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CAPÍTULO III – REFLEXÃO TEOLÓGICA

4. Existe esperança?

A hora da estrela apresenta um ser humano sedento por viver. Mesmo submetida a uma vida de sofrimento e solidão, Macabéa não perde a esperança e deseja um futuro diferente. Seu encontro com dona Carlota (a cartomante) a deixa cheia de esperança, ela está

292 BLANCHARD, Yves-Marie, São João. Tradução: Mariana N. Ribeiro. Echalar. São Paulo: Paulinas, 2004. p.

62. (Coleção Bíblia e história).

grávida (fértil) de futuro, enfim, ela vai ser amada e terá felicidade. Mas, esta felicidade não dura muito; num momento de êxtase é atropelada (pisada, desprezada, empurrada, empuxada, preterida) pelo símbolo do luxo que é marca desta cultura desumanizante. Diante deste fato, Clarice questiona: “.Quanto ao futuro.”. No segundo capítulo desta pesquisa, esta expressão foi trabalhada como algo fechado, ou seja, neste modelo de vida denunciado pela obra a vida dos mais fracos está por um fio. Deste modo, as coisas não podem continuar.

Diante do sofrimento e da morte de Macabéa (que é símbolo da realidade de milhões de pessoas), Clarice faz uma pergunta e espera por uma resposta. Qual é a resposta do cristianismo para as vítimas desta sociedade apática? Existe esperança para os enferrujados da vida? Existe uma alternativa a uma vida sem sentido? Como frear a opressão do sistema neoliberal?

Segundo Adriano Sella, o modelo cultural regido pelo mercado promove um intenso sacrifício humano por meio da fome e da miséria. Trata-se de uma transfusão de sangue, no qual se retira o sangue do ser humano até a morte e o aplica no sistema neoliberal.294 Para o economista e cientista social Franz J. Hinkelammert, o império do mercado é demoníaco, sendo comparável ao próprio Lúcifer.295 Percebe-se que Clarice tem razão em colocar este “.Quanto ao futuro.” de forma fechada, pois desta maneira não é possível continuar. Não há como reformar este modelo cultural econômico, é preciso uma alternativa. Para Clarice, a morte de Macabéa será a sua liberdade; nela ela terá uma alternativa de vida: enfim estará livre! Embora Clarice trabalhe a questão do futuro como algo fechado, não significa dizer que ela é negativa. Ela apresenta a morte de Macabéa como a sua liberdade e indica ao seu leitor que é tempo de morangos (possibilidade de algo novo).296 Clarice nutre a esperança de um recomeço, tanto para Macabéa como para a sociedade.

4.1 A morte de Jesus

A morte de Jesus é resultado da sua prática. Ele sabe que vai doar a sua vida e também possui consciência de que vai retomá-la (Mc9,31); Macabéa é o oposto de Jesus, ela não resiste, não tem consciência e não doa vida alguma. Jesus foi uma verdadeira resistência

294 SELLA. Adriano. Globalização neoliberal e exclusão social: alternativas...? são possíveis! 2. ed. São Paulo:

Paulus, 2003. p. 23. (Coleção Temas da atualidade).

295 Ibidem, p. 53.

diante dos dominadores da época e, por esse motivo, Ele enfrentou dois processos, um religioso e o outro político. Em ambos Ele foi condenado à morte, na cruz. Por conseguinte, há de se entender o que significa a cruz no Império Romano. A morte na cruz é uma morte lenta, prolongada. Trata-se de um espetáculo, de um exemplo, para demover as pessoas de fazerem a mesma coisa. Destaca-se que a cruz é um castigo reservado aos criminosos políticos; por meio dela o Império Romano deseja dissuadir os seguidores de Jesus de qualquer adesão ao Reino que já chegou.

Para muitos, falar sobre a cruz na atualidade é algo negativo, pois estes a entendem como a negação do bem-estar da vida. “Há quem a julgue perversa por impedir os homens de perseguirem sem remorso a plena expansão, gozarem da vida”.297 Porém a morte de Jesus revela que é preciso levar com seriedade o amor ao próximo. Sua morte violenta atesta a desumanidade da sociedade, retratada no livro de Clarice pelo atropelamento de Macabéa. E mais, Jesus denuncia a ilusão de existir um “paraíso” enquanto se zomba dos mais fracos. Segundo Duquoc: “A cruz põe a nu a ilusão em que desejamos manter-nos, supondo que o humano é já dado: existe o desumano; o humano está ainda por cumprir-se, é uma tarefa a realizar; e se o seu nascimento é doloroso, é porque o desumano nos cerca por todos os lados”.298 A cruz associada à vida de Jesus revela que toda sua ação é salvífica, toda sua prática é um caminho de solidariedade, de nascimento, de reestruturação do humano e, por isso, é resposta a todas as vítimas, ao mesmo tempo em que ilumina as ações desumanizantes. 4.2 Reavivando a esperança

A esperança é um dado antropológico, e reavivá-la é escavar o profundo do ser humano em busca de sua originalidade. A esperança foi o fio condutor de toda a vida de Jesus. A proposta do Reino é proposta de esperança, por isso, Ele dedicou sua vida à construção de uma alternativa à sociedade de sua época. Seu ensinamento sobre o Reino de Deus possui duas dimensões: a do hoje e a do amanhã. O presente e o escatológico indicam que a proposta de construir um novo modelo social, no qual os seres humanos podem se relacionar dignamente, faz parte dos projetos de Deus.

297 DUQUOC, Christian. A loucura da cruz e o humano. In CONCILIUM Revista Internacional de Teologia 175,

(1982/5), p. 109.

Porém, é exatamente esta proposta alternativa de vida que leva Jesus à morte. Jesus crucificado para os discípulos era sinal de derrota, no meio deles também surgiu a pergunta: Quanto ao futuro? Verifica-se que os apóstolos também fizeram a experiência de uma morte desconcertante, ao ponto de fugirem (Mc14,27). Percebe-se a frustração dos discípulos no relato do caminho de Emaús (Lc24,21). A morte de Jesus se torna mais escandalosa pelo fato de os judeus entenderem que a pessoa crucificada é abandonada por Deus. Então acabou a esperança? Todos os seus ensinamentos foram em vão?

A ressurreição demonstra que não, nada foi em vão! Ela é a confirmação da fidelidade de Deus, é a realização de todas as utopias humanas, é também aprovação da vida de Jesus como vida que vale a pena ser vivida. Para Macabéa, ao contrário, a esperança de uma mudança radical de vida surge apenas em seus últimos instantes de vida. E a mudança de vida se dá quando lhe é interrompida a vida, pois, de outro modo, isso não lhe seria possível. Se Macabéa tem a sua história interrompida pela morte, a vida de Jesus continua. Ele está vivo! Esta é a grande afirmação cristã, a ressurreição o situa no hoje de nossa história, o que implica, portanto, na inserção definitiva do eterno na história. A história é o lugar de Deus. Não se diz que Jesus foi embora, se diz que ele está vivo entre nós.

Sendo a ressurreição a confirmação da vida de Jesus e da proclamação do Reino, ela apresenta uma novidade importante. Ela não é obra humana, é obra do Pai que eleva Jesus cumulando-o com a força do Espírito Santo. Verifica-se na ressurreição uma postura crítica por parte de Deus aos modelos sociais que não tenham como prioridade a vida humana e a sua dignidade.

Por conseguinte, com a ressurreição os seguidores de Jesus voltaram a ter esperança. Esta esperança aumenta na medida em que o cristianismo “católico” afirma que a ressurreição acontece nos Infernos. Para falar da ressurreição a partir do viés da “descida ao inferno” vale aproximar-se, mesmo que de maneira sintética, da cosmologia do povo hebreu.

O ser humano entende a morte como um fenômeno biológico; trata-se de um instante no qual a vida se vai. Mas para os Hebreus a morte é entendida de outra maneira. Morrer é dar o último suspiro e é também entrar no mundo dos mortos (Xeol ou Hades). “A morte não é um drama de um instante, ela é um acontecimento que consiste em viver a vida dos

mortos”.299 Segundo Gesché, a ressurreição é a vitória de Jesus que sai da morada dos mortos e não do túmulo vazio. Crer na ressurreição de Jesus é acreditar que a morte pode ser vencida no seu território, que o amor que impulsionou toda a vida de Jesus (Jo3,16) é mais forte que a morte.