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CAPÍTULO II – SEMPRE É TEMPO DE PENSAR A HORA DA ESTRELA

1. Breve biografia: um panorama da vida de Clarice

O desejo de apresentar um panorama da vida de Clarice através de uma breve biografia está radicado na certeza de que a vida da autora está diretamente ligada à sua escrita, conforme abaliza Waldman Berta: “Há autores em relação aos quais os dados da vida se entremeiam com a obra, compondo um único objeto”.104 Em Clarice, vida e obra se relacionam num profundo diálogo. Desta forma, faz-se necessário deslizar pela biografia de Clarice na busca de tatear um pouco mais da sua vida.

Em dezembro de 1920105, nasceu Haia/Chaia, que em hebraico quer dizer vida “e que, devido a semelhanças fonéticas com Clara, suscitou uma versão em português do nome da menina Clarice”.106 Sua cidade natal é Tchetchélnik, na Ucrânia, que na época ainda pertencia ao Império Russo. Esta cidade era considerada como um “típico lugar encardido onde, até a virada do século XIX para o XX, vivia a maior parte dos judeus do mundo [...]. O lugarejo tinha cerca de 8 mil habitantes, um terço dos quais era judeu”.107 O cenário da época não era dos melhores: a Rússia ainda vivia sob o impacto da Primeira Grande Guerra e amargava as consequências da Revolução dos bolcheviques. E a Ucrânia da década de trinta é marcada pelas perseguições aos judeus, que encontravam na cidade natal de Clarice seu lugar de refúgio. “Reza a lenda que a raiz da palavra Tchetchélnik, Kaçan lik é a palavra turca para refugiado”.108 Esses acontecimentos motivaram a família de Clarice a buscar melhores condições de vida, por isso, decidiram emigrar para a América.109

O nascimento de Clarice possui um aspecto interessante: ela nasce em trânsito, ou seja, nasce em meio ao processo migratório, conforme própria narração: “Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou para o Brasil, ainda não haviam se decidido: pararam em Tchetchélnik para eu nascer, e

104 WALDMAN, Berta. Clarice Lispector: a paixão segundo C.L. 2. ed. ver. ampl. São Paulo: Escrita, 1992. p.

14.

105 Em Clarice nada é tão simples. Não é somente a sua escrita que possui um ar de mistério, a datação do seu

nascimento também traz controvérsias. A certidão original escrita em ucraniano apresenta a data de nascimento no dia 10 de dezembro de 1920 e a data da emissão do documento é de 14 de novembro de 1921. Porém, num passaporte russo, a data é de 10 de outubro de 1920. Cf. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 32-36.

106 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. p. 37. 107 MOSER, Benjamim. Clarice, uma biografia. Tradução: José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

p. 27.

108 Ibidem. p. 29.

prosseguiram viagem”.110 O itinerário da viagem previa atravessar o território russo em direção a Bucareste, passando por Kichinev, na Moldávia, e Galatz, no sul da Romênia, com destino à Hungria. E da Hungria, a família se dirigiria à Alemanha, mais precisamente ao porto de Hamburgo, de onde embarcaria em direção à América.

A viagem de navio durou cerca de um mês. Seu pai Pedro111, sua mãe Marieta, as duas irmãs Elisa e Tania e a recém-nascida Clarice (Chaia) chegaram ao Brasil no ano de 1922, mais especificamente na cidade de Maceió, no Estado de Alagoas, onde passaram a residir. A casa da família Lispector ficava afastada do centro. Pedro trabalhava como mascate e fabricante de sabão, mas os ganhos eram parcos. Já em 1925, a família mudou-se para Recife por motivos de trabalho, como relata o escritor e tradutor americano Benjamim Moser:

Era uma atividade comercial, mas bem diferente [...] Ele percorria as ruas dos bairros mais pobres do Recife com um carrinho de mão e anunciava gritando com seu sotaque de estrangeiro e sua voz cansada: “Compa rôpaaaaa, compa rôpaaaaa” [...] Ele adquiria roupas velhas, usadas, e as revendia para comerciantes da cidade [...] até hoje eu guardo aqui no meu ouvido a voz de Clarice imitando o pai [...].112

O trabalho de mascate era intercalado com o de lavrador, mas isso também não era suficiente. A pobreza ainda era marcante, conforme nos relata Nádia Battella Gotlib: “Havia muita pobreza. Era muito pobre, muito pobre. Filha de imigrantes”.113 A vida da família é bem simples; a mãe sofria de paralisia progressiva, doença que a levou a morte em 21 de setembro de 1930, aos 41 anos de idade. Clarice tinha apenas 9 anos.

Por volta de 1935 a família deixou Recife e se transferiu para o Rio de Janeiro, para uma casa antiga, no bairro de São Cristóvão, e dali partiu para a Tijuca. Em 1937, Clarice passou a lecionar aulas particulares de português e matemática.114 No ano de 1939, iniciou o curso de Direito na Universidade do Brasil. A iniciativa teve influência dos outros, conforme

110 LISPECTOR, Clarice. “Esclarecimentos – Explicação de uma vez por todas”. Apud MOSER, Benjamim.

Clarice, uma biografia. [trad. José Geraldo Couto]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 32.

111 Somente no Brasil a família adotou nomes brasileiros, o pai Pinkhas passou a ser chamado de Pedro, a mãe

Mania passou a ser chamada de Marieta, sua irmã Leah adotou Elisa e Chaia virou Clarice. Cf. MOSER, Benjamim. Clarice, uma biografia. [trad. José Geraldo Couto]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 71.

112 LERNER, Julio. Clarice Lispector, essa desconhecida. São Paulo: Via Lattera, 2007, p. 44-45; “Compaaaaa

rôpaaaaa”, entrevista com Olga Borelli. Apud MOSER, Benjamim. Clarice, uma biografia. [trad. José Geraldo Couto]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 27.

113 LISPECTOR, Clarice. Entrevista, MIS-RJ, 20 out. 1976. Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida

que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011 p. 59.

ela mesma nos conta: “Quando eu era pequena, eu era muito reivindicadora de direitos [...] Então, me diziam: ela vai ser advogada. Então isso ficou na cabeça. E como não tinha orientação de espécie nenhuma sobre o que estudar, eu fui estudar advocacia”.115

Com a morte do pai em 26 de agosto de 1940, aos 55 anos de idade, Clarice passou a morar com a irmã Tania, que já era casada. No mesmo ano, Clarice iniciou a carreira de jornalista. Em 1941, começou seu namoro com Maury Gurgel Valente que, mais tarde, em 1943, se tornaria seu marido. Naquele mesmo ano, Clarice lançou o primeiro romance chamado Perto do Coração Selvagem116. No ano seguinte (1944), a obra faturou o prêmio Graça Aranha como o melhor romance de 1943. Ainda em 1944, seu marido assumiu a função de vice-cônsul na Itália, e ambos foram morar em Nápoles.

A obra O Lustre foi publicada em 1945 pela editora Agir, e divulgada no ano seguinte, quando o casal passou a residir na Suíça, mais precisamente na cidade de Berna, onde ficara até 1949. O ano de 1948 foi muito produtivo: Clarice terminara a obra A Cidade Sitiada, após três anos de trabalho. Ela escreveu também outros contos como: Laços de Família, Mistério em São Cristóvão e O crime do professor de matemática. No mesmo ano, o dia 10 de setembro torna-se uma data marcante para ela, pois nasce seu primeiro filho, Pedro.

O retorno ao Brasil ocorreu no ano de 1950, mas logo Clarice retorna ao continente europeu, mais precisamente na Inglaterra, onde permanece por seis meses. Dois anos depois a família muda-se para Chevy Chase, cidade próxima a Washington, nos Estados Unidos, onde nasce seu segundo filho, Paulo (10 de fevereiro de 1953).

O ano de 1959 é marcado pela separação do casal e pela volta de Clarice ao Brasil com os dois filhos, porém, a oficialização da separação conjugal só ocorrerá em 1964, mesmo ano que é publicada a novela A paixão segundo G. H. que, no ano seguinte, ganhará ensaios críticos de Benedito Nunes, José Américo Mota, entre outros.117 Sua primeira obra a virar peça de teatro será Perto do Coração Selvagem, exibida no teatro Maison de France, no Rio de Janeiro.

115 LISPECTOR, Clarice. entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, em 20 out, 1976.

Apud GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011 p.164.

116 Ibidem. p. 613. 117 Ibidem. p. 623.

O dia 14 de setembro de 1966 foi marcado por um fato trágico. Um incêndio no apartamento da autora lhe causou sérias queimaduras, sobretudo na mão direita. Após dois anos do incêndio suas queimaduras ainda lhe causavam problemas, mas estes não a impedem de continuar seu trabalho. No ano de 1976, a amiga Olga Borelli ajudou Clarice a reunir e datilografar as notas da obra A hora da estrela. Olga escreveu também notas de outras obras como Um sopro de vida e os contos A Bela e a Fera e Um dia a menos.118

Em 1977, Clarice é entrevistada na TV Cultura por Júlio Lerner, com a condição de que a entrevista fosse exibida somente depois de sua morte. A novela A hora da estrela foi publicada em novembro, mesmo mês em que Clarice obteve diagnóstico de um câncer no útero, doença que a levaria à morte um mês depois, no dia 9. Clarice foi sepultada no dia 11 de dezembro no cemitério Comunal Israelita, no Rio de Janeiro.