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A heterogeneidade da Dependência do Álcool (DA)

1. Sintomas de privação graves: tremor tridimensional, sudação profusa e sintomas vegetativos graves Pode ocorrer Delirium Tremens que na história clínica representa uma síndrome grave de privação do

2.10 A heterogeneidade da Dependência do Álcool (DA)

A DA é um diagnóstico válido e de uso corrente. No entanto, a heterogeneidade apontada à sua definição e caracterização (critérios) e as limitações inerentes à sua aplicação clínica, reforçam o uso do paradigma das TA.

Actualmente, no âmbito da clínica e da investigação científica, aplica-se de uma forma transversal para o diagnóstico da DA, o manual Europeu Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), ou o seu congénere Americano, o Manual Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM). Em ambas as classificações, o procedimento de decisão provem de um conjunto de critérios pré-determinados, mas não específicos, o que possibilita a sua extensibilidade a todas as substâncias psicoactivas, potencialmente indutoras de comportamentos de dependência. Através da normatização da comunicação entre profissionais (clínica, investigação, seguradoras, farmacêuticas), estes sistemas de classificação vieram auxiliar a padronização da prática clínica diagnóstica e possibilitar, com maior rigor científico, o estudo epidemiológico da incidência e prevalência das dependências de substâncias pelas demais culturas. Comparando as duas classificações, verificou-se que a CID parece ser mais utilizada na clínica, enquanto a DSM no contexto de investigação (Mezzich, 2002).

Embora de utilização corrente e generalizada, estes sistemas de classificação têm comportado consideráveis adaptações. Por exemplo, a história da DSM tem sido algo dispersa no âmbito do diagnóstico do problema do consumo do álcool, observando-se várias reorganizações, durante os últimos 50 anos. Na sua primeira edição, datada do início dos anos cinquenta, a DSM-I (APA, 1952) empregava o termo “alcoolismo” enquanto entidade de diagnóstico. Porém, com pouco detalhe descritivo e enquadrada na subcategoria de “Perturbação de Personalidade Sociopática”. Na edição seguinte, DSM-II (APA, 1968), quase duas décadas depois, a categoria

conquistar alguma margem de independência, provavelmente, em virtude da forte influência do modelo contemporâneo de doença de Jellinek (1960). No início da década de oitenta, sob a influência do conceito de Síndrome de Dependência do Álcool, proposto por Edwards e Gross (1976), a terceira edição da DSM-III (APA, 1980) sofre uma das transformações mais significativas da história do manual de classificação nosológica, ao substituir o termo “alcoolismo” por duas entidades ainda vigentes, cada uma assente num conjunto de critérios específicos. A saber, “Abuso do álcool” e “Dependência do álcool” (DA). Os diagnósticos de Abuso e Dependência do álcool são removidos, definitivamente, da divisão das “Perturbações de Personalidade” e inauguram a secção denominada de “Perturbações do Uso de Substâncias” (PUS). Mais tarde, a edição DSM-III-R (APA, 1987) estabilizou a nomenclatura, preconizada pela secção das PUA e consagrou um conjunto de regras, para deliberar um diagnóstico. As edições seguintes, DSM-IV (APA, 1994) e a, ainda em vigor, DSM-IV-TR (APA, 2000), apenas sofreram pequenos ajustes.

Neste caso, o manual de classificação DSM-IV-TR (APA, 2000) distingue dois grandes grupos de perturbações relacionadas com o consumo de álcool, designadamente, as Perturbações de Utilização do Álcool (PUA) e as Perturbações Induzidas pelo Álcool (PIA). As PUA são, por sua vez, delimitadas na tipologia unidimensional: Abuso e Dependência do álcool. De uma maneira geral, o Abuso do álcool, caracteriza um padrão recorrente de problemas relacionados com o consumo do álcool num curto período de tempo (APA, 2000). A DA descreve a segunda categoria diagnóstica deste espectro bi-axial das PUA. A dependência introduz, na avaliação, a componente comportamental da perda de controlo e as dimensões fisiológicas da tolerância e síndrome de privação. A tabela IX reproduz os critérios da DSM-IV-TR para o diagnóstico de DA.

Tabela IX - Critérios do DSM-IV-TR para a dependência do álcool

Padrão desadaptativo da utilização de álcool, levando a défice ou sofrimento significativo, manifestado por 3 ou mais dos seguintes, em qualquer ocasião, no mesmo período de 12 meses:

1. Tolerância, definida por qualquer um dos seguintes:

a) Necessidade de quantidades crescentes de álcool para atingir a intoxicação ou o efeito desejado; b) Diminuição acentuada do efeito com a utilização continuada da mesma quantidade de álcool. 2. Abstinência, manifestada por qualquer um dos seguintes:

a) Síndrome de abstinência característica para o álcool;

b) O álcool (ou outra substância) é consumido para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.

3. O álcool é frequentemente consumido em quantidades superiores ou por um período mais longo do que se pretendia.

4. Existe desejo persistente ou esforços, sem êxito, para diminuir ou controlar a utilização de álcool.

5. É dispendida grande quantidade de tempo em actividades necessárias à obtenção (ex.: visitar médicos ou conduzir longas distâncias) e utilização de álcool, e à recuperação dos seus efeitos.

6. São abandonadas importantes actividades sociais, ocupacionais ou recreativas devido à utilização de álcool. 7. A utilização de álcool é continuada, apesar da existência de um problema persistente ou recorrente, físico ou psicológico, provavelmente, causado ou exacerbado pela utilização de álcool (ex.: manutenção do consumo de álcool , apesar do agravamento de uma úlcera, devida ao consumo deste).

Fonte: APA, 2000

Todavia, actualmente, os critérios de classificação da DSM são objecto de intensa investigação e debate na comunidade científica, sobretudo, com vista ao futuro aperfeiçoamento da sua próxima edição, a V, prevista para Maio de 2013 (APA, 2011). Discute-se, por exemplo, a validade da distinção entre o diagnóstico de abuso e DA. Enquanto, a validade do diagnóstico de DA parece consistente, muitas dúvidas subsistem quanto ao rigor do diagnóstico de abuso. Vários estudos criticam o valor prodrómico do diagnóstico de abuso, em relação à fase de dependência e demonstram no processo de decisão diagnóstica taxas de concordância entre pesquisadores relativamente baixas (Carpenter et al., 2006; Grant et al., 2001; Hasin et al., 1990, 1997; Schuckit et al., 2008).

O grupo de trabalho para as PUS para a DSM-V, recomenda a fusão dos dois diagnósticos, numa entidade única, graduada por gravidade clínica (APA, 2011).

Apesar da larga aceitação e difusão da DSM, o manual tem recebido algumas críticas na secção das PUA, principalmente, no que se refere ao uso de uma forma unitária e discreta do diagnóstico de DA, numa população de reconhecida heterogeneidade. De acordo com Epstein (2001), a limitada noção de DA, enquanto entidade nosológica unitária e discreta, reproduz-se, por exemplo, numa prática clínica diagnóstica redutoramente circunscrita à comunicação “tem ou não tem” DA. Ou então, quando no contexto de investigação, se verifica que a DA é tida, metodologicamente, sobre a forma unidimensional da presença ou ausência de diagnóstico, ou seja, "se o doente preenche ou não os critérios da classificação para dependência do álcool". No entanto, e, curiosamente, este diagnóstico é definido por uma vasta e heterogénea variedade de sintomas, que vão desde os sintomas cognitivos, aos comportamentais e/ou fisiológicos. Historicamente, o grupo de Babor et al. (1992a) foi dos que mais contestou a representação da DA enquanto perturbação unitária. Para os autores, a DA define sim, uma patologia neurocomportamental de desenvolvimento e diagnóstico multideterminado, que produz diferentes “cenários” clínicos organizados segundo representações sintomatológicas específicas (Babor et al., 1992a; Babor e Caetano, 2006). De acordo com Lesch et al., (2010), a "DA" tem correspondido a uma "noção" que se esforça por comunicar, explicar e objectivar, dentro das suas limitações, a confluência profusa de vários factores, que operam e contribuem para um padrão de comportamento, altamente complexo e maleável, como é o consumo patológico do álcool.

O processo de classificação da DSM-IV-TR (APA, 2000) para a DA, retrata bem a potencial heterogeneidade do problema, pois para que se determine um diagnóstico, apenas reclama a si três itens, de um total de sete. Deste modo, poderemos obter uma categoria nosológica discreta, que se faz representar por uma miríade de conjunções sintomatológicas, desde que satisfaça o número mínimo de três critérios. A DSM providencia também, uma definição bastante ampla da concepção de DA, o que, forçosamente, justifica a inclusão adicional de

exemplo, os denominados “especificadores”. Podem ser aplicados ao diagnóstico de DA, especificadores para distinção de classes de doentes, designadamente, de presença ou ausência de dependência fisiológica e de curso do problema: remissão total ou parcial precoce; remissão total ou parcial mantida e em ambiente controlado. Para além disso, os diagnósticos de abuso ou DA, que cursam frequentemente com toda uma série de co-morbilidades de eixos I e eixo II (APA, 2000), ostentam uma manifesta heterogeneidade na sua expressão clínica. Por exemplo, em termos da quantificação dos diagnósticos do uso de substâncias (um ou mais diagnósticos de abuso/dependência de álcool e/ou drogas; isto é, politoxicodependência); da história e padrão do uso da substância; dos aspectos sociais, familiares e demográficos e da co- morbilidade psiquiátrica co-existente. Todos estes factores, conhecidos por actuar na evolução da doença, na motivação para a procura de tratamento e nos seus resultados terapêuticos, são responsabilizados por modelar a expressão clínica do problema do álcool, gerando em simultâneo, sérios problemas quanto à correcta definição da natureza clínica do “alcoolismo”, ou de uma forma menos abrangente, da "DA". Curiosamente, o mesmo manual (APA, 2000) reproduz, nalgumas perturbações, a já longa tradição da psiquiatria em tipificar algumas patologias. Por exemplo, são definidos subtipos para a esquizofrenia, para as perturbações afectivas ou de ansiedade.