• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – REFLEXÃO TEOLÓGICA

3. A hora do espetáculo: o confronto mortal

A morte de Jesus deve ser entendida como consequência da sua vida. O quarto evangelho denomina a subida de Jesus rumo a Jerusalém como a sua “hora” (que Jesus conhece, espera e aceita). Paralelamente, Macabéa também tem a sua hora, refere-se à hora do espetáculo, pois a obra A hora da estrela é tecnocolor e patrocinada pelo refrigerante sabor cola, fiel representante do modelo cultural atual.

As consequências antropológicas pontuadas na obra A hora da estrela estão presentes nos dias atuais, conforme se pode constatar na obra A cultura mundo: resposta a uma sociedade desorientada, deGilles Lipovetsky e Jean Serroy.

A obra A cultura-mundo [grifo do autor] faz uma análise da elaboração da cultura atual. Para os autores da obra, o termo cultura-mundo significa a universalização da cultura mercantil, ou seja, uma cultura dominada pelo mercado (indústria), que, por sua vez, sequestra todos os modos de existência humana. “Com a cultura mundo, dissemina-se em todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, do indivíduo, das mídias, do consumo; e com ela, uma infinidade de novos problemas que põem em jogo questões [...] existenciais (identidade, crenças, crise de sentidos, distúrbios da personalidade...)”.282

Esta universalização apontada por Lipovetsky e Serroy constituiu um modelo cultural (regido pelo mercado econômico) globalizado que se impõe sobre as instituições sociais. A obra A cultura mundo reafirma que o ser humano cada vez mais vive profundamente marcado pelo individualismo e pelo materialismo. Clarice indica esta característica por meio da ausência de diálogo entre os personagens na trama.

Os valores hedonistas, a oferta sempre mais ampla de consumo e de comunicação, a contracultura convergiram para acarretar a desagregação dos

281 BINGEMER, Maria Clara L. Jesus Cristo: servo de Deus e Messias glorioso. Op.cit. p. 58.

282 SOUZA, Glaucio Alberto Faria de. O ser humano Imago Dei na Gaudium et Spes: uma abordagem da

Doutrina Social da Igreja. 2013. p. 32. TCC (Pós-graduação Lato Sensu em Doutrina Social da Igreja) Faculdade Dehoniana de Taubaté-SP.

enquadramentos coletivos (família, Igreja, partidos políticos, moralismo) e ao mesmo tempo uma multiplicação dos modelos de existência: daí o neoindividualismo do tipo opcional, desregulado, descompartimentado. A “vida à la carte [grifo do autor]” tornou-se emblemática desse Homo individualis [grifo do autor] desenquadrado, liberto das imposições coletivas e comunitárias.283

E mais:

A obra A cultura-mundo [grifo do autor] relata a transformação no entendimento de cultura. Num primeiro momento, a cultura era edificada com as normas herdadas da tradição. Este entendimento não se concretiza na sociedade atual, na medida em que ela se afasta das grandes narrativas que ajudaram a sociedade a construir os valores sociais, a sociedade pós- moderna se tornou um setor econômico em plena expansão, a tal ponto considerável que se chega a falar, não sem razão, de “capitalismo cultural”. Percebe-se um deslocamento do cultural para o mercantil, a cultura passa a ser massificada, ela não está interessada no ser humano e sim no business [grifo do autor], que tem como objetivo a padronização da produção em série. “Daí em diante, é o planeta inteiro, todas as origens, cores, sexos, classes e idades, de maneira global, que se tornam o público do cinema, dos discos e do audiovisual”.284

Esta massificação do ser humano, como já dito anteriormente, é representada na obra A hora da estrela pelo rádio-relógio, pelos hot-dogs, pelos cabelos alourados de Glória, pelo desejo consumista representado pelo dente de ouro de Olímpico, pela prostituição de Carlota, e pelo descaso do médico que trata a pobre alagoana como um objeto descartável. Este fenômeno de massificação do ser humano, na compreensão de Lipovetsky e Serroy, é fruto da indústria cultural, que tem como único objetivo a diversão e a distração. Por se tratar de uma indústria, entende-se que a cultura deve ser consumida, por isso, “[...] um filme expulsa o outro, uma estrela dá lugar a uma nova, um disco substitui o anterior”.285 Esta massificação fica mais evidente quando surge o cinema. O cinema lança uma nova figura que servirá de modelo para muitos seres humanos, trata-se da estrela, até Macabéa queria ser como Marylin Monroe.

Ressalta-se também a importância da televisão nesta massificação propiciando uma forma de linguagem capaz de modelar uma apreensão do mundo. Atualmente, com a internet, esta cultura comunicacional ultrapassa quase todas as fronteiras. Segundo Lipovetsky e Serroy, esta dinâmica comunicacional somente aumenta o individualismo do ser humano,

283

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo... Op.cit. p. 48.

284 SOUZA, Glaucio Alberto Faria de. O ser humano Imago Dei na Gaudium et Spes... Op.cit. p. 33. 285 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo.... Op.Cit. p. 72.

crescendo o número de indivíduos descomprometidos, que assistem passivamente a dor e o sofrimento alheio como um espetáculo, conforme o relato da morte de Macabéa, que morre ignorada pelo mundo urbano.286 Para Lipovetsky e Serroy, o mundo se tornou uma grande tela orientada pela era das celebridades, com o seu quinhão de vazio, são celebridades passageiras, celebridades do efêmero, dos reality-shows, afinal é A hora da estrela.

A hipervisibilidade das pessoas revela o avanço imaginário igualitário, o culto do sucesso e dos valores individuais, e ao mesmo tempo o poder da cultura psicológica que acompanha a dinâmica de hiperindividualização contemporânea. Fenômeno de massa, o interesse dirigido às celebridades é o sinal manifesto de uma necessidade de personalização no mundo impessoal do universo mercantil, bem como da expansão do domínio do consumível e da moda, com seu quinhão de sonho e de evasão individualista.287

A hora de Macabéa é a sua morte. Ali ela se torna estrela, uma celebridade passageira que logo será esquecida. Com este relato Clarice expressa a ambiguidade de nossa sociedade atual, pois ao mesmo tempo em que universaliza um modo de viver voltado para o consumo, determina quem dele pode usufruir. O carro de luxo que atropela a jovem alagoana representa a pertença a um grupo, é um elemento de definição de partilha de valores apenas entre os que não estão preocupados com as Macabéas que teimam em sonhar e viver.

3.1 A hora de Jesus

Os evangelhos também mencionam “a hora de Jesus”. Entende-se a hora de Jesus como a sua partida deste mundo (Jo13,11); esta hora representa a força dos seus inimigos e do poder das trevas (Lc22,53). Macabéa foi atropelada inconscientemente pelo sistema que exclui, diferentemente de Jesus que: “caminha resoluta e livremente. Os evangelhos deixam claro que não é a multidão que o arrasta e sim ele mesmo [...] decide enfrentar o confronto [...]”.288

A hora de Jesus é relatada no evangelho segundo João na cena do lava-pés (Jo13), na noite que antecede a paixão de Cristo. Segundo a descrição de Joseph Ratzinger (Bento XVI), em seu segundo livro Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressureição, duas

286 Confira o segundo capítulo p. 29.

287 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo.... Op.cit. p. 86.

características servem de eixo no qual ele concentra a sua atenção. Para Ratzinger, o essencial da hora de Jesus são a passagem e o amor.

As duas expressões clarificam-se reciprocamente, sendo inseparáveis uma da outra. O amor é precisamente o processo de passagem, da transformação, da saída dos limites da condição humana votada [sic] a morte, na qual todos estamos separados uns dos outros e, no fundo, impenetráveis uns aos outros – numa alteridade que não podemos ultrapassar. É o amor até o fim que realiza a “metábasis” [grifo do autor] aparentemente impossível: sair das barreiras da individualidade fechada – eis o que é o agápe [grifo do autor] a irrupção na esfera divina.289

A hora de Jesus assume um aspecto de serviço e doação; trata-se de um momento inclusivo e não do descarte, como Clarice relata na sua narrativa. Jesus realiza um projeto divino do amor que não é fechamento egoísta e sim abertura ao outro. Para Juan Mateos, a hora de Jesus teve início no seu rompimento com as instituições opressoras de Israel (Jo2,13ss). “Esta é a sua hora (2,4; 12,23), a da manifestação da sua glória (12,23) [...]”.290 Se a hora de Jesus é expressão do amor e, segundo Mateos, esta hora se inicia na resistência, logo, o amor cristão não deve ser neutro diante da vida. Conforme a homilia do Papa Francisco na missa pelas vítimas dos naufrágios, na ilha de Lampedusa.291

Francisco inicia a sua homilia com desejo de cumprir um gesto de solidariedade e também despertar a consciência de todos. E este despertar a partir da luz da Palavra de Deus, segundo ele, implica mudar concretamente certas atitudes. O papa provoca os seus interlocutores com duas indagações bíblicas. A primeira é: “Adão, onde estás?”, a segunda “Caim, onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim”, diz o Senhor Deus. Francisco continua: “Quem é responsável por este sangue?”. A homilia avança e ele faz uma pesada crítica à cultura do bem-estar. Para Francisco, o homem moderno perdeu o sentido de responsabilidade e solidariedade, pois, preocupado com as estrelas do momento, ele se parece mais como uma bola de sabão, que é vistosa por fora, mas sem vida por dentro. No final, o Papa reza para que a semente de Herodes (a indiferença alimentada pelo egoísmo) se apague do nosso coração.

289 BENTO XVI. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressureição. Tradução: Bruno Bastos Lins.

São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. p. 60.

290 MATEOS, Juan. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético. Tradução Alberto

Costa. São Paulo: Paulus, 1999. p. 576. (Coleção grande comentário bíblico).

291 Homilia do Santo Padre Francisco. Missa pelas vítimas dos naufrágios. Disponível em:

<http://www.vatican.va/holy_father/francesco/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130708_omelia- lampedusa_po.html>. Acesso em: 10 julho 2013, 10:05:15.

A glória de Jesus é caracterizada pelo amor-doação. A cena do lava-pés narra Jesus colocando um avental (sinal de serviço) que não será mais tirado (Jo13,4-5). Na linguagem teológica este serviço é compreendido como esvaziamento (Kenosis). Verifica-se que a glória apresentada na obra A hora da estrela é oposta à proposta da glória de Jesus. Para Clarice, o ser humano moderno está direcionado para o luxo, sucesso, status e riqueza, enquanto a glória de Jesus é despojamento. (Fl2,6-11) Trata-se de uma estranha realeza para os dias atuais, conforme destaca Yves-Marie Blanchard:

Embora reconheça a Jesus certo tipo de glória, o quarto evangelho adverte que seria um erro identificá-la pura e simplesmente com a glória humana (5,41;12,43). Esta última não tem outro horizonte além de sua própria satisfação; trata-se de uma espécie de afirmação pessoal (7,18;8,50), à qual Jesus não dá nenhum valor: “Se glorifico a mim mesmo, minha glória nada é” (8,54). Trata-se, na melhor das hipóteses, de um reconhecimento mútuo, adquirido no seio de um grupo voltado para a sua própria identidade, essa atitude narcisista, embora experimentada coletivamente, parece incompatível com a fé, que implica, necessariamente, uma disponibilidade para o outro, uma transposição das perspectivas, uma experiência do encontro: “Como podereis crer, vós que recebeis vossa glória uns dos outros? (5,44)”.292

Clarice, por meio da sua escrita, busca clarificar a existência humana e fala do triângulo amoroso entre Olímpico-Macabéa-Glória. Estes “relacionamentos” são relatados por Clarice como uma relação de gratificação imediata. O que Olímpico busca não é o amor, e sim oportunidade de realização pessoal, ele quer a melhor opção para satisfazer seus anseios. Ao apontar esses modelos de relacionamentos pensa-se que Clarice denuncia uma compreensão arbitrária da palavra amor. A hora de Jesus resgata a compreensão do amor no plano divino. Na concepção bíblica o termo ágape exprime a experiência do encontro, da descoberta do outro. Trata-se do amor que “não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura em vez disso o bem do amado: tornando-se renúncia [...]”.293