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TEORIAS QUE NÃO FUNCIONAM

A HIPÓTESE DA IGNORÂNCIA

A última teoria popular para explicar por que certos países são pobres e outros ricos é a hipótese da ignorância, segundo a qual a desigualdade existe no mundo porque nós ou nossos governantes não sabemos o que fazer para tornar ricos os países pobres. É uma ideia defendida por não poucos economistas, inspirados pela célebre de inição proposta pelo economista inglês Lionel Robbins, em 1935, segundo a qual a “economia é uma ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre os fins e meios escassos, que têm usos alternativos”.

Ficamos, assim, a um passo da conclusão de que a ciência econômica deveria enfocar o melhor uso de meios escassos para satisfazer os ins sociais. Com efeito, o mais famoso resultado teórico em economia, o

chamado Primeiro Teorema do Bem-Estar Social, identi ica as circunstâncias em que a alocação de recursos em uma “economia de mercado” torna-se, do ponto de vista econômico, desejável socialmente. A economia de mercado não passa de uma abstração para descrever aquela situação em que todos os indivíduos e empresas têm liberdade de produzir, comprar e vender os produtos ou serviços que bem entenderem. Se essas circunstâncias não estiverem presentes, diz-se que há “falha do mercado”. Tais falhas constituem a base de uma teoria da desigualdade no mundo, uma vez que, quanto mais elas seguirem sem solução, mais pobre o país provavelmente será. A hipótese da ignorância sustenta que os países pobres devem sua pobreza ao excesso de falhas de mercado e ao fato de que seus economistas e autoridades ignoram como livrar-se delas, tendo dado ouvidos aos conselhos errados no passado. Já os países ricos são ricos por terem concebido políticas melhores e conseguido eliminar tais falhas.

Seria a hipótese da ignorância capaz de explicar as desigualdades no mundo? Será possível que os países africanos são mais pobres do que o resto do planeta porque seus líderes tendem a partir das mesmas premissas equivocadas acerca do governo de seus países, levando ao quadro de pobreza, ao passo que os líderes da Europa Ocidental são mais bem informados ou orientados, o que explicaria seu relativo êxito? Embora haja alguns exemplos famosos de líderes que adotaram políticas desastrosas por terem se enganado a respeito de suas consequências, a ignorância pode, na melhor das hipóteses, explicar no máximo uma pequena parte das desigualdades mundiais.

Aparentemente, o declínio econômico contínuo que se instaurou em Gana após sua independência da Inglaterra foi causado por ignorância. O economista britânico Tony Killick, então atuando como consultor do governo de Kwame Nkrumah, registrou em detalhes uma série de dificuldades. As políticas de Nkrumah foram centradas no desenvolvimento da indústria estatal, o que se mostrou muito ineficiente. Killick recorda:

A fábrica de calçados [...] pelo transporte de couro teria ligado a fábrica de carne, no norte (através de uma distância de mais de 800 quilômetros), a um curtume no sul, atualmente abandonado; o couro seria então levado de volta para a fábrica de calçados em Kumasi, na área central do país, a cerca de 320 quilômetros do curtume. Uma vez que o principal mercado consumidor ica na região metropolitana de Acra, os sapatos teriam de voltar para o sul, sendo transportados por mais 320 quilômetros.

Killick, de certo modo, dá a entender que tal empreendimento “teve sua viabilidade solapada pela má localização de seus componentes”. A fábrica de calçados foi apenas um entre muitos projetos similares, entre eles a fábrica de manga enlatada, situada em uma região de Gana onde não havia plantações da fruta e cuja produção seria superior à demanda mundial do produto em sua totalidade. Essa interminável sucessão de empreitadas economicamente irracionais não pode ter sido causada por falta de informação ou ignorância de Nkrumah ou seus consultores com relação às políticas econômicas mais acertadas. A inal, eles contavam com pessoas como Killick e até Sir Arthur Lewis, vencedor do Prêmio Nobel, que estavam mais que cientes de que tais opções não dariam bons resultados. Contudo, o que determinou o formato assumido pelas políticas econômicas do país foi a necessidade de Nkrumah de utilizá-las para obter apoio político e, assim, dar sustentação ao seu regime totalitário.

Nem o decepcionante desempenho de Gana após a independência nem os inumeráveis outros casos de aparente desvario econômico podem ser atribuídos à ignorância. A inal, se fosse ela o problema, líderes bem- intencionados logo compreenderiam que alternativas seriam capazes de promover o aumento da renda e do bem-estar de seus cidadãos, e naturalmente as adotariam.

Consideremos as trajetórias divergentes de Estados Unidos e México. Responsabilizar a ignorância dos governantes dos dois países por tais disparidades é, para dizer o mínimo, altamente implausível. Não foram diferenças de conhecimento ou intenção entre John Smith e Cortés que causaram o afastamento entre os dois países ainda no período colonial, assim como não foram diferenças de conhecimento entre seus presidentes posteriores, como os americanos Teddy Roosevelt ou Woodrow Wilson e o mexicano Porfirio Díaz, que levaram o México a optar, entre o fim do século XIX e o começo do XX, por instituições econômicas que assegurariam o enriquecimento das elites em detrimento do resto da sociedade, enquanto Roosevelt e Wilson tomavam o caminho oposto. Pelo contrário, foram as distintas delimitações institucionais encontradas pelos presidentes e elites dos respectivos países. Analogamente, os governantes africanos que se deixaram debilitar, ao longo dos últimos 50 anos, pela fragilidade do direito

à propriedade e das instituições econômicas, acarretando o

empobrecimento da maior parte de seus povos, não permitiram que isso se desse por acreditarem que estavam fazendo boa economia, mas porque podiam fazê-lo impunemente e enriquecer à custa dos demais ou por acharem que seria uma boa política, que os manteria no poder mediante a

compra do apoio de grupos ou elites cruciais.

A experiência do primeiro-ministro de Gana em 1971, Ko i Busia, ilustra o quanto a hipótese da ignorância pode ser ilusória. Busia enfrentava uma perigosa crise econômica. Tendo ascendido ao poder em 1969, como o seu antecessor Nkrumah, adotou políticas econômicas insustentáveis e impôs vários mecanismos de controle de preços, por meio de organizações comerciais e da sobrevalorização cambial. Embora Busia tivesse feito oposição a Nkrumah e conduzisse um regime democrático, deparou-se com muitas das mesmas restrições políticas. Como havia acontecido com Nkrumah, suas políticas econômicas foram adotadas não em virtude de sua “ignorância” e crença de que estava pondo em prática uma boa economia ou uma maneira ideal de promover o desenvolvimento de seu país. Tais opções foram feitas por serem boa política, que permitiria a Busia transferir recursos para grupos politicamente poderosos – nas áreas urbanas, por exemplo – que precisavam ser mantidos satisfeitos. Os controles de preços esmagaram a agricultura, proporcionando alimentos baratos para os grupos urbanos e gerando receita para inanciar os gastos do governo. Todavia, esses controles eram insustentáveis. Gana logo sofreria de uma série de crises no balanço de pagamentos e escassez de moeda estrangeira. Diante de tamanhos dilemas, em 27 de dezembro de 1971, Busia assinou um acordo com o Fundo Monetário Internacional que incluía a desvalorização em massa da moeda do país.

O FMI, o Banco Mundial e toda a comunidade internacional pressionavam Busia para implementar as reformas previstas no acordo. Embora as instituições internacionais ignorassem alegremente o fato, Busia estava plenamente ciente das implicações daquela aposta política. A consequência imediata da desvalorização da moeda foi uma série de levantes e tumultos em Acra, capital de Gana, que sofreu escalada vertiginosa até Busia ser derrubado pelos militares, encabeçados pelo Tenente-Coronel Acheampong, que imediatamente tratou de reverter a desvalorização.

A hipótese da ignorância distingue-se das hipóteses geográ ica e cultural à medida que implica uma pronta sugestão sobre como “solucionar” o problema da pobreza: se foi a ignorância que nos trouxe até aqui, basta contar com autoridades e governantes esclarecidos e bem informados para sair deste lugar e, assim, “implementar” a prosperidade em todo o mundo, mediante a divulgação das orientações corretas e o convencimento dos políticos acerca do que seria uma economia de qualidade. No entanto, a experiência de Busia sublinha o fato de que o

principal obstáculo à adoção de políticas capazes de reduzir as falhas do mercado e estimular o crescimento econômico não é a ignorância das autoridades, mas os incentivos e restrições que lhes são impostos pelas instituições políticas e econômicas em suas sociedades.

Ainda que a hipótese da ignorância reine soberana entre a maior parte dos economistas e nos altos círculos do Ocidente – que, excluindo

praticamente qualquer outra possibilidade, concentram-se na

implementação mecânica da prosperidade –, é só mais uma hipótese que não dá certo. Não explica a origem da prosperidade no mundo nem as circunstâncias em que estamos imersos – por exemplo, por que determinados países, como México e Peru, mas não Estados Unidos ou Inglaterra, adotaram instituições e políticas que levariam ao empobrecimento da maioria dos seus cidadãos ou por que quase toda a África subsaariana e a maior parte da América Central são tão mais pobres do que a Europa Ocidental ou o Leste Asiático.

Quando os países rompem com os padrões institucionais que os mantinham condenados à pobreza e conseguem enveredar por um caminho de crescimento econômico, não é porque seus líderes ignorantes de repente se tornaram mais bem informados ou menos egocêntricos, ou porque passaram a ser orientados por economistas melhores. A China, por exemplo, é um dos países que substituíram as políticas econômicas conducentes à pobreza e à fome de milhões por outras de estímulo ao crescimento econômico. Entretanto, como discutiremos adiante em maior profundidade, isso não se deu porque o Partido Comunista chinês inalmente compreendeu que a propriedade coletiva das terras agrícolas e da indústria constituíam péssimos incentivos econômicos. Assim, Deng Xiaoping e seus aliados, que não eram menos egocêntricos que seus adversários, mas tinham outros interesses e objetivos políticos, derrotaram seus poderosos oponentes no Partido Comunista e planejaram uma espécie de revolução política mudando radicalmente a liderança e a direção do partido. Suas reformas econômicas, que criaram incentivos de mercado à agricultura, e posteriormente à indústria, foram consequências dessa transformação política. Foi a política que determinou a passagem do comunismo para os incentivos de mercado na China, não orientações melhores ou um melhor entendimento do funcionamento da economia.

DEFENDEMOS QUE, para compreender as desigualdades do mundo, é preciso

entender por que algumas sociedades são organizadas de maneiras muito ine icazes e socialmente indesejáveis. Os países, às vezes, conseguem

adotar instituições e icientes e alcançar a prosperidade – mas, infelizmente, são casos raros. A maioria dos economistas e autoridades concentra-se em “acertar”, quando o que é de fato necessário é uma explicação de onde os países pobres estão “errando”. E “erram”, basicamente, não por uma questão de ignorância ou cultura. Como pretendemos mostrar, os países pobres são pobres porque os detentores do poder fazem escolhas que geram pobreza. Erram, não por equívoco ou ignorância, mas de propósito. Para entender melhor, o leitor terá de ir além da economia e das orientações dos especialistas acerca do melhor a fazer e, em vez disso, estudar como as decisões são efetivamente tomadas, quem são seus autores e por que eles decidem fazer o que fazem. Estamos no campo da política e dos processos políticos. A economia tradicionalmente ignora a política, mas compreendê-la é crucial para explicar as desigualdades do mundo. Como observou o economista Abba Lerner, na década de 1970, “a economia conquistou o título de Rainha das Ciências Sociais ao escolher como domínio problemas políticos já resolvidos”.

Defendemos que a conquista da prosperidade depende da resolução de certos problemas políticos básicos. É exatamente por partir do pressuposto de que os problemas políticos já foram solucionados que a economia torna-se incapaz de apresentar uma explicação convincente das desigualdades mundiais. Para explicá-las, a economia ainda terá de compreender como os diferentes tipos de políticas e acordos sociais afetam os incentivos e comportamentos econômicos. Mas, para tanto, precisará também da política.

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