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PEQUENAS DIFERENÇAS E CONJUNTURAS CRÍTICAS: O PESO DA HISTÓRIA

O EXTRATIVISMO INSTÁVEL

A agricultura emergiu de maneira independente em várias regiões do mundo. No atual México, formaram-se sociedades que estabeleceram Estados e povoações e aderiram à agricultura. Como no caso dos natu ianos, no Oriente Médio lograram também algum grau de crescimento econômico. As cidades-estados maias, que se estendiam pelo sul do México, Belize, Guatemala e oeste de Honduras, constituíram de fato uma civilização bastante so isticada, com suas instituições extrativistas peculiares. A experiência maia aponta não só para a possibilidade de crescimento sob instituições extrativistas, mas também para outro limite fundamental desse tipo de crescimento: a instabilidade política daí decorrente – a qual, em última instância, leva ao colapso tanto da sociedade quanto do Estado, à medida que diferentes grupos e pessoas se digladiam para controlar os meios extrativistas.

As cidades maias começaram a se desenvolver por volta de 500 a.C. Essas primeiras experiências acabaram fracassando, em algum momento do século I d.C. Surgiu então um novo modelo político, lançando as bases para a Era Clássica, entre 250 e 900 d.C. – período marcado pelo pleno

lorescimento da cultura e civilização maias. Entretanto, essa civilização mais so isticada também entraria em colapso, no decorrer dos 600 anos seguintes. Por ocasião da chegada dos conquistadores espanhóis, no começo do século XVI, os grandes templos e palácios de cidades maias

como Tikal, Palenque e Calakmul haviam sido engolidos pela selva e só seriam redescobertos no século XIX.

As cidades maias nunca chegaram a uni icar-se em um império, ainda que algumas fossem subordinadas a outras e haja indícios frequentes de cooperação, sobretudo na guerra. O principal vínculo entre as cidades- estados da região, 50 das quais são reconhecíveis por seus respectivos glifos, era o idioma: seus habitantes falavam cerca de 31 línguas distintas, mas intimamente relacionadas. Os maias desenvolveram um sistema de escrita do qual sobreviveram pelo menos 15 mil inscrições que descrevem diversos aspectos da vida, cultura e religião de suas elites. Dispunham também de um calendário so isticado para o registro de datas. Conhecido como Contagem Longa, era bem semelhante ao nosso próprio sistema, à medida que contabilizava o desdobramento dos anos a partir de uma data ixa e era utilizado por todas as cidades maias. A contagem longa tinha início em 3114 a.C., embora não saibamos o signi icado atribuído pelos maias a essa data, que antecede em muito o surgimento de qualquer sociedade semelhante à sua.

Os maias eram rematados construtores, tendo chegado de maneira independente à invenção do cimento. Seus edi ícios e inscrições fornecem informações vitais sobre a história de suas cidades, pois costumavam registrar os acontecimentos, seguindo a datação da contagem longa. Assim, um exame dessas construções permite aos arqueólogos contabilizar quantos edi ícios foram concluídos em determinados anos. Poucos monumentos datam de cerca de 500 d.C. Por exemplo: no ano que, na contagem longa, corresponde a 514 d.C., foram registrados apenas 10. Houve então uma expansão constante, chegando a 20 em 672 d.C. e a 40 em meados do século VIII. Depois disso, o número de monumentos datados despenca. No século IX, volta para 10 por ano e, no século X, desce a zero. Essas inscrições datadas nos proporcionam uma clara visão da expansão das cidades maias e sua subsequente contração, a partir do inal do século VIII.

Essa análise das datas pode ser complementada pelo exame das listas de monarcas registradas pelos maias. Na cidade maia de Copán, hoje no oeste de Honduras, há um monumento célebre, conhecido como Altar Q. O Altar Q contém o nome de todos os reis desde o fundador da dinastia, K’inich Yax K’uk’ Mo’, ou “Rei Sol Primeiro/ Arara Quetzal Verde”, cujo nome era uma homenagem não só ao Sol, mas também a duas das aves exóticas da selva centro-americana, cujas penas eram muito valorizadas pelos maias. K’inich Yax K’uk’ Mo’ ascendeu ao poder em Copán em 426

d.C., como nos informa a data da contagem longa no Altar Q. Fundou uma dinastia que reinaria por 400 anos. Alguns de seus descendentes tiveram nomes igualmente descritivos. O glifo do 13o traduz-se como “Coelho 18”,

cujos sucessores seriam “Macaco de Fumaça” e “Concha de Fumaça”, que viria a falecer em 763 d.C. O último nome da lista é o do Rei Yax Pasaj Chan Yoaat, ou “Primeiro Deus do Relâmpago do Céu do Sol Nascido”, que foi o 16o governante da dinastia e assumiu o poder com a morte de Concha de

Fumaça. Depois dele, temos notícia de apenas mais um rei, Ukit Took (Protetor da Pederneira), a partir de um fragmento de altar. Após Yax Pasaj, a construção de edi ícios e as inscrições são interrompidos, e ao que tudo indica a dinastia seria derrubada pouco depois. Ukit Took provavelmente nem tinha direito real ao trono; não devia passar de um usurpador.

Há uma última leitura possível das evidências de Copán, desenvolvida pelos arqueólogos Ann Corinne Freter, Nancy Gonlin e David Webster. Esses pesquisadores mapearam a ascensão e queda da cidade por meio da análise demográ ica do Vale de Copán ao longo de um período de 850 anos, de 400 a 1250 d.C., por meio da técnica de hidratação da obsidiana, que calcula o conteúdo de água da obsidiana na época de sua extração. Uma vez extraída a obsidiana, seu conteúdo de água cai a uma razão conhecida, o que permite aos arqueólogos calcular a data de mineração de determinado fragmento. Freter, Gonlin e Webster situaram, assim, quando diferentes pedaços de obsidiana foram encontrados no Vale de Copán e monitoraram a expansão e posterior contração da cidade. Como é possível fazer uma projeção razoável do número de casas e edi ícios em determinada área, pode-se estimar a população total da cidade. No período de 400-449 d.C., a população era insigni icante, avaliada em cerca de 600 habitantes. Cresceu de maneira continuada até um ápice de 28 mil, em 750-799 d.C. Pelos nossos parâmetros urbanos contemporâneos, o número não impressiona, mas era gigantesco para a época; a população de Copán superava a de Londres ou Paris no mesmo período. Outras cidades maias, como Tikal e Calakmul, eram, sem dúvida, muito maiores. Em consonância com evidências das datas da contagem longa, 800 d.C. assinalou o apogeu populacional de Copán. A partir daí, iniciou-se um declínio e, em 900 d.C., a população caíra para cerca de 15 mil pessoas; dali por diante, houve uma redução contínua até que, em 1200 d.C., ela havia voltado aos patamares de 800 anos antes.

O fundamento do desenvolvimento econômico dos maias da Era Clássica foi o mesmo dos bushong e natu ianos: a criação de instituições

extrativistas com algum grau de centralização do Estado. Tais instituições caracterizavam-se por uma série de elementos centrais. Por volta de 100 d.C., na cidade de Tikal, na Guatemala, surgiu um novo tipo de reino dinástico. Estabeleceu-se uma classe dominante baseada no ajaw (senhor ou governante), com um rei intitulado k’uhul ajaw (senhor divino) e, abaixo dele, uma hierarquia de aristocratas. O senhor divino organizava a sociedade com a cooperação dessas elites, além de comunicar-se com os deuses. Até onde se sabe, esse novo conjunto de instituições políticas não admitia nenhum tipo de participação popular, mas trouxe estabilidade. O k’uhul ajaw aumentou os impostos dos agricultores e organizou a mão de obra de modo a possibilitar a construção dos grandes monumentos, e a coalescência dessas instituições seria a pedra angular de uma impressionante expansão econômica. A economia maia baseava-se em ampla especialização ocupacional, com ceramistas, tecelões, marceneiros, ferramenteiros e fabricantes de ornamentos altamente quali icados. Comercializavam ainda obsidiana, peles de jaguar, conchas marinhas, cacau, sal e penas, entre si e com outras cidades, chegando até o México. Provavelmente dispunham também de alguma forma de dinheiro e, como os astecas, usavam sementes de cacau como moeda.

O modo como a Era Clássica maia foi fundada na criação de instituições políticas extrativistas foi muito similar à situação entre os bushong, tendo Yax Ehb’ Xook, de Tikal, papel similar ao do Rei Shyaam. As novas instituições políticas fomentaram signi icativo aumento da prosperidade econômica, de boa parte da qual a nova elite, organizada em torno do k’uhul ajaw, apropriava-se em seguida. Uma vez consolidado esse sistema, porém, por volta de 300 d.C., praticamente não voltou a haver mudanças tecnológicas. Embora haja alguma evidência de aprimoramentos nas técnicas de irrigação e abastecimento de água, a tecnologia agrária era rudimentar e, ao que tudo indica, assim permaneceu. Embora as técnicas arquitetônicas e artísticas tenham ganhado muito em so isticação com o passar do tempo, no geral houve pouca inovação.

Não havia destruição criativa. Não faltaram, porém, outras formas de destruição, já que a riqueza gerada pelas instituições extrativistas para o k’uhul ajaw e a elite maia desencadeava guerras constantes, que com o tempo só izeram recrudescer. A sequência de con litos é registrada nas inscrições maias, com glifos especí icos indicando a ocorrência de uma guerra em determinada data da contagem longa. O planeta Vênus era o patrono celestial da guerra, e os maias consideravam determinadas fases da órbita do planeta particularmente propícias para o início das

hostilidades. O glifo indicador de con litos, conhecido pelos arqueólogos como “guerra nas estrelas”, mostra uma estrela despejando sobre a terra um líquido que pode ser água ou sangue. As inscrições revelam também padrões de aliança e competição. Os Estados maiores, como Tikal, Calakmul, Copán e Palenque, envolviam-se em intermináveis disputas pelo poder, e no processo subjugavam os Estados menores, obrigando-os à vassalagem – como indicam os glifos que assinalam as acessões ao trono, que começam a indicar, nessa época, que os Estados menores passaram a ser regidos por governantes externos. O Mapa 10 mostra as principais cidades maias e os vários padrões de contato entre elas, tal como reconstruídos pelos arqueólogos Nikolai Grube e Simon Martin. Tais padrões indicam que, embora as grandes cidades – como Calakmul, Dos Pilas, Piedras Negras e Yaxchilan – tivessem amplos contatos diplomáticos, algumas eram com frequência dominadas por outras, além de lutarem entre si.

A constatação irretorquível com relação ao colapso maia é que ela coincide com a derrubada do modelo político baseado no k’uhul ajaw. Vimos em Copán que, após a morte de Yax Pasaj, em 810 d.C., não houve mais reis. Por volta dessa época, os palácios reais foram abandonados. Trinta quilômetros ao norte de Copán, na cidade de Quiriguá, o último monarca, Céu de Jade, subiu ao trono entre 795 e 800 d.C. O último monumento datado é de 810 d.C. pela contagem longa, mesmo ano da morte de Yax Pasaj. A cidade seria abandonada pouco depois. Em todo o território maia, a história é a mesma; as instituições políticas que haviam criado o contexto para a expansão do comércio, agricultura e população desapareceram. Cortes reais deixaram de funcionar, cessaram as gravações em monumentos e templos, e os palácios icaram desertos. À medida que as instituições políticas e sociais eram desbaratadas, revertendo o processo de centralização do Estado, a economia entrou em contração e os níveis populacionais despencaram.

Em certos casos, os principais centros sucumbiram à violência generalizada. A região de Petexbatun, na Guatemala – onde os grandes templos seriam posteriormente derrubados para que as pedras fossem empregadas na construção de muralhas defensivas – constitui um exemplo claro. Como veremos no próximo capítulo, foi um caso muito semelhante ao do im do Império Romano. Mais tarde, em lugares como Copán, onde há menos sinais de violência na época do colapso, muitos monumentos seriam des igurados ou destruídos. Em alguns lugares, a elite permaneceu mesmo após a queda do k’uhul ajaw. Em Copán, há indícios de que a elite ainda

construiria novos edi ícios por pelo menos mais 200 anos, antes de inalmente também desaparecer. Em outros lugares, as elites parecem ter se extinguido junto com o senhor divino.

As evidências arqueológicas existentes não nos permitem chegar a uma conclusão de initiva acerca do porquê da deposição do k’uhul ajaw e das elites que o cercavam nem do colapso das instituições que haviam desencadeado a Era Clássica maia. Sabemos que isso se deu no contexto de um recrudescimento dos con litos entre as cidades e, ao que tudo indica, oposição e insurreições dentro das próprias cidades, talvez conduzidas por facções rivais dentro da elite, derrubaram a instituição.

Embora as instituições extrativistas criadas pelos maias tenham gerado su iciente riqueza para que as cidades lorescessem e a elite enriquecesse e produzisse uma arte so isticada e construções monumentais, o sistema não era estável. As instituições extrativistas que fundamentavam o poder dessa pequena elite engendraram uma desigualdade generalizada, aprofundando assim o potencial de con litos entre os possíveis bene iciários da riqueza extraída do povo. Foram essas disputas as responsáveis, em última instância, pelo desmoronamento da civilização maia.