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CAPÍTULO II – SEMPRE É TEMPO DE PENSAR A HORA DA ESTRELA

7. Análise da obra

7.1 O corpo do texto

A abordagem social da obra A hora da estrela é sugerida pelo próprio narrador, que faz menção às características de Macabéa e à sua relação com tantas outras moças espalhadas pelos cortiços do Brasil. “Há, portanto, em HE uma norma burguesa que define por oposição

221 SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 18. 222 Ibidem. p. 32.

o que é não ter e não ser [grifo do autor]”.223Macabéa é a figura do ser humano marginal, que vive à margem da sociedade.

Esta marginalidade atribuída à Macabéa vai aumentando à proporção que a história evolui; a nomeação da jovem alagoana só acontece tardiamente na obra. O narrador utiliza de adjetivos como: a pessoa, a jovem, o corpo, sem fazer referência ao nome da pobre alagoana. Esta degradação da personagem se estende ao convívio social. Ela é datilógrafa desqualificada, divide o quarto com quatro amigas, mas está sempre sozinha; ela come em pé e não é vista por ninguém.

Destaca-se também a desconstrução da humanidade de Macabéa, uma vez que ela vai se sujeitando à superficialidade produzida por este modelo cultural. Ela se alimenta de hot- dogs e Coca-Cola, isso demonstra o abandono dos traços culturais nordestinos. Macabéa assume o modo de vida ditado pela cultura de massa muito bem representada pelo rádio- relógio “A inacessibilidade aos bens materiais e culturais, a condição de pária social fazem dela um ser inacabado pela impossibilidade de desenvolvimento adequado. Em suma, Macabéa não é um ser humanizado em sentido profundo, e essa é a fratura que o livro procura expor”.224

A peregrinação do não ser desta pobre coitada não a impede de ter um caso de amor com seu namorado Olímpico. Evidencia-se que este relacionamento é truncado: Olímpico é arrogante e agressivo e deseja crescer na vida, isto é, fazer parte da elite. O relacionamento fracassa, pois Macabéa não faz o estilo de Olímpico. Já sua amiga Glória...

Glória se perfumava, fumava cigarros mentolados e recebia vários telefonemas, que Macabéa invejava por intuí-los como prestígio social. Pertencente a uma “terceira classe da burguesia”, como diz Rodrigo, conhecia alguns segredos baratos de sedução e erotismo, suficientes para seus poucos anseios de vida e liberdade. Expressa com eficiência seu discurso [grifo do autor] corporal quando rebola ou manda beijos com as pontas dos dedos. Loura oxigenada, gorda e extrovertida. Glória representa para Olímpico o desejo do ingresso no clã do sul, pois era “carioca da gema”.225

223 KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada... Op.cit. 37.

224 ARÊAS, Vilma. 2005, p. 81. Apud SPINELLI, Daniela. A construção da forma n’A Hora da Estrela, de

Clarice Lispector. 2008. 132 p. Dissertação (Programa de Estudos de pós-graduados em Literatura e Crítica Literária) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. p. 32.

Macabéa é um ser humano carente, e esta carência é fruto de um modelo e relações sociais tecido contra ela. A própria narrativa realça o símbolo máximo da sociedade do capital, ao citar a famosa marca de refrigerante sabor cola. “Sabe-se que nenhuma outra sociedade alcançou um grau de tecnologização tão acentuado como o capitalismo, e que a objetivação do trabalho tornou grandes parcelas da população dispensáveis [...] excluídos e miseráveis”.226 Numa sociedade tecnicista o ser humano se torna dispensável, e Macabéa não compreendia que ela e muitos são parafusos descartáveis.

A hora da estrela [grifo do autor] tem um caráter de documentário urbano que por si remete à totalidade mais ampla do capital [...] Ao afirmar que, como nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões, trabalhando até a estafa, dimensiona essa singularidade no espaço de uma sociedade problemática [...].227

A autora expõe a desumanização provocada pelo modelo capitalista. Esta situação representada por Macabéa não faz referência somente aos nordestinos que fogem da seca em busca de melhores condições de vida no sudeste. Ela faz referência aos pobres espalhados por todo território nacional.

[...] Na sua miséria extrema, Macabéa expressa o humano de forma caricatural e hiperbólica. É mesmo, na forma como foi desenhada, a própria negação do humano. Não obstante, a cada detalhe, o leitor nela reconhece as pegadas humanas. A quem não falte sempre um pouco de consciência? Quanta gente passa fome no mundo das pessoas? Quem já não teve namorado roubado, um desejo de ser uma estrela de cinema ou já não pautou seus desejos por anúncios e propagandas? Quem não cantou Caruso ou outro qualquer com voz desafinada? Quem não sonhou ser feliz mesmo na miséria física e material? Assim, Macabéa, dessemelhante no conjunto, separada dos homens pela barreira da arte, é convincente pelo detalhe, enquanto resposta estética a indagações humanas. E é em cada característica isolada que nela se reconhece o Homem com ser social. Por isso, tão irreal nos aproxima tanto do real.228

Embora o nome Macabéa faça relação aos irmãos macabeus esta aproximação acontece somente no sentido semântico. Na prática, os macabeus possuem consciência da sua identidade e têm objetivos de vida, por isso, lutam contra a tirania que lhes deseja tirar a liberdade – bem ao contrário de Macabéa, apresentada pela autora como um ser humano sem vigor para a luta justamente por lhe faltar encontrar um sentido para a vida.

226 SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 87. 227 Ibidem. p. 88.

É possível afirmar, pela leitura da obra, que Macabéa é uma personagem reveladora por excelência da trajetória humana. Pode-se entrever nela algo mais profundo, um perfil que está dado nas contradições de uma totalidade social, em que instituições, valores, pessoas não estão bem definidos, sugerindo os escombros informes de uma sociedade que deteriora e escorre como coalhada entre os dedos da mente, quando se tenta apreendê-la com a lógica da modernidade. Só os artistas do porte de Clarice Lispector, com a sensibilidade afinada no universal, conseguem dar conta de construir uma personagem como Macabéa, cujo vigor advém justamente da sua falta de vigor, da sua qualidade terminal, de ser que vai se decompondo devagar até a boca colar no chão. De ser que, por essa qualidade, aponta a urgência não de se retomar o humanismo de uma época, mas de forjar um novo humanismo, em que a realização do homem seja o centro das questões.229

Esta desumanização experimentada por Macabéa é também percebida em quase todos os outros personagens, ficando de fora somente o narrador. Segundo o narrador Rodrigo S.M., a narrativa possui sete personagens: o próprio Rodrigo, Macabéa, Olímpico, Glória, o patrão, o médico e a cartomante. Verifica-se que seis desses personagens apresentam as mesmas características humanas. Trata-se do “[...] isolamento em que vivem, alienados dos instrumentos da cultura, por sua condição social, e, consequentemente, distinguidos pela precariedade da consciência que têm de si e do mundo”.230 Percebe-se a exclusão social dos personagens pela ausência da linguagem. O único personagem que tem voz no texto é o narrador Rodrigo S.M. Este isolamento é fruto dos instrumentos da cultura social vigente. Logo, as relações vão cada vez mais se constituindo nos ambientes de trabalho, conforme relata Fukelman: “o patente isolamento das pessoas parece conduzir a uma reflexão sobre a condição do ser humano, agravada por um tipo de organização social que segrega os indivíduos entre si”.231

O namorado de Macabéa (Olímpico), embora trabalhe numa metalúrgica, vive em meio à miséria; sua miséria é material e moral. Ele não tem casa, mora numa guarita de uma obra em demolição. Seu nome remete ao leitor a grande história das divindades antigas, mas nem isso é capaz de lhe dar dignidade. Verificam-se em Olímpico as garras do sistema tecnicista que Clarice denuncia (ele também é vítima). Esta presença (do sistema tecnicista) pode ser verificada pelos seus dentes de ouro; sua humanidade também já fora reduzida ao mercado, por isso o seu relacionamento com Macabéa e Glória está direcionado ao que elas podem lhe oferecer; ambas são apenas objetos materiais disponíveis. Destaca-se também o

229 SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector... Op.cit. p. 119. 230 Ibidem. p. 94.

231 FUKELMAN, C. Escrever estrelas (ora, direis). Apud SOUZA, Ana Aparecida Arguelho. O humanismo em

contraste das atividades de Olímpico. Ao mesmo tempo em que é metalúrgico, ele esculpe santos em madeira. Era um artista e nem se dava conta desse ofício.

Marcado pelo absurdo desconhecimento de si mesmo, de possibilidades de humanização, limita-se a desempenhar um trabalho que consistia em pegar barras de metal de cima da máquina e colocá-las embaixo, sobre uma placa deslizante. Entretanto, “nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo”[...].232

Outro personagem que apresenta uma ideia de sociedade fragmentada e descartável é o médico. Ele participa na trama da história ao ser indicado por Glória; sua participação é curta, mas reflete bem o atendimento dispensado àqueles desprovidos de recursos. Ele “trata” de Macabéa com desleixo e lhe falta a consciência da importância da sua profissão. Segundo o relato do próprio texto, trata-se de um médico cujo único objetivo é ganhar dinheiro; sua falta de comprometimento com a profissão é apresentada pela autora ao citar a desatualização do médico em relação às novidades clínicas.233

Do ponto de vista da perspectiva contraideológica que cumpre a obra, o médico é uma personagem altamente sugestiva da condição mercadorizada da medicina, especialmente em países periféricos aos centros de acumulação de ciência e tecnologia. Aspectos como o preconceito e a valorização do dinheiro do paciente revelam, mais uma vez, o avesso do humano na sociedade.234

Já a personagem Carlota faz referência ao descarte que a sociedade pode fazer com o ser humano que não é capaz de produzir. Enquanto era atraente ela servia para seus clientes; com o passar dos anos, ela perde o seu poder de atração, o seu vigor, o seu apelo, e é descartada, tendo que assumir um novo papel periférico.

A personagem Glória, que trabalha com Macabéa, é a menos desvalida da narrativa de A hora da estrela e representa uma classe social que gasta todo o seu dinheiro com comida. Mas a sua representatividade vai além. Segundo Daniela Spinelli, Glória é representante de um mundo feroz.

232 DIAS, A. M. A hora da estrela e o corpo cariado. Tempo Brasileiro, n. 82, 1985, p.107. Apud SOUZA, Ana

Aparecida Arguelho. O humanismo em Clarice Lispector: Um estudo social em A hora da estrela. São Paulo: Musa Editora, 2006. p. 98.

233 HE, p. 67-68.

[...] Glória era mais que uma conexão, ela era o próprio mundo contra o qual Macabéa travava uma luta perdida. À Aspirina [sic] ??? e ao dinheiro somava-se um certo artificialismo na colega de trabalho. Os cabelos oxigenados, o desejo de confundir-se com o cinema americano contrastavam com a presença incômoda das raízes negras sempre à mostra, espécie de alusão ao sangue dos seus antepassados [...].235

Glória é uma personagem que carrega a ambiguidade de dois mundos: o primeiro faz menção às raízes negras de um passado de escravidão; o segundo indica a sujeição de Glória à modernização alicerçada nas promessas do consumo. A ferocidade do mundo moderno representado por Glória pode ser verificada na amizade fingida desta com Macabéa. Ela é uma perfeita caricatura da banalidade do ser humano, voltado para si, vive a vida à la carte. Ela representa uma sociedade sem as megaideologias; sua relação com o mundo se dá por meio do cuidado com a beleza, representando o narcisismo da atualidade.