linguagem e a comunicação por meio das sensações despertadas na desconstrução da linguagem verbal, que forma imagens de pássaros, acompanhados do recurso de som, com certa precisão e determinação na construção de uma imagem figurativa de leveza, como podemos ver na ilustração abaixo.

Figuras 23 e 24: Obra de literatura eletrônica – Birds singing other birds’song (Fonte: Internet. Acesso: Mar; 2010).

Comprovadamente, a principal diferença que pode ser evidenciada entre as duas artes em evidência é que a literatura tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, na medida em que se recusa a dizer tudo para o leitor, por meio de vazios propositais que funcionam como convites à criação do leitor e, com isso, colocam em ação sua imaginação. Diferentemente, na obra de literatura eletrônica (destacada acima), a ação do leitor é selecionar e interagir com criações que já estão apresentadas, como uma sugestão verbal que leva o leitor-usuário a apreciar uma nova invenção da palavra. Ao comando do clique nos botões de play e de stop, os pássaros emergem em jogos de exploração do signo verbal, acompanhados de sons diferenciados, dependendo da escolha de seus usuários.

Já a literatura impressa manifesta sua leveza mais no vazio do que no peso, em um processo que é igualmente interativo, em um suporte que se manifesta como uma extensão da imaginação criadora do seu leitor; e mais: de seu braço e de sua linguagem, como podemos sentir nos versos do poema Palavras, de Manoel de Barros (2001):

Palavra dentro da qual estou há milhões de anos é árvore. Pedra também.

Eu tenho precedências para pedra. Pássaro também.

Não posso ver nenhuma dessas palavras que não leve um susto. Andarilho também.

Não posso ver a palavra andarilho que eu não tenha vontade de dormir debaixo de uma árvore.

Que eu não tenha vontade de olhar com espanto, de novo, aquele homem do saco a passar como um rei de andrajos nos arruados de minha aldeia.

E tem mais uma: as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvore (BARROS, 2001, p. 31).

Nas “palavras” de Barros (2001), é possível percebermos a literatura como um texto de função existencial e propositiva, que convoca os sentidos e o que há de essencialmente humano e pensante no leitor, já que oferece pistas para um processo de coautoria, que é ativo e “trabalhoso” para aquele que atribui sentido e preenche os vazios do texto.

Essa leveza está diretamente relacionada à rapidez, outro valor defendido por Calvino (1990) para a literatura do novo milênio. A literatura, em seu caráter inacabado, muito convoca a imaginação do leitor, na economia da narrativa, em que as palavras desencadeiam sentidos, sensações e sentimentos profundos. Assim,

Barros (2001), com sua economia de palavras e sem repetições, excessos e detalhes enfadonhos, surpreende, impacta e aciona no leitor sentidos profundos e inimagináveis, renovando a sua percepção e sugerindo imagens que o leitor jamais conseguiria vislumbrar, sem a poderosa chave da palavra. É literatura por seu aspecto

estilístico e estrutural, pela economia, o ritmo, a lógica essencial com que tais contos são narrados. [...] o texto original era muito lacônico e me propunha a recontá-lo respeitando-lhe a concisão e procurando dela extrair o máximo de eficácia narrativa e sugestão poética (CALVINO, 1990, p. 49).

O valor da rapidez é melhor enxergado na função narrativa da literatura e, no que se refere à literatura eletrônica, o gênero que melhor representa esse valor são os microcontos, considerados como um fenômeno literário recente que cresce consideravelmente na rede, com manifestações que priorizam a economia de palavras para sugerir uma imagem poética ou uma proposição narrativa, na busca do equilíbrio entre a leveza e a rapidez, na medida em que o leitor preenche as lacunas das narrativas. Na visão de Rettenmaier (2010), os microcontos digitais são textos que exigem muita colaboração do leitor, na tentativa de combinação entre a literariedade e a brevidade e atuam como “relatos que invertem a relação entre intensidade e extensão e que propõem um movimento metaliterário ao que fora aforismo e haikai, exigindo, assim, o máximo do leitor” (RETENMAIER, 2010, p. 124).

Um exemplo disponível na rede é a obra Ah, é?, de Dalton Trevisan, publicada em 1994 e considerada uma das obras mais expressivas de microcontos ou mini-histórias contemporâneas, da qual extraímos o conto abaixo.

Domingo inteiro em pijama, coça o umbigo. Diverte-se com os pequenos anúncios. Em sossego na poltrona, entende as borbulhas do gelo no copo de bebida. Uma velhice tranqüila, regando suas malvas à janela, em manga de camisa. Única dúvida: ganhará o concurso de palavras cruzadas? (TREVISAN,1994, http://www.releituras.com/daltontrevisan_ahe.asp).

Embora sejam mais frequentes na versão digital, dadas as facilidades de suporte de produção, de publicação e de acesso, esses textos também são recorrentes no meio impresso, dentre os quais chamamos a atenção para a obra

criada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, que nada perde em literariedade e é conhecida pelo modo como transcende aos gêneros de leitura convencionais. Assim ele reinventa a literatura, com um elogio à rapidez.

A paixão de dizer/2

Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas (GALEANO, 2002, p. 13).

Sobre o valor da rapidez, Calvino afirma que a economia de palavras torna a literatura propositiva, ao invés de impositiva, uma vez que, por esse procedimento, sugere caminhos para um exercício ágil de pensamento, no modo como promove uma experiência que vale por si mesma.

Numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita. A velocidade mental vale por si mesma, pelo prazer que proporciona àqueles que são sensíveis a esse prazer, e não pela utilidade prática que se possa extrair dela. Um raciocínio rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao contrário; mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza. [...] Nos tempos cada vez mais congestionados que nos esperam, a necessidade de literatura deverá focalizar-se na máxima concentração da poesia e do pensamento (CALVINO, 1990, p. 58).

Podemos dizer que a literatura eletrônica representada pelo gênero microcontos digitais responde ao critério da rapidez. Não obstante, outros gêneros narrativos são estruturados de maneira que levam à divagação do leitor, na medida em que se abrem para as suas decisões e chegam a imprimir, à leitura, pausas que sugerem a imprecisão e a falta de exatidão da obra.

Para pensarmos no terceiro valor defendido por Calvino (1990), a exatidão, tomaremos para análise a obra La pelota dorada, uma versão do conto tradicional O príncipe rã, dos Irmãos Grimm, adaptada em um ambiente predominantemente multimidiático, que se anuncia como literatura eletrônica participativa.

Figura 25: La pelota dorada, versão eletrônica do conto O príncipe rã, dos Irmãos Grimm, publicada como literatura eletrônica, disponível em site espanhol. (Fonte: Internet. Acesso:

Ago.; 2010).

Nessa obra, o leitor, em seu processo de cooperação com a narrativa, decide sobre os nomes dos personagens e sobre o animal que interpretará o tradicional papel do sapo. Assim, no desenrolar da narrativa, as decisões do leitor modificam os nomes dos personagens e o enredo, na medida em que o conto, recolhido da tradição cultural européia e modificado segundo o processo de construção da literatura infantil, vai sendo recriado para uma interface exclusivamente digital.

Figuras 26, 27 e 28: La pelota dorada, versão eletrônica do conto O príncipe rã, dos Irmãos Grimm, publicada como literatura eletrônica, disponível em site espanhol. (Fonte: Internet.

Acesso: Ago.; 2010).

Na visão de Calvino (1990), a literatura, por ser a arte que aproveita a linguagem como fonte criadora, explorando todas as possibilidades de ressignificação que ela suscita, deve ser o lugar da exatidão, em que a linguagem pode ser precisa, definida e bem planejada na escolha meticulosa das palavras, na forma como evoca imagens e como traduz as nuanças do pensamento e da imaginação.

Diante disso, a obra acima evidenciada, a despeito da interatividade que promove e do aparente apelo à colaboração do leitor, apresenta-se como uma proposta cujas imagens e textos que emergem no efeito rede de cascata, em telas de hipermídia, parecem oferecer ao leitor certa falta de exatidão que se traduz em linguagem vaga e imprecisa, sem espaços para uma atividade cognoscitiva do leitor, com a oferta ininterrupta de imagens estereotipadas e de uma narrativa que perde a força problematizadora, em nome do automatismo e do caráter imediato do contexto eletrônico.

Se comparado às possibilidades do impresso, esse texto poderia ser considerado como uma “narrativa tagarela”, nas palavras de Umberto Eco (1994, p. 55), aquela que não corresponde a “uma máquina preguiçosa que pede ao leitor para fazer parte de seu trabalho”; apresenta-se como uma máquina estática que oferece possibilidades de um trabalho que já está dado e que se repetirá em padrões predeterminados, segundo um comando do leitor que, para efeitos de literatura, não pode ser chamado de cooperação.

Decerto, o texto em análise não permite as divagações inferenciais, sem as quais o leitor vê-se impossibilitado de recorrer à sua própria experiência e à sua