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CAPÍTULO II – SEMPRE É TEMPO DE PENSAR A HORA DA ESTRELA

3. A literatura nacional moderna e o estilo de Clarice

3.1 Clarice e a crítica

Uma das primeiras vozes da crítica a saudar a obra de Clarice foi Antonio Candido. Em 1944, ele analisa Perto do Coração Selvagem, e destaca a rara capacidade de vida interior da autora. O renomado crítico continua sua avaliação salientando que Clarice não caminha por terreno batido; sua escrita é uma aventura, num ritmo diferente, em que por meio da linguagem a autora apresenta a sua visão de mundo. Segundo o crítico, a escrita de Clarice Lispector faz da descoberta do cotidiano uma profunda aventura.

Outra crítica importante foi elaborada por Sérgio Milliet no seu diário crítico, volume II, datado de 15 de janeiro de 1944. Sérgio reage de maneira positiva à estreia de Clarice. Mais que isso, ele não contém a surpresa e comemora a descoberta assinalando:

Raramente tem o crítico a alegria da descoberta (...) Quando porém o autor é novo há sempre um minuto de curiosidade intensa – o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo. Pois desta feita fiz uma que me enche de satisfação.132

128 Para Dany Al-Behy Kanaan este romper de Clarice com o modelo regionalista refere-se à inserção da autora

no contexto social em que ela vive, marcado por uma sociedade fragmentada, dado característico da sociedade moderna. Cf. KANAAN, Dany Al-Behy. À escuta de Clarice Lispector: Entre o biográfico e o literário: uma ficção possível. São Paulo: EDUC, 2003. p. 60.

129 ROSENBAUM. Yudith. Folha Explica: Clarice Lispector. Op.cit. p. 19. 130 Ibidem. p. 19.

131 Esta pesquisa não tem a intenção de fazer uma análise da crítica sobre Clarice Lispector. Por ser uma pesquisa

teológica em diálogo com a obra A hora da estrela deixar-se-á a questão técnica e crítica àqueles que são mais competentes nesta área. Ao trabalhar de forma singela a questão sobre a relação da crítica e a autora, não se tem aqui a preocupação de resgatar as discussões e divergências da crítica literária. O objetivo deste tópico é o de apontar a mobilização da crítica diante de uma autora singular no plano da linguagem.

132 MILLIET, Sérgio. Diário crítico (1944). Apud SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ;

Sérgio ainda destaca o imprevisto chocante do sentido das palavras da autora, que tem como objetivo levar o leitor a compreender melhor as reações das personagens. Ele aponta o estilo de Clarice como um desmaio ou êxtase. Porém, para Sérgio, na obra A Cidade Sitiada de 1949, a autora se perde nos ornamentos, dificultando o entendimento da obra. Mas este apontamento não o faz mudar de opinião sobre a escritora. Pelo contrário, como nos mostra mais esse elogio:

Apesar disso, reafirma ser Clarice Lispector uma escritora de grande talento, cujo estilo se desdobra a serviço de um temperamento feito de curiosidade sensual e de sensibilidade angustiada [...] Sua inteligência não analisa, não observa, apenas exprime, em imagens inesperadas e sutis, aquilo que os sentidos apreendem.133

Para Sérgio, a técnica de Clarice é como um grito de café fresco. Ele se refere ao grito como algo repentino feito o cheiro do café, numa analogia à arte de viver de Clarice. Trata-se de imagens alicerçadas na linguagem que buscam atingir o profundo do ser humano.

O crítico Álvaro Lins também não economiza elogios à autora. Em seu entender, a literatura clariceana é lírica e pertencente à tradição de Joyce ou de Virginia Woolf.134 Álvaro Lins assim define a literatura de Clarice devido o seu entendimento sobre o lirismo como uma apresentação da realidade, por meio do sonho: “[...] realidade não fica escondida ou sufocada, porém é levada para os seus planos mais profundos, mais originais, nas fronteiras entre o que existiu de fato e o que existiu pela imaginação”.135 Álvaro entende que Clarice rejeita a forma tradicional do romance, mas alia esse estilo de escrever à jovialidade da autora, apostando que, com o passar dos anos, sua escrita irá amadurecer.

Gilda de Mello e Souza percebe que Clarice apresenta a sua visão do mundo por meio do mito. De acordo com Olga de Sá, ela parte dos limites dos gêneros literários regidos por certas normas estéticas. Por isso, ela não é adepta do empréstimo de um gênero ao outro, no caso do barroco, em relação ao requinte. Já para Sérgio Buarque de Holanda existe uma aproximação entre Oswald e Clarice. Ele os coloca como renovadores do romance

133MILLIET, Sérgio. Diário crítico (1944). Apud SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ;

Lorena-SP: Vozes e Faculdades Integradas Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 26-27.

134 SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ: Vozes; Lorena-SP: Faculdades Integradas

Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 29.

135 LINS, Álvaro. A experiência incompleta: Clarice Lispector. In: Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos

(1940-1960). RJ, Civilização Brasileira, 1963, p. 188. Apud SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis-RJ; Lorena-SP: Vozes; Faculdades Integradas Tereza D´Ávila (FATEA), 1979. p. 29.

contemporâneo brasileiro, reconhecendo a capacidade (e a coragem) de Clarice em romper com o regionalismo dos anos 30. Para Sérgio Buarque de Holanda, superar as paisagens exteriores apresentadas pelo romance nacional em busca da paisagem interior é buscar cenários e recantos novos.136

Assis Brasil, num artigo denominado A volta de Clarice, de 1960, aponta para o fato de a autora ser desconhecida do público brasileiro exatamente por escrever de maneira nova:

Clarice Lispector é ainda, praticamente, um nome desconhecido do público ledor [sic] brasileiro. Não só por ter passado quase dez anos sem publicar livro, como e principalmente, por ter surgido em 1944 (“Perto do Coração Selvagem”) com algo novo em nossas letras, concebendo um romance que quebrava (e ainda hoje está em primeiro plano) todos os padrões conformistas de nosso sempre velho e bolorento romance.137

Clarice ao utilizar o seu método apresenta um processo descontínuo. Esta descontinuidade e fragmentação será espaço necessário para que o leitor possa fazer novas descobertas, ou seja, as suas descobertas. Há uma citação de Goethe, inaugurando o capítulo “Por que reescrevemos continuamente a história?”, na obra de Adam Schaff História e Verdade, que nos alerta para o fato de que:

Nos nossos dias, já ninguém duvida de que a história do mundo deve ser reescrita de tempos a tempos. Esta necessidade não decorre, contudo, da descoberta de numerosos fatos então desconhecidos, mas do nascimento de opiniões novas, do fato de que o companheiro do tempo que corre para a foz chega a pontos de vista de onde pode deitar um olhar novo sobre o passado [...].138

A história, portanto, deve ser olhada como algo que poderia ter sido, e não uma verdade absoluta, logo, o texto literário, por ser rico em simbolismo, toca a realidade, fazendo a comunicação do convencional e a projeção de algo maior. Para alcançar este objetivo, Massaud Moisés aponta o tempo como fator determinante:

Na verdade, Clarice Lispector representa na atualidade literária brasileira (e mesmo portuguesa) a ficcionista do tempo por excelência: para ela a grande preocupação do romance (e do texto) reside no criar o tempo, criá-lo

136 SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p. 33.

137 SOUZA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: Figuras da escrita. Braga: Universidade de Minho/Centro de

Estudos Humanísticos. 2000. p. 74.

138 SCHAFF, Adam. História e Verdade, p. 219. Apud KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada: O social

aglutinado às personagens: Por isso correspondem suas narrativas e reconstrução do mundo não em termos de espaço mas do tempo, como se, apreendendo o fluxo temporal, elas pudessem surpreender a face oculta e imutável da humanidade e da paisagem circundante.139

Percebe-se que a literatura brasileira até Clarice, embora rica e com brilhantes escritores, não havia ainda explorado a expressão literária e o uso linguístico como ela. Conforme ressalta Olga de Sá: Clarice “retorna aquela linguagem de invenção, dos raros que fizeram (exploração das palavras), como Oswald e Mário; daí a surpresa que provoca”.140 Verifica-se que a obra de Clarice busca fazer da ficção uma forma de conhecer o mundo, por meio da expressão, agindo sobre a língua como instrumento, criando imagens e associações incomuns.

Nesse (romance de aproximações) ela cria uma rara tensão psicológica, que se reflete numa espécie de tensão linguística: vocábulos que perdem o sentido comum e ganham expressão sutil [...] o que leva Antonio Candido afirmar que as palavras do texto se transformam em valores e não somente sons e sinais.141

Eduardo Portella, em um dos seus artigos, entende que o estilo de Clarice apresenta a complexa intimidade humana; seu estilo é capaz de criar sensações derivadas da intensa carga emocional que se encontram em seus vocábulos, simbolizando um novo estágio da cultura brasileira.142

4. A escritura clariceana

A escritura de Clarice tem o desejo de descrever o “instante-já”, trata-se de revelar, por meio das palavras, a vida escondida no cotidiano. Deste modo, a linguagem será a ferramenta utilizada pela autora para esta revelação, pois, por meio da linguagem, o homem se revela ao mundo. Destarte, a narrativa clariceana convida o leitor a ultrapassar a passividade em busca de uma profunda conexão de sua existência com a obra.

139 MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Melhoramentos, 1967. p. 192. Apud SÁ, Olga de. A

escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades Integradas Tereza D’Ávila (FATEA), 1979. p 190.

140 SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 102. 141 Ibidem. p. 103.

Segundo Evando Nascimento, na obra Clarice Lispector: uma leitura pensante, a autora, pela ficcionalização da palavra, procura criar uma inquietante estranheza143; trata-se de um momento desestabilizador que questiona o leitor. Este questionamento pode ser erigido por símbolos, como a utilização de animais, criando uma verdadeira experiência de afetamento.

A radicalidade dessa experiência está no estranhamento de si mesmo que acontece de maneira não calculada. Se cálculo houvesse, ainda se estaria no reino da razão pura, da ratio, do lógos [grifo do autor], da simples lógica, e a experiência descambaria num “exotismo mental”, nada diferente de tantos outros inventados pelas outras escolas literárias, cujo exemplo mais esclarecedor seria o panteísmo simbolista.144

Esta relação de transformação profunda pode ser percebida na obra A hora da estrela, quando o narrador Rodrigo S.M apresenta a sua relação com a personagem nordestina. O texto relata Macabéa olhando-se no espelho e num instante (num rufar de tambor) acontece uma troca, pois o rosto que aparece no espelho não é mais de Macabéa e sim do narrador.145 Esta intertroca narrador/personagem, segundo Evando Nascimento, indica um tornar-se outro. Este poder de acometer o leitor causado pelo texto clariceano tem como uma das características básicas a metalinguagem. Entende-se a metalinguagem como exploração da palavra que provoca surpresa, conforme relata Olga de Sá:

1°) fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das idéias; e com isso, entregando-se a uma aventura da expressão,

2°) tentar agir sobre a língua, como instrumento, para chegar a esses domínios pouco explorados da mente. Clarice corre o risco da aposta, não se resigna à rotina. Seu tom é mais ou menos raro. Cria “imagens novas”, “novos torneios”, associações incomuns. Sua meta é penetrar no mistério acerca do homem. Se não o consegue inteiramente ainda, como ajuíza o crítico, o timbre de Perto do Coração Selvagem [grifo do autor] é das obras de exceção.146

143 NASCIMENTO, Evando. Clarice Lispector: uma leitura pensante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2012. p. 26. (Coleção Contemporânea).

144 Ibidem. p. 32.

145 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 28. Doravante a obra A hora da

estrela será citada com a sigla HE.

4.1 A escritura epifânica

Com objetivo de compreender e aprofundar a obra de Clarice Lispector, seus críticos e teóricos usaram o termo epifania. Entende-se este termo como uma revelação por meio da escritura, em que algo cotidiano inesperadamente propicia uma nova visão da vida. Segundo Luciana Stegagno Picchio, no seu artigo Epifania de Clarice, publicado na revista Remate de Males, esta força epifânica é tamanha que tem o poder de pegar “como uma droga, uma súbita alegria no corpo todo, por simpatia, sintonia, revelação”.147

Destaca-se que o termo epifania não aparece explicitamente na obra de Clarice. Olga de Sá, na sua renomada obra A escritura de Clarice Lispector, apresenta a pertinência deste termo em relação à escrita clariceana148. Olga faz uma ponte entre a obra de Joyce e de Clarice: “Clarice privilegia este momento da obra de Joyce na sua própria inauguração como romancista. Jamais usa o termo epifania e se tem consciência deste processo, não o demonstra explicitamente”.149

A palavra epifania pode ser assim definida: epiphanéia (manifestação, aparição), do grego epi= sobre; phaino= aparecer, brilhar. Esta definição sobre epifania possui duas possibilidades de interpretação, uma religiosa e outra literária. A interpretação religiosa define epifania como uma aparição ou manifestação do divino. Percebe-se esta relação do sentido religioso na festa cristã da epifania.150 A interpretação literária, por sua vez, apresenta o mesmo conceito de aparição, porém esta aparição é percebida mediante um relato: “relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda força de uma inusitada revelação”.151 Neste sentido, percebe-se uma aproximação entre o termo epifania, em Clarice, e metáfora, em Ricoeur. Para o filósofo, a narrativa deve levar a uma experiência, um modo de habitar e estar no mundo; sua compreensão de metáfora ultrapassa a interpretação tradicional que via nela apenas uma figura dentro do discurso.

147 PICCHIO, Luciana Stegagno. Epifania de Clarice. In REMATE DE MALES, Campinas, (9): p. 17-20, 1989. 148 Olga de Sá apresenta vários exemplos sobre a epifania nos textos clariceanos. Cf. SÁ, Olga de. A Escritura de

Clarice Lispector. 3. Ed. Petrópolis- RJ: Vozes, 1979. p. 192-206.

149 SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 194.

150 HOLANDA, 1975, p. 541. Apud MORAES, Rozania Maria Alves de. Epifania e “crise” uma análise

comparativa em obras de Clarice Lispector e Marguerite Ruas.

<http://periodicos.ufrn.br/index.php/odisseia/article/view/2056/1490> Acesso 29 janeiro 2013, 10:00:20.

151 SANT’ANNA, Afonso Romano de. 1973, p. 187. Apud MORAES, Rozania Maria Alves de. Epifania e

“crise” uma análise comparativa em obras de Clarice Lispector e Marguerite Ruas. Disponível em: <http://periodicos.ufrn.br/index.php/odisseia/article/view/2056/1490> Acesso 29 janeiro 2013, 10:00:20.

Ricoeur entende a metáfora como um poema em miniatura capaz de criar um instante e revelar os sentidos mais profundos da vida humana.152

Evidencia-se que Clarice utiliza os recursos da linguagem para criar uma tensão psicológica. Esta tensão gera um momento imprevisível, capaz de romper com o comum da vida ou com os clichês criados pela sociedade que impedem o equilíbrio do homem moderno justamente por gerar angústias e desconfortos. A crítica brasileira considera o termo epifania como um instante existencial, um retirar o véu; trata-se de uma revelação interior ou um momento explosivo, porém silencioso, um instante interior advindo dessa tensão psicológica. Clarice inaugura uma nova práxis da escrita, e não um conceito novo. Sua práxis deseja exprimir as sensações da vida que serão submetidas às palavras.

Antonio Candido relata que o texto em Clarice se transforma em valores, e não somente em sinais, por meio de um processo psicológico.

Nesse “romance de aproximação”, ela cria uma rara tensão psicológica, que se reflete numa espécie de tensão lingüística: vocábulos que perdem o sentido comum e ganham uma expressão sutil, de tal forma que a língua adquire o mesmo caráter dramático do enredo. Clarice permite ao leitor respirar uma atmosfera de grandeza [...].153

A escrita clariceana assume uma tentativa de alcançar os espaços secretos do humano, mas o meio para atingir esse espaço será o caos, fazer a experiência da desordem para alcançar a ordem. Neste processo, os seus personagens vivem o caos, a salvação ocorre pelo imaginário que os retira da vida real, o sonho/imaginário será a via para reconhecer a vida real. Verifica-se que a obra clariceana, ao romper com a referência utilizada pelo regionalismo, não assume uma postura alienante, pelo contrário, “ao se despir das marcas de referencialidade, penetra em território simbólico, inaugurando aí a sua realidade”.154 Trata-se de uma nova forma de revelar o mundo e compreender a realidade.

Ora, não há em Clarice uma preocupação em envolver o leitor numa trama emocional, atraindo-o mediante um acompanhamento rotineiro fundamentado no “êxtase hipnótico”, para usar uma expressão de Lucrécia D’ Aléssio Ferrara. Clarice força o leitor a dilatar as pupilas para ver melhor,

152 Para um maior aprofundamento confira: RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 2. ed. Tradução: Dion Davi

Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.

153 SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p 130.

154 KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada: O social em Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Editora

para identificar com maior nitidez o que se encontra subscrito. “Não é confortável o que te escrevo”, alerta ela, procurando oferecer uma visão singular, insólita da realidade, através de processos desautomatizantes de percepção, que causam estranhamento no leitor e o obrigam a afastar as palavras para descobrir o texto, para liberar seu sentido.155

Este processo de ficcionalização da palavra, utilizado por Clarice, faz com que o leitor se surpreenda com o texto que, por sua vez, flui por meio de “flashes”, ou instantes epifânicos. Esses flashes permitem ao leitor um profundo questionamento sobre a vida, sobre sua realidade, desencadeando uma reflexão sobre seus problemas existenciais e éticos. A escrita de Clarice pode ser considerada uma verdadeira maiêutica socrática, pois realiza no leitor aquilo que a palavra maiêutica significa: um parto.

Toda busca em Clarice é feita através do olhar, semelhante a um fotógrafo e sua câmera. Como ele, Clarice cristaliza o instante. Para o fotógrafo, um leve toque e... clic. Um instante do mundo sensível é retido com toda a sua magia no mecanismo da câmera escura. Para o olhar de Clarice, também, em relação à escrita, nem processo de inversão reflexiva da informação ‘luminosa’. Momento único em que a pulsão interior predomina e aquele que escreve fisga um recorte privilegiado do cosmo, e com esse ato se inscreve na leitura desse mundo, eternizando-o, pela mensagem que veicula: a sua mensagem. É o “flash” de Clarice (“epifania”, segundo Olga de Sá), e o seu olhar pleno de significado, cuja omissão das palavras se traduz não só no prazer estético da criação, mas em um registro insólito dos fatos, rarefeitos pela descontinuidade, através de uma pluralização dos significantes.156

O desejo de compreender a condição humana é extremamente forte na obra de Clarice Lispector. É o ser humano que está no centro de suas interrogações. É esse ser tão estudado e tão pouco conhecido que a escritora obriga a se reconstruir para reencontrar em si mesmo o humano do homem, o coração que, com dor e sofrimento, se aprofunda em si próprio: o ser dentro do ser. 157 Para realizar o seu intento, Lispector utiliza de ferramentas como o silêncio. 4.2 O silêncio

A escrita de Clarice é uma busca de exprimir o inexprimível, feito somente realizado por meio do silêncio. O silêncio passa a ser compreendido como um processo de comunicação

155 BATHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética, p.94. Apud KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura

Dissimilada: O social em Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Editora Liberdade, 1999. p. 34.

156 KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimilada... Op.cit. p. 41. 157 SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Op.cit. p. 212.

sem palavras, como a própria autora aponta: “Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio”.158

Este momento de iluminação interior (epifania) do leitor é potencializado pelo silêncio de Clarice. A própria Clarice alerta o seu leitor: “Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa... Lê a energia que está no meu silêncio”.159 Percebe-se que o texto clariceano é um complexo de signos que aguardam um leitor atento. O silêncio na escrita clariceana não significa ausência e vazio, pelo contrário, é uma ação intensa capaz de afetar a imanência do leitor, provocando uma reação do mesmo diante da existência.

É preciso despertar no leitor o interesse pelo que se encontra atrás da névoa cortina de palavras, é preciso fazê-lo descobrir o prazer da descoberta e, assim, o prazer do texto, de que fala Barthes; o prazer do jogo, onde o leitor é o “comparsa” no dizer de Antonio Candido, ou o “parceiro”, na expressão de Julio Cortázar.160

4.3 O grotesco

A exploração da linguagem utilizada por Clarice é edificada por meio de várias técnicas. Uma das técnicas utilizadas por Clarice com o objetivo de criar este “instante já” é o