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PEQUENAS DIFERENÇAS E CONJUNTURAS CRÍTICAS: O PESO DA HISTÓRIA

O LONGO VERÃO

Por volta de 15000 a.C., a Era Glacial chegou ao im e o clima na Terra começou a esquentar. Indícios coletados em núcleos de gelo da Groenlândia sugerem que as temperaturas médias subiram cerca de 15°C em um breve período – o que coincidiu, ao que parece, com um abrupto aumento da população humana, já que o aquecimento global teria propiciado uma expansão das espécies animais e a disponibilidade bem maior de alimentos e plantas silvestres. O processo foi rapidamente revertido em torno de 14000 a.C., durante um período de esfriamento conhecido como Dryas Recente;k após 9600 a.C., porém, as temperaturas

globais voltaram a subir, ganhando cerca de 7°C em menos de uma década, tendo permanecido elevadas desde então, o que o arqueólogo Brian Fagan chama de Longo Verão. O aquecimento do clima constituiu uma enorme circunstância crítica, que serviria de pano de fundo para a Revolução Neolítica, mediante a qual as sociedades humanas realizaram a transição para a vida sedentária, a agricultura e a pecuária. Esses acontecimentos, assim como toda a história humana subsequente, se desenrolaram no calor desse Longo Verão.

Há uma diferença fundamental entre agricultura e pecuária e caça e coleta. As duas primeiras baseiam-se na domesticação de espécies vegetais e animais, com ativa intervenção em seus ciclos de vida, inclusive promovendo alterações genéticas de modo a aumentar sua utilidade para os humanos. A domesticação constitui uma mudança tecnológica que possibilita aos seres humanos aumentar muito a produção de alimentos a partir dos vegetais e animais existentes. A domesticação do milho, por exemplo, teve início com a coleta do teosinto, planta silvestre que foi sua ancestral. Os sabugos de teosinto são muito pequenos, com no máximo alguns centímetros de comprimento. Perto de um sabugo de milho atual, são minúsculos. Pouco a pouco, contudo, por meio da seleção das espigas maiores de teosinto e outras plantas cujas espigas não se abriam, mas permaneciam na haste para serem colhidas, os seres humanos criaram o milho moderno, um produto capaz de proporcionar muito mais nutrição a partir do mesmo pedaço de terra.

As mais antigas evidências de agricultura, pecuária e domesticação de vegetais e animais foram encontradas no Oriente Médio, sobretudo na

região conhecida como Flancos Montanhosos, que se estende do sul do atual Israel, sobe através da Palestina e da margem ocidental do Rio Jordão, passa pela Síria e penetra pelo sudeste da Turquia, norte do Iraque e oeste do Irã. Por volta de 9500 a.C., as primeiras plantas domésticas – o farro (Triticum dicoccum) e um tipo de cevada de duas ileiras de grãos – eram encontradas em Jericó, na margem ocidental do Rio Jordão, na Palestina; e farro, ervilhas e lentilhas, em Tell Aswad, mais ao norte, na Síria. Ambas as localidades correspondiam à chamada cultura natu iana e sustentavam aldeias de grande porte; a de Jericó contava com uma população de talvez 500 habitantes na época.

Por que as primeiras aldeias camponesas surgiram aqui e não em qualquer outro lugar? Por que foram os natu ianos, e não algum outro povo, que domesticaram as ervilhas e lentilhas? Foi um golpe de sorte eles por acaso viverem em uma região onde havia grande variedade de potenciais candidatos à domesticação? Sim, também; contudo, muitos outros povos viviam em meio a essas mesmas espécies, e não as domesticaram. Como vimos no Capítulo 2, nos Mapas 4 e 5, pesquisas de geneticistas e arqueólogos visando ao mapeamento da distribuição dos ancestrais silvestres dos vegetais e animais domésticos modernos revelam que muitos desses ancestrais espalhavam-se por áreas muito vastas, de milhões de quilômetros quadrados. Os ancestrais silvestres das espécies domésticas de animais espalhavam-se por toda a Eurásia. Por mais que os Flancos Montanhosos fossem particularmente bem-dotados em termos de espécies silvestres cultiváveis, esta estava longe de ser uma peculiaridade exclusiva. Não foi o fato de os natu ianos viverem em uma região com características únicas que fez a diferença, mas o fato de eles terem se sedentarizado antes de iniciar a domesticação de plantas e animais. Uma evidência é fornecida pelos dentes das gazelas, que são compostos de cemento, um tecido ósseo conectivo que se desenvolve em camadas. Durante a primavera e o verão, quando o cemento cresce mais rápido, as camadas têm cor diferente daquelas formadas no inverno. O corte transversal de um dente mostra a cor da última camada formada antes da morte da gazela, o que permite determinar se o animal foi morto no verão ou no inverno. Nas áreas habitadas pelos natu ianos, encontram-se gazelas mortas em todas as estações do ano, o que é indicativo de uma residência ixa ao longo do ano. A aldeia de Abu Hureyra, no Rio Eufrates, é uma das povoações natu ianas mais estudadas. Durante quase 40 anos, os arqueólogos examinaram as camadas da aldeia, que constitui um dos mais bem documentados exemplos de vida sedentária antes e depois da

transição para a agricultura. O povoamento teve início provavelmente por volta de 9500 a.C., e seus habitantes ainda prosseguiram em seu estilo de vida de caçadores e coletores por cerca de 500 anos antes de adotarem a agricultura. Os arqueólogos estimam que a população da aldeia, antes da agricultura, oscilava entre 100 e 300 membros.

Pode-se imaginar todo tipo de motivo para uma sociedade considerar vantajoso sedentarizar-se. O deslocamento constante é custoso; crianças e velhos têm de ser carregados, e em movimento é impossível armazenar alimentos para os períodos de escassez. Ademais, ferramentas como foices e pedras de moer são úteis para o processamento de alimentos silvestres, mas pesados para transportar. Há evidências de que mesmo caçadores e coletores nômades costumavam armazenar alimentos em determinados locais, como cavernas. Uma das vantagens do milho é o fato de ser muito resistente à armazenagem, o que foi um dos principais motivos de seu cultivo ter sido tão amplamente adotado nas Américas. A possibilidade de administrar de maneira mais e icaz a armazenagem e os estoques acumulados de alimentos deve ter constituído incentivo primordial para a adoção de um estilo de vida sedentário. Por mais que o sedentarismo possa ser desejável para a coletividade, isso não signi ica que necessariamente sobrevirá. Um grupo nômade de caçadores e coletores teria de concordar em ixar-se ou ver-se forçado a fazê-lo. Alguns arqueólogos sugerem que o aumento da densidade demográ ica e a queda dos padrões de vida foram determinantes na ocorrência do sedentarismo, obrigando povos nômades a estabelecer-se em um só lugar. No entanto, a densidade das áreas habitadas por natu ianos não é maior do que as de grupos anteriores, de modo que nada parece sugerir um aumento da densidade populacional. Evidências ósseas e dentárias tampouco indicam deterioração da saúde. Por exemplo, a escassez de alimentos faz surgirem linhas inas no esmalte dos dentes, quadro chamado de hipoplasia. Na verdade, essas linhas são menos prevalentes entre os natufianos que em povos agrícolas posteriores. Ainda mais signi icativa é a constatação de que, embora o sedentarismo tivesse seus prós, apresentava também muitos contras. A resolução de con litos era provavelmente bem mais di ícil entre os grupos sedentários, uma vez que as divergências não seriam facilmente resolvidas pela mera partida de pessoas ou grupos inteiros. A partir do momento em que as pessoas haviam construído habitações permanentes e possuíam mais bens do que podiam carregar, ir embora se tornava uma opção muito menos atraente. Assim, as aldeias precisavam de formas mais e icazes de resolução de con litos e noções mais elaboradas de propriedade. Era

preciso de inir quem teria acesso a que partes do terreno ao redor da aldeia ou quem colheria as frutas de que ileiras de árvores e pescaria em que parte do rio. Tornou-se necessário não só desenvolver regras, mas as instituições que as criariam e zelariam pelo seu cumprimento.

Para que o sedentarismo tenha podido emergir parece plausível supor que os caçadores e coletores tenham sido forçados a ixar-se, o que por sua vez teria de ter sido precedido por uma inovação institucional que concentrasse o poder nas mãos de um grupo que constituiria a elite política, fazendo valer os direitos de propriedade, mantendo a ordem e bene iciando-se de seu status para extrair recursos do resto da sociedade. De fato, é provável que uma revolução política similar àquela iniciada pelo Rei Shyaam, ainda que em escala mais modesta, tenha marcado a ruptura que acabou produzindo o sedentarismo.

Os indícios arqueológicos de fato nos dão razões para crer que os natu ianos desenvolveram uma sociedade complexa, caracterizada pela existência de hierarquia, ordem e desigualdade – os primórdios do que reconheceríamos como instituições extrativistas – muito antes de se tornarem agricultores. Um forte indício de tal hierarquia e desigualdade é fornecido pelos túmulos natu ianos. Algumas pessoas eram enterradas com grande quantidade de obsidiana e conchas de dentálio, oriundas do litoral mediterrâneo, próximo ao Monte Carmelo. Outros tipos de ornamentação incluem colares, braçadeiras e braceletes, confeccionados com caninos, falanges de cervos e conchas. Outras pessoas eram enterradas sem nada disso. As conchas e a obsidiana eram comercializadas, e o controle dessas mercadorias muito provavelmente constituía uma fonte de acumulação de poder e desigualdade. Outras evidências de desigualdades econômicas e políticas foram encontradas na localidade natu iana de Ain Mallaha, ao norte do Mar da Galileia. Em meio a um agrupamento de cerca de 50 cabanas redondas e muitos poços, claramente usados para armazenagem, há uma construção de grande porte, coberta de argamassa reforçada, próxima a um amplo espaço central – quase certamente, a habitação de um chefe. Entre os túmulos ali encontrados, alguns são muito mais elaborados, havendo também indícios de adoração a crânios – possivelmente um culto aos ancestrais, característico das povoações natu ianas, sobretudo Jericó. A maioria das evidências natu ianas indica que provavelmente já se tratava de sociedades com instituições elaboradas, que determinavam a herança do status de elite e que se dedicavam ao comércio com locais distantes e dispunham de formas incipientes de religião e hierarquias políticas.

A emergência de elites políticas muito provavelmente acarretou a transição, primeiro, para o sedentarismo, e depois para a agricultura. Como revelam os povoamentos natu ianos, a vida sedentária não implicava necessariamente adesão à agricultura e à pecuária. O povo podia ixar-se, mas continuar vivendo da caça e da coleta. A inal, o Longo Verão tornou as plantas silvestres mais abundantes, o que provavelmente tornaria a caça e a coleta mais atraentes. A maioria das pessoas se satisfaria com uma vida de subsistência baseada na caça e na coleta, o que não demandaria maiores esforços. Ademais, a inovação tecnológica não fomentaria necessariamente um aumento da produção agrícola; de fato, sabe-se que uma importante inovação tecnológica, a introdução do machado de aço entre os aborígenes australianos conhecidos como Yir Yoront , levou não a uma intensi icação da produção, mas a maior número de horas de sono, à medida que permitiu que as necessidades de subsistência fossem atendidas com mais facilidade, com poucos incentivos para trabalhar mais.

Segundo a explicação tradicional da Revolução Neolítica, baseada em fatores geográ icos – peça central do argumento de Jared Diamond, que vimos no Capítulo 2 –, o processo teria sido de lagrado pela disponibilidade fortuita de diversas espécies vegetais e animais facilmente domesticáveis, o que teria tornado atraentes a agricultura e a pecuária e induzido ao sedentarismo. Depois que as sociedades se houvessem sedentarizado e adotado a agricultura, aí se teria iniciado o desenvolvimento da hierarquia, da religião e de instituições signi icativamente mais complexas. Ainda que essa hipótese tradicional goze de ampla aceitação, as evidências natu ianas sugerem que, na verdade, ela coloca o carro adiante dos bois. As mudanças institucionais se deram algum tempo antes de as sociedades fazerem a transição para a agricultura, tendo provavelmente sido a causa tanto da adoção do sedentarismo, que por sua vez reforçou as mudanças, quanto, posteriormente, da Revolução Neolítica. Esse padrão é sugerido não só pelos indícios encontrados nos Flancos Montanhosos, a região mais amplamente estudada, mas também pela maioria das evidências das Américas, África subsaariana e Leste Asiático.

Sem dúvida, a transição para a agricultura não só acarretou maior

produtividade agrícola como possibilitou considerável expansão

populacional. Por exemplo, em locais como Jericó e Abu Hureyra, é notório que a aldeia, nos primórdios da agricultura, era bem maior do que antes. Em geral, as aldeias cresciam duas a seis vezes após a transição. Ademais, muitos dos fatos que se costuma alegar terem decorrido da transição sem dúvida aconteceram. Deu-se maior especialização ocupacional e aceleração

do progresso tecnológico, e provavelmente o desenvolvimento de instituições políticas mais complexas e talvez menos igualitárias. Contudo, a ocorrência desses fatores em cada lugar especí ico era determinada não pela disponibilidade de espécies vegetais e animais, mas pela adesão daquela sociedade às inovações institucionais, sociais e políticas capazes de possibilitar o sedentarismo e, depois, o surgimento da agricultura.

Embora o Longo Verão e a presença de espécies vegetais e animais tenham tornado tudo isso possível, não determinavam onde ou quando exatamente, após o aquecimento do clima, o processo se daria. Pelo contrário, o que era determinante era a interação entre uma circunstância crítica, o Longo Verão, com pequenas mas signi icativas peculiaridades institucionais que faziam a diferença. À medida que as temperaturas aumentavam, algumas sociedades, como os natu ianos, desenvolveram elementos de instituições centralizadas e hierarquia, ainda que em escala muito menor que a dos modernos Estados nacionais. Como os bushong sob Shyaam, as sociedades reorganizaram-se de modo a tirar proveito das maiores oportunidades criadas pela superabundância de animais e plantas silvestres, e sem dúvida as elites políticas foram as maiores bene iciárias dessas novas oportunidades e do processo de centralização política. Outros lugares, cujas instituições eram apenas ligeiramente diferentes, não permitiram que suas elites políticas tirassem proveito similar dessa circunstância e icaram para trás no processo de centralização política e criação de sociedades sedentárias e agrícolas mais complexas. Assim, estava preparado o terreno para uma disparidade subsequente exatamente do mesmo tipo que já vimos. Uma vez surgidas essas divergências, elas se disseminaram para certos lugares, mas não para outros. Por exemplo, a agricultura difundiu-se do Oriente Médio para a Europa a partir de cerca de 6500 a.C., basicamente em consequência da migração de agricultores. Na Europa, as instituições diferenciaram-se das de outras regiões do mundo, como a África, onde as instituições originais eram diferentes e as inovações de lagradas no Oriente Médio pelo Longo Verão só surgiriam muito mais tarde, e mesmo assim sob outras formas.

AS INOVAÇÕES INSTITUCIONAIS dos natu ianos, embora muito provavelmente tenham

sido o pivô da Revolução Neolítica, não deixaram um legado simples na história do mundo nem levaram inexoravelmente à prosperidade, em longo prazo, de sua terra natal – os atuais Israel, Palestina e Síria. Síria e Palestina são países relativamente pobres na atualidade, e a riqueza de Israel foi em boa parte importada pelos colonos judeus, após a Segunda

Guerra Mundial, com seus elevados níveis de escolaridade e fácil acesso a tecnologias de ponta. O crescimento inicial dos natu ianos não se tornou sustentado pelo mesmo motivo por que o crescimento soviético se extinguiu. Por mais que tenha sido altamente signi icativo e mesmo revolucionário em sua época, não deixou de ser crescimento sob instituições extrativistas. No caso da sociedade natu iana, é provável que esse tipo de crescimento tenha fomentado também profundos con litos quanto a quem deteria o controle das instituições e de sua exploração. Para cada elite a se bene iciar do extrativismo, há uma não elite que adoraria substituí-la. Às vezes, as disputas internas levam tão somente à substituição de uma elite por outra. Às vezes, destroem toda a sociedade extrativista, desencadeando um colapso do Estado e da sociedade como um todo, como no caso da espetacular civilização constituída pelas cidades- estados maias, mais de mil anos atrás.