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A HUMANIZAÇÃO DO SER HUMANO UM DIÁLOGO ENTRE A TEOLOGIA E A OBRA LITERÁRIA “A HORA DA ESTRELA” DE CLARICE LISPECTOR MESTRADO EM TEOLOGIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Glaucio Alberto Faria de Souza

A HUMANIZAÇÃO DO SER HUMANO

UM DIÁLOGO ENTRE A TEOLOGIA E A OBRA LITERÁRIA A HORA DA ESTRELA DE CLARICE LISPECTOR

MESTRADO EM TEOLOGIA

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Glaucio Alberto Faria de Souza

A HUMANIZAÇÃO DO SER HUMANO

UM DIÁLOGO ENTRE A TEOLOGIA E A OBRA LITERÁRIA A HORA DA ESTRELA DE CLARICE LISPECTOR

MESTRADO EM TEOLOGIA

SÃO PAULO 2013

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por sua bondade e generosidade;

Agradeço ao meu orientador Prof. Doutor Antonio Manzatto pela sua valiosa orientação, pelo seu companheirismo e amizade;

Agradeço a Profa. Doutora Maria Freire da Silva por sua atenção, sua presença singela e fraterna;

Agradeço a Regina, minha amada esposa, que prontamente sempre está ao meu lado, acreditando nos meus sonhos;

Agradeço a minha mãe por seu carinho e suas orações;

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RESUMO

O objetivo deste trabalho foi apresentar a importância e a possibilidade do diálogo entre a teologia e a literatura, tomando como base de reflexão o elemento antropológico da obra A hora da estrela de Clarice Lispector. Nessa obra, a autora retrata a “inexistência” de Macabéa, um ser humano vítima de uma sociedade marcada por uma estrutura social capitalista que desumaniza, escraviza e exclui quem dela não consegue fazer parte. São essas inquietações que levam Clarice a compor seu último romance, carregado de denúncia social e à espera de resposta, por isso inacabado. Mais do que denunciar este modelo “tecnocolor” que subjuga, a autora espera por novos rumos, pois não é possível continuar vivendo desta maneira. Ela mesma diz: “esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública”. A partir dessa realidade retratada por Clarice é que busquei elaborar uma resposta aos questionamentos sobre o futuro em uma sociedade em nada diferente da construída pela autora, uma sociedade marcada pelo consumismo, pela necessidade do “ter”, uma sociedade que banaliza e relativiza crenças e valores. Creio que a resposta possa ser dada a partir da Cristologia.

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ABSTRACT

The aim of this work was to present the importance and possibility of dialogue between theology and literature, based on anthropological reflection from the work A hora da estrela by Clarice Lispector. In this work the author portrays the “absence” of Macabéa, a human being as a victim of a society marked by a capitalist social structure that dehumanizes and enslaves, it excludes those who cannot join. It is these concerns that lead Clarice writing her last novel full of social protest and waiting for response, so unfinished. More than denounce the “tecnocolor” model that subjugate, the author awaits new directions, because it is not possible to keep on living this way. As she says: “This story takes place in a state of emergency and public calamity”. From this reality portrayed by Clarice, I sought to develop a response to questions about the future in a society, as current as society today, marked by consumerism that trivializes and relativizes beliefs and values. I believe the answer can be given from Christology.

(7)

SIGLAS

HE- A hora da estrela

AV- Água viva

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

CAPÍTULO I – TEOLOGIA E LITERATURA ... 13

1. Como nasce a teologia ... 13

1.1 A teologia no mundo atual ... 14

1.2 O pluralismo teológico ... 18

1.3 A teologia e os outros saberes ... 19

2. Literatura ... 21

2.1 Obra de Ficção: a arte que imita a vida ... 21

2.2 Os símbolos falam ... 25

2.3 Os três mundos de Paul Ricoeur ... 26

2.4 A narrativa e seus elementos textuais ... 29

2.4.1 O enredo ... 30

2.4.2 A personagem ... 31

2.4.3 Tempo e espaço ... 32

2.4.4 Situação ambiente e ponto de vista ... 33

2.4.5 Linguagem ... 33

3. Diálogo entre teologia e literatura ... 34

3.1 O eixo antropológico: o tri-vial entre a teologia e a literatura ... 35

3.2 A palavra: expressão do humano ... 36

3.3 O diálogo entre teologia e literatura: Questão do método... 38

3.3.1 Métodos antigos ... 39

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3.3.3 O método antropológico: o ser no mundo ... 40

3.3.4 Diálogo entre teologia e literatura em território nacional ... 40

3.3.5 A crítica metodológica de Magalhães ... 41

4. Conclusão ... 43

CAPÍTULO II – SEMPRE É TEMPO DE PENSAR A HORA DA ESTRELA ... 44

1. Breve biografia: um panorama da vida de Clarice ... 45

2. Entre o biográfico e o literário: a relação da escrita com a vida ... 48

3. A literatura nacional moderna e o estilo de Clarice ... 50

3.1 Clarice e a crítica ... 51

4. A escritura clariceana ... 54

4.1 A escritura epifânica ... 56

4.2 O silêncio... 58

4.3 O grotesco ... 59

5. O social em Clarice ... 60

6. A hora da estrela ... 64

6.1 Macabéa: o retrato da miséria... 67

6.2 O encontro com o amor ... 68

6.3 Em busca de um futuro ... 69

6.4 A morte da estrela ... 71

7. Análise da obra ... 72

7.1 O corpo do texto ... 75

7.2 É morrendo que se nasce para a vida ... 80

8. Conclusão ... 81

CAPÍTULO III – REFLEXÃO TEOLÓGICA ... 83

1. Uma antropologia teológica? ... 83

1.1 O confronto com a negatividade ... 86

(10)

2. A luta pela vida ... 90

2.1 O messianismo ... 90

2.2 O messias Galileu – a resposta de Deus à alienação do ser humano ... 91

2.3 Jesus e a sua missão ... 92

2.4 O Reino de Deus: a desfatalização da história ... 94

3. A hora do espetáculo: o confronto mortal ... 95

3.1 A hora de Jesus ... 97

4. Existe esperança? ... 99

4.1 A morte de Jesus ... 100

4.2 Reavivando a esperança ... 101

5. Quanto ao futuro? ... 103

5.1 Um Deus solidário/uma comunidade solidária... 104

6. Conclusão ... 108

CONCLUSÃO GERAL ... 110

(11)

INTRODUÇÃO

A teologia é um discurso sobre Deus que nasce da fé. A elaboração deste discurso é feita de modo rigoroso e com metodologia própria, caracterizando-a como ciência. Porém, deve-se reconhecer que a teologia como ciência é sui generis, pois seu fundamento (Revelação) difere dos fundamentos dos outros saberes científicos. Ressalta-se que a elaboração teológica apresenta uma diversidade muito grande de métodos e temas oriundos a maneira de teologizar de cada época.

Toda teologia é contextual e histórica, possibilitando um verdadeiro pluralismo teológico, cabendo ao teólogo repensar os dados da fé no ambiente em que está inserido. Assim sendo, o teólogo deve estar atento aos sinais dos tempos para poder se comunicar com o ser humano, pois este, ainda hoje, levanta questões fundamentais sobre a sua existência. O diálogo com o mundo e com a sua vasta complexidade exigirá por parte do teólogo aproximação a outros saberes, e estes saberes o ajudarão como mediações do contexto atual. Esta aproximação entre teologia e outros saberes não é uma novidade, pois a filosofia sempre foi parceira da teologia. Evidencia-se que esta dialética entre a teologia e as demais ciências é benéfica para a teologia, pois estas ciências podem provocar o teólogo às novas descobertas ou relembrar dimensões esquecidas.

A literatura como mediação para a reflexão teológica pode soar estranho. Diferente, sim! Mas, possível! Esta possibilidade é verificada no fato de a literatura como obra de ficção ter como inspiração a vida. Logo, ela comunica importantes elementos da sociedade e da personalidade do autor. Por meio da literatura pode-se ter certa compreensão do mundo, assim como pelas ciências, a diferença está na maneira de transmitir os seus dados, pois a literatura por sua força simbólica é capaz de aquecer o coração do seu interlocutor.

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Falar de literatura é falar de um campo muito vasto e com várias escolas. Esta pesquisa se limitará ao gênero do romance na obra A hora da estrela, de Clarice Lispector. Trata-se de uma autora de peso da literatura nacional, que tem como objeto central da sua escrita o ser humano. Na obra A hora da estrela, a autora aponta para o ser humano desumanizado pela força capitalista-tecnicista: ele é miserável, inconsciente e vítima do seu contexto social. Clarice faz o seu leitor se deparar com um processo desumanizador, e a teologia, ao se aproximar da literatura clariceana, buscará anunciar a salvação oferecida por Deus a todos os homens, proclamando a boa notícia do Reino de Deus, contrapondo-se à realidade de indiferença e desprezo conhecida pela personagem da trama, a desinteressante alagoana Macabéa.

Encontrar-se com a literatura é deixar-se questionar por ela e procurar responder a esses questionamentos. Para tal missão, esta pesquisa foi divida em três capítulos:

O primeiro capítulo, denominado Teologia e Literatura, procura estabelecer a possibilidade de diálogo entre ambas. Este capítulo está dividido em três grupos temáticos: o primeiro refere-se à teologia, o segundo trata da literatura, e o terceiro grupo trabalha o diálogo entre teologia e literatura.

O segundo capítulo, Sempre é tempo de pensar A hora da estrela, procura fazer uma análise profunda da obra, dando ênfase à denúncia social e à caracterização do ser humano ali presente.

(13)

CAPÍTULO I – TEOLOGIA E LITERATURA

1. Como nasce a teologia

A teologia1 é um discurso sobre Deus que nasce da fé. Ela é a busca do crente que deseja aprofundar aquilo que crê. Segundo a clássica definição de Santo Anselmo, a teologia

é: “A fé que deseja saber”.2 Na fé encontra-se uma vontade de verdade que seduz a razão, então, nasce a teologia. Por conseguinte, teologia é a fé de olhos abertos, inteligente e crítica. O teólogo Roger Haight apresenta a essência da fé como um compromisso dinâmico da liberdade humana em ação. Para ele, “a fé só é real à medida que caracteriza uma efetiva

reação e resposta humana à realidade”.3 Logo, pode-se fazer uma relação direta entre fé e racionalidade a partir da experiência humana, como assinala Clodovis Boff: “Nessa linha, é impossível que haja fé sem que haja um mínimo de reflexão sobre ela, sem que o espírito deixe de pensar sobre o conteúdo. Esse é um movimento natural, espontâneo. Por isso, toda pessoa de fé é também teóloga, pelo menos em grau mínimo”.4

Verifica-se que a teologia é um trabalho da inteligência da fé, a fé que busca compreender e crescer. Trata-se da autocompreensão do que se crê e isso exige que o teólogo seja um sujeito de fé, como nos assinala Santo Agostinho: “Creio para entender”. É isso que a

definição clássica da teologia significa: compreensão da fé, usar todas as forças, todos os recursos da razão humana para compreender o que Deus diz ao homem em sua Revelação. Esta reflexão da fé é rigorosa, com métodos próprios que a caracterizam como ciência, uma ciência a seu modo, que tem no centro Deus, mistério insondável, e que usa dos símbolos cristãos para interpretar a realidade, como nos relata Haight:

1 A teologia é um termo pré-cristão. Este termo aparece pela primeira vez na obra A República de Platão (Rep.

379a). Outros filósofos trabalham com o termo teologia, porém, o estoicismo é que fundamenta a teologia como disciplina filosófica. O cristianismo aos poucos assume este termo e a partir dos pensadores da escola de Alexandria reivindica-se o discurso cristão como a verdadeira teologia. Cf. LACOSTE. Jean-Yves. (dir.) Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas e Loyola, 2004. p. 1707.

2 BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. 2. ed. rev. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 25. 3 HAIGHT, Roger. Dinâmica da teologia. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 38.

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Talvez a designação mais comum da teologia provenha de Agostinho e de Anselmo: teologia é fé em busca de compreensão. Decerto, a adequação dessas fórmulas depende efetivamente de maior explanação de seu significado. A compreensão da teologia que subjaz a este ensaio, no entanto, é a seguinte: a teologia é a interpretação da realidade à luz dos símbolos cristãos. Em termos gerais, a teologia é uma disciplina que interpreta o todo

da realidade – a existência humana, a sociedade, a história, o mundo e Deus

– nos termos da fé cristã.5

Afirmar a cientificidade teológica não significa apresentar as evidências dos seus princípios, como faz a ciência atual.6 A racionalidade da teologia é hermenêutica, ela procura interpretar de maneira exaustiva os dados da Revelação em paralelo com o texto da vida. A teologia enquanto ciência possui suas fontes na Revelação: Sagrada Escritura, Tradição e o Magistério eclesiástico. Destas fontes ela colhe os dados que serão humildemente escutados (auditus fidei) e elaborados (intellectus fidei). A teologia como ação humana nasce na história, mas não se resolve nela. Ela interpreta a história e a orienta no encontro com a Palavra de Deus. Segundo Antonio Manzatto, a racionalidade da teologia faz com que o discurso da fé seja inteligível e não um discurso incompatível com a razão humana.7

1.1 A teologia no mundo atual

O mundo atual é um grande desafio à teologia cristã. Sob o enfoque da sociologia, denominamos a sociedade como moderna ou pós-moderna. Ressalta-se que não existe uma definição bem clara sobre essas terminologias, por isso, esta pesquisa se limitará a apontar algumas características que marcam este período. O modelo de civilização denominado modernidade se desenvolveu na Europa ocidental a partir do século XVI e alcançou o seu ápice no século XVIII. Dois acontecimentos ajudaram a impulsionar este modelo de vida: a revolução industrial e a revolução democrática. O ser humano consciente e amparado pela

racionalidade cunhou o termo “moderno”ou “novo” indicando uma ruptura com as tradições

dominantes em todos os campos da vida: a política, a economia, a arte, a ciência, a ética, etc.8

5 HAIGHT, Roger. Dinâmica da teologia. Op.cit. p. 238.

6 A ciência em nossos dias é entendida como um conhecimento certo e válido a partir de uma dedução lógica.

Sua verdade se apoia na racionalidade das experiências através de métodos específicos, que são aceitos pela comunidade científica. Este conceito de ciência não se aplica à teologia, a verdade teológica tem como ponto de partida os dados da Revelação que vão orientar o teólogo na elaboração e sistematização dos seus pensamentos. Cf. LIBANIO, J. B; MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Loyola, 1996, p. 68-74.

7 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos

romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p. 39.

8 Segundo Wagner Lopes Sanches, a palavra ruptura sintetiza este processo denominado moderno. Foram

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Porém, como este modelo não foi capaz de responder às necessidades humanas, inicia-se um novo modelo chamado pós-modernidade.

A pós-modernidade indica um passo adiante, posterior à modernidade. Este modelo cultural ultrapassa os valores da modernidade, não aceita as macronarrativas, logo, tudo o que é sólido ou absoluto se torna líquido. Surge então uma crise ética ou falta de sentido. Neste modelo tudo pode ser criticado. O efêmero é a grande marca deste modelo social e pode ser representado por quatro características: a secularização, o individualismo, o pluralismo e o subjetivismo.9

Segundo Bruno Forte, a sociedade atual vive um profundo vazio das razões que motivam o sentido de viver. Sua visão sobre o nosso tempo pode ser exposta como uma falência:

É tempo de naufrágio e de queda, no qual a crise de sentido do que se é e do que se faz torna-se característica comum, às vezes até mesmo aspecto

peculiar da inquietude moderna. Neste tempo de pobreza, que é a “noite do

mundo”, não por falta de Deus, mas pelo fato de que as pessoas não sofrem

mais dessa falta, a doença mortal é a indiferença, o não sofrer mais a “falta

da pátria”, que é antes de tudo a perda do gosto de buscar as razões últimas

do viver e do morrer humano. É tempo de exílio, se com esta metáfora se quer dizer: tempo de indiferença aos fundamentos do comportamento em relação a um horizonte último e a uma última pátria. E o exílio − como

afirma um dito da tradição judaica – começa não quando se deixa a pátria,

mas quando não se tem mais no coração ardente [...].10

Diante do vácuo causado pela efemeridade da vida, o teólogo Bruno Forte afirma a atualidade da teologia, pelo fato de que ela levanta as questões fundamentais da existência humana, buscando o sentido radical do viver em todas as épocas e apresentando o valor e a dignidade da vida humana. Para Clodovis Boff, a atualidade da teologia é perene.11 A atualidade teológica se constrói através da hermenêutica da fé, que reinterpreta e organiza os dados revelados, vividos e compreendidos pela comunidade eclesial, em diferentes contextos

com o seu caráter sacral e absoluto, que será questionado pelo advento da historicidade. Cf. SANCHES, Wagner Lopes. Teologia Cristã e modernidade: confrontos e aproximações. In BATISTA, Paulo Agostinho N; SANCHES, Wagner Lopes. (orgs). Teologia e Sociedade: Relações, dimensões e valores éticos. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 57-62.

9 BARREIRO, Álvaro. SJ. A eclesialidade da fé cristã nos novos contextos socioculturais. In. KONINGS, Johan.

(org). Teologia e Pastoral: Homenagem ao Pe. Libanio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 123-145. (Coleção CES).

10 FORTE, Bruno. Teologia em diálogo: Para quem quer e para quem não quer saber nada disso. Tradução:

Marcos Marcionilo. São Paulo: Loyola, 2002. p. 10. (Coleção CES-14).

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socioculturais e históricos.12 Deste modo, ela assume uma contramão cultural. Fundada na Palavra Soberana, ela assume a criticidade no momento histórico, adotando o seu papel profético, conforme nos propõe o Concílio Vaticano II:

Para desempenhar a sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole

frequentemente dramática.13

O Vaticano II, como um todo, é um gigantesco esforço para adaptar-se aos problemas e desafios contemporâneos. A teologia pós-conciliar não mais consistirá em repetir apenas a riqueza proveniente dos séculos passados e fixada uma vez por todas em fórmulas teológicas. Ela interrogará e responderá; aceitará a pesquisa dos homens e não recusará receber alguma coisa dela proveniente14, depois da Constituição Pastoral Gaudium et Spes a teologia não pode deixar de olhar para a realidade dos seres humanos.15 Ela deve ser companheira do ser humano na história assumindo a aventura humana.16

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes apresenta um profundo olhar de compaixão em relação à humanidade, conforme apresenta Geraldo Lopes:

[...] Compaixão não é dar coisas, mas é dar-se a si próprio, colocar-se a

serviço, estar com o outro na hora da necessidade. A Gaudium et Spes tem

profundíssima atualidade na era dos homens e mulheres “sem”: sem terra,

sem trabalho, sem teto, sem saúde, sem escola, etc. Homens e mulheres que

12 LIBANIO, J.B, MURAD. Afonso. Introdução à Teologia... Op.cit. p. 336.

13CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. “Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje”. In Compêndio do Vaticano II - constituições, decretos, declarações. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. n. 4. Doravante a Constituição Pastoral Gaudium et Spes será citada pela sigla GS.

14 GS 44.

15MANZATTO, Antonio. O teólogo, responsável pelo mundo. Disponível em:

<http/ciberteologiapaulinas.org.br/ciberteologia/index.php/notas/o-teologo-responsavel-pelo-mundo/> Acesso em 15 novembro 2012, 23:37:15.

16 A resposta da teologia ao homem moderno segundo o Concílio Vaticano II passará pela atenção religiosa do

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mordem o pó da estrada para cavar a própria sobrevivência, os quais, em um modelo “herodiano”, andam cansados de tantas promessas.17

A teologia, na perspectiva apresentada por Geraldo Lopes, é um ato de amor, amor ao ser humano situado na sua realidade histórica. Esta relação amorosa, segundo Bruno Forte, deve ser considerada como um encontro, encontro entre a condição humana de êxodo e o advento de Deus vivo em sua relação histórica. Esta convergência ocorrerá na medida em que a teologia assumir o momento histórico, sem renunciar ao Eterno. Logo, a teologia será memória da fé revelada no presente, adotando o papel profético e crítico. A teologia como história perfila-se, então, em seu estatuto crítico original: ela é memória da fé revelada que, na consciência responsável do presente, se torna projeto. Sem memória, o projeto seria utopia; sem projeto, a memória seria lamento; sem consciência responsável do agora, memória e projeto seriam evasão. É na unidade dos três momentos que o pensamento da história se faz verdadeiramente crítico, rico em discernimento e juízo, capaz de julgar e orientar o presente. Se a Igreja quiser responder às verdadeiras questões do mundo presente, deve abrir-se, e não partir apenas do dado da Revelação e da Tradição, como fez a teologia clássica. Exige-se dela, agora, partir dos dados e questões recebidos do mundo e da história.18

Aqui a história é percebida como lugar da mediação da verdade, não como a verdade mesma em seu fazer-se: uma verdade que se resolvesse na história justificaria um relativismo absolutamente incapaz de garantir a abertura do devir histórico às surpresas da Transcendência e de seu advento [...] Na concepção teológica, a verdade “advém” a história, não “devém” nela; vem a manifestar-se na mediação hermenêutica da linguagem e da comunicação, mesmo excedendo sempre a capacidade de apreensão do conceito de interpretação.19

Salienta-se que a cultura contemporânea apresenta-se cada vez mais complexa. Esta complexidade é um desafio à criticidade teológica, que não deve procurar respostas prontas ou fáceis. Por ser ciência e estar limitada ao seu contexto histórico, a teologia terá sempre uma resposta provisória e apresentará um pluralismo inevitável. Logo, o diálogo com o mundo e com a sua vasta complexidade implica atenciosa relação com o seu tempo, reconhecendo os problemas humanos que também são os seus problemas. Pensar a relação entre a teologia e sociedade é problematizar as relações entre um determinado tipo de saber, oriundo da fé religiosa e que toma em conta uma dimensão específica da realidade – a

17 LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes: Texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 17.

18 CONGAR, Yves. Situação e tarefas atuais da teologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p. 87-88. (Coleção

Revelação e Teologia).

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dimensão da Realidade Última da vida − e um aspecto da realidade humana que é a vida em sociedade com toda complexidade que dela decorre.

É por isso que a teologia – escuta pensante do Outro em Seu falar e em Seu

calar, palavra salutarmente “ferida” pelo acolhimento da revelação – pode contribuir de modo singular para a pesquisa em torno da fundação da ética e interpelar seu potencial de memória crítica do Deus que vem e da capacidade de discernimento dos traços do Último nos rostos dos outros a serviço do

crescimento da qualidade de vida para todos [...].20

1.2 O pluralismo teológico

Toda teologia é contextual e histórica, marcada pelo seu tempo. Assim sendo, ela sofrerá os limites produzidos pelo contexto no qual está inserida. “Uma teologia que se fechasse ao diálogo e que restringisse a uma recitação de teses em monólogo não pode ser boa teologia nem teologia eclesial propriamente dita”.21 O diálogo da teologia com o mundo de hoje deve ser um diálogo vivo, capaz de interrogar, ensinar e servir.

O alicerce do pluralismo teológico se dá em dois pilares. O primeiro é o mistério da fé, que supera em muito o entendimento humano e, por isso, não se esgota em somente uma interpretação. O segundo pilar está radicado neste encontro com a história; toda teologia está situada num contexto e, por isso, sofre os seus limites. “Toda e qualquer teologia já é

enculturação da fé e, por isso, discurso particular [...]”.22 Verifica-se que a mesma fé pode dar origem a diferentes teologias devido ao espaço cultural em que a mesma se desenvolve.

Impulsionado pelo diálogo e aggiornamento, o Concílio Vaticano II impele os teólogos ao encontro com os seres humanos no concreto da sua existência:

É dever de todo o povo de Deus sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da Palavra de Deus, de modo que a Verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida,

melhor compreendida e apresentada de um modo mais convincente.23

20 FORTE, Bruno. Teologia em diálogo... Op.cit. p. 16.

21 MYSTERIUM SALUTIS: Compêndio de dogmática histórico-salvífica. Tradução portuguesa. Vol I/1. Rio de

Janeiro: Petrópolis, 1971. p. 23.

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Afirmar a pluralidade da teologia e a sua inevitável ocorrência não significa abrir espaço para o relativismo e nem tão pouco infidelidade à Revelação. A teologia deve estar sempre ligada àsua fonte, caso contrário não será teologia. Cabe ao teólogo repensar os dados da fé dentro de cada cultura, dentro de cada lugar social. Entende-se lugar social como as condições e os contextos em que o ser humano está inserido, logo cada realidade exigirá do teólogo uma leitura diferente e mediações que possibilitem uma maior aproximação.

1.3 A teologia e os outros saberes

Para realizar a sua tarefa, a teologia se aproxima de outros saberes. Ela serve-se dos recursos apresentados por outras áreas do conhecimento. E sua relação é de respeito e de reconhecimento da autonomia das demais áreas do saber. Segundo Clodovis Boff, é um equívoco pensar que a teologia precisa abordar questões referentes a outras ciências. Ela possui o seu tema próprio, contudo, para realizar sua missão, ela necessita aproximar-se do conhecimento humano, em particular da filosofia e das ciências humanas. Sendo entendida como um discurso humano sobre Deus, a teologia pode utilizar os outros saberes para agregar ao seu conhecimento sobre a realidade. Outro aspecto importante é que o mistério de Deus é revelado no mundo e na história. O diálogo entre criador e criatura acontece na história humana com todos os desafios que a história comporta.

Deste modo, a teologia, partindo do seu pressuposto absoluto que é a Revelação, utiliza das ciências como instrumento ou mediações que lhe permitem uma melhor compreensão da realidade. Ressalta-se que a mediação cultural é comandada pela fé, como assinala Clodovis Boff: “Diante de ciência alguma a teologia pode assumir uma posição subalterna e, pior ainda, de subserviência”.24 Este relacionamento entre a teologia e as demais ciências deve ser sempre baseado na dialética; não cabe ao saber teológico interferir no processo do conhecimento de uma determinada área. A relação não deve ser ditatorial e, sim, democrática. Com efeito, este diálogo entre a teologia e as demais ciências, incluindo a arte, contribui com a teologia, ajudando-a a aprofundar e a provocar as razões teológicas.

O teólogo não pretenderá substituir os especialistas dos vários campos e não hesitará em deixar-se provocar por eles, reconhecendo o valor das suas propostas e percebendo a força

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inquietante de seus questionamentos. Longe de fechar-se num castelo de fáceis certezas, a teologia deverá viver na brecha da história, no diálogo e na companhia exigente e fecunda das pessoas que fazem a real circunstância em que a teologia se vê posta.

O diálogo com a ciência representa um movimento de reconciliação da teologia com as realidades terrestres. Esta reconciliação se dá no fato de que no passado recente a fé cristã apenas excomungava o mundo moderno.25 Ressalta-se que neste diálogo a própria teologia reconfigurou-se em seus métodos. Ao entrar em contato com as diversas áreas do saber, a teologia pode contribuir com a sociedade, oferecendo-lhe um conhecimento valorativo, um verdadeiro horizonte para a vida humana em todos os tempos.

A teologia não existe para si. Sua raiz está na fé, e a fé não é ato isolado. Assim sendo, a teologia é uma ciência feita para a vida. O objeto de estudo da teologia é Deus, e Deus não é somente verdade. Ele é também vida. As verdades reveladas são para serem conhecidas, sim, mas para serem finalmente vividas. Elas esclarecem, mas também aquecem. Mas a teologia não fala somente de Deus, ela fala também do ser humano.26 Por isso, ela precisa lançar um olhar atento às condições na qual a vida humana se desenvolve, e fazer o processo de forma indutiva em que “os problemas surgem da vida, de baixo, pela via da indução. Vai da experiência ao dogma. O primeiro momento de tal teologia é ver. Ver os problemas que tocam

a vida dos fiéis e, num segundo momento, refletir sobre tais questões à luz da revelação”.27

Este momento histórico é desafiador e, ao mesmo tempo, de oportunidades. Em diálogo com as diversas ciências e com toda a sociedade, a teologia pode, agora, apresentar e expor as suas reflexões em muitos setores, mas fará essa transição somente aqueles que buscam na sua reflexão escutar28 (auditus/fidei e vitae) e se sentem provocados pela realidade da existência como o próprio Jesus. Assim, a teologia não será limitada, pelo contrário, será dinâmica e profética, será um processo de construção (intellectus fidei) a partir da historicidade na qual o ser humano está situado. A Revelação acontece dentro da história, por

25 O documento eclesial que sintetiza a reação católica frente à modernidade é a Encíclica Quanta Cura, de Pio

IX (1846-1878).

26 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. Tradução: Carlos Felício da Silveira. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 5.

(Coleção Deus para pensar; 2).

27 LIBANIO, J.B, MURAD. Afonso. Introdução à Teologia... Op.cit. p. 103.

28 Usarei a palavra escutar, mantendo assim a nomenclatura clássica do fazer teológico, que destina a escuta

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isso ainda hoje ela é atual. Enquanto Revelação, tecnicamente falando, terminou com a morte do último apóstolo, mas, como mensagem, há que ser atualizada29 para que o homem de hoje também tenha a possibilidade de fazer este encontro com Deus. “A teologia, ao fazer-se companheira, quer contar-lhe as estórias de Deus que lhe permitem encontrar sentido para esta aventura tão breve entre os infinitos do ontem e do amanhã”.30

Nesta pesquisa teológica, buscar-se-á a convergência entre a Palavra Eterna de Deus revelada ao homem e o momento histórico no qual este mesmo homem está inserido, tendo como instrumento de mediação a obra literária, em especial o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Porém, antes da análise da obra clariceana, faz-se necessário apresentar a relevância da literatura e o diálogo entre a teologia e a literatura.

2. Literatura

A primeira etapa desta pesquisa teve como objeto a teologia. Após uma pequena introdução sobre como nasce a teologia, o texto apresentou a necessidade da ciência da fé em assumir-se como participante do momento presente. Para cumprir sua missão, a teologia deverá dialogar com outras áreas do conhecimento, como a literatura. Nesta segunda etapa, refletir-se-á sobre literatura como meio de construção social e instrumento de humanização, capaz de revelar os mais profundos anseios antropológicos. Esta capacidade da arte será terreno fértil para o teólogo poder examinar o contexto no qual a vida se desenvolve.

2.1 Obra de Ficção: a arte que imita a vida

Na mentalidade moderna é muito comum pensar que tudo o que é verdadeiro está relacionado ao labor científico, deste modo, a literatura seria considerada como falsa, devido a sua força ficcional. Este pensamento pode ser entendido como um preconceito, depreciação, pois, embora a literatura seja ficção, ela está ligada a uma tradição na qual o seu autor está inserido, assim seu ponto de partida será a vida.

29 A transmissão viva da Palavra de Deus é mediada pela Igreja que a interpreta na fé, na acolhida humilde, para

si e para os outros em cada momento da história. LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992. p. 17 (Coleção Fé e Realidade - 31).

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A ficção tem como inspiração o grande quadro da vida; a imaginação constrói o mundo irreal ancorado na realidade. É exatamente nesta relação do real vivido e do irreal imaginado que se encontra a questão da verdade na literatura.31 Ressalta-se que mesmo a literatura tendo essa capacidade de comunicar elementos importantes da vida, do modelo social e cultural, ela não substitui as ciências sociais.32 Esta influência mútua entre a literatura e a sociedade fará com que elementos externos do cotidiano sejam assumidos na elaboração da articulação interna da obra literária.

A poesia épica tradicional, em vigência até o século XVIII [...] servia de espelho onde se refletiam as representações, anseios e aspirações dos povos, carentes de alimento para a sensibilidade e a imaginação [...]. Idêntica função desempenha o romance, ressalvas as diferenças entre ambos, que nascem de ser outro o tempo e outros valores e as estruturas sociais: o romance pode, mais do que o conto, a novela e a poesia [...], apresentar uma visão global do mundo. Sua faculdade essencial consiste em recriar a realidade: não a fotografa, recompõe-na; não demonstra ou reduplica, reconstrói o fluxo da existência, com meios próprios, de acordo com uma

concepção peculiar, única, original.33

Verifica-se que a literatura não tem como finalidade a transmissão de informações.

“Literatura não transmite nada. Cria. Dá existência plena ao que, sem ela, ficaria no caos i -nomeado e, consequentemente, do não existente para cada um. E, o que é fundamental, ao mesmo tempo em que cria, aponta para o provisório da criação”.34 A literatura não se preocupa em apresentar um retrato mais próximo possível do verdadeiro, em ser uma notícia jornalística; pelo contrário, para o filósofo francês Paul Ricoeur, quando o romance no século XIX assume o papel da verossimilhança, ele entra em declínio.35

A arte imita a vida. Com ela, temos certa compreensão do mundo, do humano e da sua significação. A literatura também pode fazer com que a vida imite a arte, anunciando novas possibilidades de construir a sociedade. Esta possibilidade criativa da literatura em meio à vida cotidiana é profundamente reveladora, estar diante do provisório é captar e valorizar a vida como uma história da qual fazemos parte e na qual podemos assumir um papel novo

31 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos

Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p .17.

32 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: aproximações pela antropologia. Disponível em:

http://<www.alalite.org/pt/coloquios/brasil2007/comunicacoes.html>. Acesso em: 9 dezembro 2011, 10:05:15.

33 MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 165. 34 LAJOLO, Marisa. O que é literatura? 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 43.

35 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa 2: A configuração do tempo na narrativa de ficção. Tradução: Márcia

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diante dos mais variados desafios, como nos assinala Massaud Moisés: “[...] o romance encerra uma visão macroscópica da realidade, em que o narrador procura abarcar o máximo,

em amplitude e profundidade, com as antenas da intuição, observação e fantasia”.36

Proclamar a literatura como um passatempo, um momento de fuga da vida é reduzir

em muito a possibilidade de reconfiguração da arte, “a fruição de uma obra de arte implica

sempre reinvenção”.37 É simplesmente não perceber ou captar a vida que pulsa no interior de cada um, vida esta que pode ser despertada pela arte, no caso da literatura romanesca.

Nenhuma obra nasce por si só, ela deve ser construída, planejada, por isso o autor é o construtor da obra; ele tem como ponto de partida o seu referencial de vida, ela nasce das memórias, dos sentimentos, dos questionamentos vividos. Desta maneira, a obra é um conjunto de percepções que o autor vai reunir ao longo da sua caminhada de vida. As lembranças narradas são composições racionais dos sentimentos vividos pelo autor, e esses sentimentos nos revelam marcas da condição social e cultural em que o mesmo está inserido, consequentemente, por trás de toda obra literária há uma antropologia a ser descoberta.38

Afirmar que o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, objeto desta pesquisa, é profundamente marcado pela ficção é também afirmar que: “a própria criação da utopia se nutre sempre de uma imaginação ancorada na realidade”.39 Destarte, temos que a obra de ficção parte da realidade. A imaginação tornou-se um caminho que não apenas nos permite captar o real, mas vai além, permitindo-nos projetar novas perspectivas da realidade. Desta forma, encontramos o processo imaginativo na fantasia, na elaboração de projetos, nas expressões simbólicas, nas ideologias e nas mais variadas emoções que nos afetam diariamente. Neste sentido, esta pesquisa teológica buscará se aproximar da realidade vivida, tendo como mediação ou instrumento de captação a obra clariceana.

François Laplantine e Liana Trindade, na obra O que é imaginário, nos diz que: “O

imaginário em liberdade, que rompe os limites do real, consiste na explosão que propicia o

36 MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 165.

37 RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro: Forense-Universitário, 1969. p. 35. 38 Destaca-se que o termo “antropologia a ser descoberta” está relacionado à compreensão do sentido do humano

apresentado na obra literária. Ou seja, num primeiro momento buscar-se-á a partir da obra literária os elementos que constituem a vida dos personagens e somente depois é que estes elementos serão analisados.

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início de uma nova época ou apenas o tempo efêmero e extraordinário de uma festa [...]”.40 Esta explosão provocada pela literatura tem como ponto de partida a tradição, que envolve o autor. Por tradição deve-se entender o diálogo de tudo, o passado, o presente da configuração das experiências vividas. A obra é a reelaboração do passado no presente, e o passado se atualiza através da linguagem.41 Segundo Vicente Ataíde, a literatura toca e revela o profundo

do ser humano: “O objeto da especulação literária é a realidade, tomada em sentido amplo, absorvendo as regiões mais fundas do sujeito e as mais exteriores [...]. Através de palavras, o sujeito da comunicação quer dizer o que observou, o que sentiu, o que intuiu [grifo do autor]”.42

O romance, por ser obra de ficção, não se preocupa em retratar a verdade dos fatos. Ficção está diretamente ligada à imaginação, trata-se de um texto irreal, mas o fato de ser ficção não significa que seja falso. Como já foi apresentada acima, a literatura parte da realidade, mas a sua maneira de expressar a realidade é metafórica, usa-se da força simbólica para apresentar o contexto, e esta simbologia possibilita não só a atualização dos sentimentos do autor, mas também a reinterpretação por parte do leitor. É exatamente neste ponto que se situam as questões da verdade da literatura, o real é o inspirador, a vida é a potência, ou seja, a possibilidade de novas interpretações da realidade. Nesse contexto, podemos até falar da

literatura como “filosofia imaginativa”, influenciada pelo social.

A literatura é sempre atual, e também profética e escatológica na medida em que deseja realizar algo superior, ultrapassando a realidade vivenciada. Sendo entendida a literatura como um discurso figurado que faz alusão ao real, exatamente por estar distante do real, ela, a literatura, toma distância para ver a vida não como um dogma, mas como possibilidade de ser ou não ser. Com ela, nasce o questionamento, surgem novas possibilidades e novos desejos. Percebe-se que a literatura é um espaço profundamente humano, do humano desadaptado que busca transcender a sua realidade. Esta transcendência é mediada pelo símbolo, recurso abundantemente utilizado por Clarice Lispector na sua escrita.

40 LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário? São Paulo: Brasiliense, s/ ano. p. 2.

(Coleção Primeiros Passos).

41 LAJOLO, Marisa. O que é literatura? Op.cit. p. 49.

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2.2 Os símbolos falam

Ossímbolos estão vivos, falam de mim, de você, da nossa família, do nosso grupo, da nossa casa e, por estarem vivos, podem carregar negação ou aceitação de tudo aquilo que representam. A linguagem simbólica é usada quando se esgotam as expressões comuns. É como ponte que permite ao leitor ultrapassar os seus limites. A literatura é altamente simbólica, os símbolos são construções humanas, portanto, por trás do simbólico existe um ser humano que deseja relacionar-se.

A linguagem simbólica, considerada enquanto um ato de amor promove um lançamento e uma entrega de cada um de nós para o que não se consegue nomear, para o que não se consegue resposta imediata, buscando o conhecimento que é, ao mesmo tempo, autoconhecimento. Compreendendo

alguns símbolos, compreende-se algo mais de si mesmo.43

O símbolo não cristaliza uma emoção; deve ser visto como uma moldura que não possui uma definição de contornos; ele é livre como numa pintura. A moldura serve de aparato para a verdadeira expressão que é a pintura, logo, entende-se que a obra de arte, em especial a literatura, é uma obra aberta, aberta a um mundo de possibilidades. Esse universo simbólico apresentado pela literatura proporciona uma enorme possibilidade de transgredir os limites, construindo novas maneiras de ver o mundo. Transcender é a potencialidade do ser humano para buscar alternativas que ofereçam sentido a sua existência. Isso não significa sair correndo sem rumo... Trata-se de buscar sentido (direção e significado) para si mesmo (consciência); compreender seu tempo no presente, através do passado, e poder construí-lo no futuro.44

Considerando que a literatura possui uma linguagem própria, uma linguagem ficcional, de maneira alguma, como já foi afirmado anteriormente, ela será desengajada ou alienante. Ela é expressão do pensamento, e por ser expressão do pensamento está ancorada na existência, como nos aponta Maria Celina: “A palavra faz o pensamento existir. A palavra sonha e pensa: sonha através da imaginação e pensa ao ser expressa. Ao expressar-se, provoca e evoca a explosão da linguagem, que não contém apenas palavras, mas transcende com e na imaginação”.45

43 NASSER, Maria Celina de Q. Carreira. O que dizem os símbolos? São Paulo: Paulus, 2003. p. 11. 44 Idem. Ibidem.

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Ao usar a linguagem simbólica, constata-se que algo está faltando, defendem-se os direitos humanos porque eles ainda não são respeitados. A transcendência não é uma fuga para algo distante, mas é expressão de seres finitos, com o desejo do infinito, insatisfeitos com a realidade, com a sua vida; insatisfeitos com a sociedade e com as respostas imediatas apresentadas pela grande massa; é um não conformar-se com a situação.

O recurso simbólico é utilizado com um objetivo muito claro: ele deseja desinstalar o leitor, levá-lo a lugares profundos e distantes da vida cotidiana. O símbolo é capaz de tocar no homem interior. Por ter excesso de sentido, pode criar grandes mudanças no leitor. Segundo L. A. Schökel, esta relação produzida pela força simbólica é verdadeiramente uma

iluminação: “A obra literária ilumina e descobre nossos pensamentos mais íntimos, torna-nos conscientes de sua profundidade. Lendo nós mesmos, à luz do autor e da sua obra; e, nos conhecendo melhor, podemos chegar à ação ou à conversão necessária”.46

2.3 Os três mundos de Paul Ricoeur

A hermenêutica de Paul Ricoeur contribui, em muito, para o entendimento e para a visualização da construção literária e seus elementos antropológicos. Ele entende o termo ficção de maneira diferente, pois ignora a ambição da narrativa histórica em se constituir como verdadeira. Tudo o que é narrado acontece dentro do tempo, e o que está no tempo/história pode ser contado, logo as experiências humanas são articuladas por meio da narração. Narrar é contar experiência, seja ela oral ou articulada através da escrita. Desta

maneira, o texto será “a unidade linguística procurada que constitua o médium apropriado

entre o vivido e o ato narrado”.47

Entre o tempo da ficção e o da experiência fenomenológica existe uma distância. A experiência é o tempo da prefiguração (mímesis I), o mundo da obra (mímesis II) e a re-figuração entendida como mundo do leitor (mímesis III). Percebe-se uma necessidade de desconectar a experiência viva do tempo, por outro lado, temos também uma impossibilidade desta conexão por inteiro.

46 SCHÖKEL, Luís Afonso. La parole inspirée. Ecriture Sainte à la lumiére du langage et de la littérature. Apud

MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos Romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. p. 81.

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A obra de ficção não cessa de fazer a transição entre a experiência antes do texto e a experiência depois do texto48, afinal, o tempo fictício nunca está cortado do tempo vivido. A obra literária projeta um mundo no qual as personagens realizam uma experiência fictícia do tempo, nos apresentando um horizonte. Conclui-se que a ficção não pode romper as suas amarras com o mundo prático, do qual procede e depois retorna.49 Este processo apresentado por Ricoeur é descrito por Antonio Manzatto da seguinte forma: “O autor compõe a obra e

por ela influencia o leitor; a obra influencia, em uma relação dialética, o sujeito que a criou e

aquele que a lê; o leitor dá um sentido e realidade à obra e, assim, influencia o autor”.50

A reorganização do mundo em termos de arte, através da literatura, tem seu início na elaboração da obra. O autor é um engenheiro que combina os diversos elementos da vida, sejam eles naturais ou técnicos; trata-se do momento de criação. A arte, assim entendida, pressupõe que exista algo maior. O artista se torna porta-voz de todos, de um determinado grupo social ou de toda sociedade.51 Por isso, sua expressão artística enquanto comunicação

deve ser “legível” para outros homens.

Paul Ricoeur trabalha a questão sobre o mundo da obra como uma projeção capaz de fornecer um espaço de confrontação entre o mundo do autor e do leitor. Contudo, esta confrontação só é possível após uma releitura da obra. É na sua interação com o leitor que surge a obra como possibilidade narrativa e construtiva. Na perspectiva metafísica, a obra é uma potência inacabada e a releitura será a atualização da obra.52 O mundo da obra tende ao mundo do leitor. Sem a participação do leitor a literatura está incompleta. Seria como revelar os segredos mais profundos a ninguém, seria como discursar sem plateia jogando palavras ao vento.

A hipótese de Ricoeur tem como base o caráter comum da experiência humana, que é articulado no tempo - “tudo o que narra acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o

que se desenvolve no tempo pode ser contado”.53 Assim acontece a relação entre ficção, história e tempo. Deste modo, o texto será entendido como uma unidade linguística entre o tempo vivido e o ato de narrar. A narração será elaborada por um conjunto de ações

48 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa... Op.cit. p. 125. 49 Ibidem. p. 130.

50MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura... Op.cit. p. 36. 51 Ibidem. p. 30.

52 Ibidem. p. 31

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realizadas, denominada intriga. A intriga é a mediadora entre o acontecimento e a história por ser unidade inteligível.54

Outra chave de interpretação importante referente ao tempo de ficção é a distinção entre enunciado e enunciação. Essa distinção compreende três níveis: enunciação, enunciado e mundo do texto, que, por sua vez, correspondem a um tempo de narrar, um tempo narrado e a experiência fictícia. Desta maneira, percebe-se a referência da arte à vida. Nesta perspectiva, toda narração está para algo além de si mesma, e é exatamente desta distinção que podemos distinguir o tempo do narrar e o tempo narrado. “Todo narrar é um narrar [de] algo que não é narrativa, mas processo de vida”.55

A obra influencia os seus leitores, a arte reorganiza ou desorganiza a realidade. Não obstante, podemos ter várias interpretações, pois temos uma obra e diversos mundos e vidas a interpretá-la, temos uma dialética criadora e também transformadora. Esta dialética é estabelecida pelo discurso, e todo discurso remete a um locutor. Discursar é comunicar, e toda comunicação possui os seus códigos, por conseguinte, todo discurso tem, além do seu locutor ou sujeito, um mundo. Este mundo projetado pelo discurso se transforma em significação, podendo identificar e ser re-identificado.

Na obra O único e o singular, Ricoeur fala da hermenêutica da interpretação do texto. Segundo o filósofo francês, são as interpretações coletivas que animam o texto. Assim, cita

um pensador medieval que diz: “o texto cresce com os seus leitores”.56 Ele, o texto, valoriza a multiplicidade de significações. Na mesma obra, Ricoeur, ao observar um quadro de Rembrandt, cujo título é Aristóteles contemplando um busto de Homero, nos diz que o filósofo não começa do nada. O seu start é a poesia. Desta maneira, temos o poeta como estátua, e o filósofo é o que vive, fazendo uma breve analogia, o filósofo passa a ser o leitor que, após ser impactado pela obra, se retira em busca de um significado. É isso o filosofar. O poeta estaria recolhido em sua obra. Isto mostra a relação entre o autor e a sua visão de mundo inserida na sua obra. Aristóteles não se contenta em contemplar. Quer ir além, e toca a estátua de Homero, ou seja, entra em contato com a poesia. Esta relação dialética o faz reorientar os seus questionamentos. Surge algo no interior da alma do filósofo que faz a vida ter uma nova

54 RICOEUR. Paul. Do texto a ação: ensaios de hermenêutica. Op.cit. p. 26. 55 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa... Op.cit. p. 132.

56 RICOEUR. Paul. O único e o singular. Tradução: Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: Unesp, 2002. p.

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esperança, e este poder simbólico é também verificado na relação cultual das diversas religiões.

A literatura, por ser simbólica, é muito rica de sentido sociológico, psicológico, cultural e linguístico, que são expressos pela vida vivida, e não por fórmulas matemáticas. Trata-se da arte engajada na vida e da busca de identidade. É a maneira de apresentar a realidade humana vivida e sentida.

2.4 A narrativa e seus elementos textuais

A narração faz parte do patrimônio cultural de todos os povos. Ela pode ser escrita ou oral. Narrar é relatar um determinado acontecimento, que pode ser real ou inventado. Logo, a narração não deve ser um amontoado de fatos; deve ser organizada e estruturada, de forma a apresentar os acontecimentos ocorridos de maneira significativa.57 O papel da narração não é apenas o de informar acontecimentos. Deve também mostrá-los, ao ponto de criar interesse ao leitor. Ressalta-se que “por trás” de uma narração existe uma fabricação de ideias dispostas

que darão sentido à história. Este sentido que norteia a narração é denominado de tema.

Para que uma narração consiga efetivamente apresentar uma sequência significativa de ações, pensamentos, falas, sentimentos e sensações, são necessários que, ao se contar uma história, saiba selecionar os fatos que contribuam para estabelecer o significado do texto (tema). Ou seja, precisamos escolher o que é importante contar, deixando de lado tudo o que for desnecessário, supérfluo.58

A obra literária é uma recriação da realidade através da imaginação do artista.59 Ao elaborar sua obra, o artista usará de elementos textuais para que ela seja interessante, empregará personagens, espaços específicos tornando sua elaboração narrativa singular, como relata Vicente Ataíde: “O objeto da especulação literária é a realidade, tomada em sentido

amplo, absorvendo as regiões mais fundas do sujeito e as mais exteriores”.60 Esta realidade captada pela sensibilidade do autor, reconfigurada pelo seu contexto de vida, pela sua história, será narrada projetando na obra toda sua intuição ou engajamento.

57 CABRAL, Isabel Cristina M; MINCHILLO, Carlos Alberto C. A narração: teoria e prática. [coord] Ubaldo L

de Oliveira, 9. ed. São Paulo: Atual, 1989. p. 12.

58 Ibidem. p. 18.

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A obra de arte se diz “compromissada”, “engajada”, “dirigida”, quando se põe a serviço de uma causa, doutrina, ideologia, sistema filosófico, político, religioso, científico. [...]. A arte sempre foi engajada, na medida em que nela o autor insufla um pensamento e um sentimento que, embora pessoais, representariam os padrões de certa classe ou casta social em determinado

momento.61

2.4.1 O enredo

Afirmar que a literatura parte da realidade significa aceitar que existe um momento, um fato, uma lembrança, um episódio que serviram como base para a elaboração do artista. A partir deste acontecimento, o autor fará a construção da história, que deverá ser coerente e organizada. O enredo será a construção da trama de maneira coerente, na qual todas as partes da obra estarão conectadas. Uma boa obra literária possui esta conexão, pois será através desta conexão entre os episódios que a trama indicará um caminho, mostrando ao leitor a proposta do texto, conforme relata Vicente Ataíde: “Os episódios e acontecimentos são o conjunto de elementos vividos pelas personagens. Deve haver uma coerência própria entre os acontecimentos e quem os vive”.62

Será considerado como um bom texto ficcional aquele no qual o público poderá fazer a experiência do suspense. Este texto deve permitir ao leitor olhar tanto para o protagonista como para sua vida, e enxergar uma série de variáveis possíveis. Para que o leitor faça esta experiência, cabe ao autor usar das ferramentas disponíveis na elaboração da sua arte. Os recursos devem ser agudos e intensos com o objetivo de prender a atenção do leitor, criando um momento de interação com a obra, que será instigada por meio da riqueza de cada episódio.

Verifica-se que, devida a sua importância, o enredo não deverá ser de forma alguma um ajuntamento de fatos sem qualquer ligação. Nele deve haver qualidades da verossimilhança. Entende-se esta verossimilhança como narração não do que aconteceu, mas do que poderia ter acontecido. Em outras palavras, trata-se da reconstituição da realidade a partir da realidade.

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Os antigos, partindo da lição aristotélica, falam em peripécia e

reconhecimento (=anagnorisis) como partes integrantes do enredo. A

peripécia é a passagem brusca, completa e inesperada de uma situação para outra situação contrária. [...]. O reconhecimento é a passagem da ignorância

ao saber, tendo consequências relevantes no texto [...].63

Considerado em si mesmo, o enredo é um todo que apresenta unidade, e deverá ser considerado como uma imitação da realidade. O texto, muitas vezes, apresenta fatos ou situações que aos olhos comuns são irracionais e impossíveis. Essa distinção entre o impossível e o irracional ocorre a partir do fantástico provocado pela obra, isto é, da capacidade do autor de deixar o leitor estupefato, encantado, emocionado segundo as regras da poesia, e a partir daí passar a ver por novos ângulos.

[...] a fábula narrativa não é representação de uma realidade contingente, mas uma forma do necessário que parece verdadeiro. A estória dá a impressão de contemplarmos verdadeiros heróis, faz-nos crer na inevitabilidade dos acontecimentos propostos no texto e na verdade de que homens naquelas

circunstâncias sofreriam os mesmos casos.64

2.4.2 A personagem

As personagens são seres que atuam como atores numa narrativa de ficção.65 Levando--se em conta que todo enredo é história articulada, a obra narrativa apresenta suas personagens como pessoas que vivem dramas e situações parecidas com a maioria da população, sendo como um espelho da sociedade. Massaud Moisés ressalta a importância da percepção de que a literatura é o reflexo projetado da vida: São “‘representações’, ‘ilusões’, ‘sugestões’, ‘ficções’, ‘máscaras’ [...]”.66

Para Vicente Ataíde, as personagens possuem uma hierarquia. Estas personagens podem ser divididas em: principal, secundária e irrelevante. A personagem principal é aquela em que incide o maior foco; ela carrega a ênfase do artista no enredo. Já a secundária está

63 ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 26. 64 Ibidem. p. 28.

65 Ibidem. p. 37.

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interligada à principal, mas enquanto pano de fundo. Por fim, a personagem irrelevante, que aparece de maneira esporádica e com fraca atuação.67

Outra maneira de nomear as personagens enquanto a sua relevância na obra de ficção é pela distinção entre a personagem redonda e plana. Estas representam modelos de narrativa. A personagem redonda seria um símbolo, uma possibilidade humana por momentos elevada à sua dimensão mais alta. Esta elevação humana só é possível pela realidade da personagem. Entende-se que esta realidade não é a da vida diária, mas enquanto a personagem respeita e vive de acordo com as leis literárias, ela se torna convincente e, porque convence, realiza aquilo que gostaríamos de ser.

A personagem redonda [grifo do autor] corresponde, assim, a uma projeção,

ou símbolo, de nosso “eu profundo”, é um alter-ego [grifo do autor] livre para concretizar a impossível evasão, que morremos sem ao menos iniciar, tão presos estamos ao condicionamento exterior. Por meio de sua ação, temos a ilusão de nos realizar, de nos conhecer melhor, e vamo-nos

compensando das frustrações da vida cotidiana.68

A personagem plana, do tempo histórico, é entendida por Vicente Ataíde como:

Personagens plana ou estática são personagens destituídas de profundidade,

de vida interior, de dramaticidade, de consistência do seu eu [grifo do autor].

A vida de tais personagens não vai além as condições externas que a modelam, são superficiais quanto ao mundo que têm dentro de si. A

personagem estática ou plana vive uma vida que acontece a [grifo do autor]

elas, não dentro [grifo do autor] delas.69

2.4.3 Tempo e espaço

A caracterização das personagens determinará a mensagem que a mesma passará ao leitor. Trata-se de um recurso comunicante, capaz de transmitir mensagens ao leitor, por meio de uma série de descrições, desde os aspectos físicos e psicológicos como também sociais. O espaço é o local onde a personagem se movimenta, logo, deve ser bem caracterizado. Essa caracterização transformará o local em ambiente. Isso é fundamental na narrativa. Uma vez

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que o espaço assume a condição de ambiente, ele apresenta uma atmosfera que envolve a personagem.

O tempo pode ser separado em tempo cronológico e psicológico. O tempo cronológico é apresentado por meio de períodos regulares (segundos, minutos, horas e dias, etc.), enquanto o tempo psicológico é medido não por dados objetivos, mas é instruído por uma medida de duração interior.

2.4.4 Situação ambiente e ponto de vista

A situação ambiente é onde o enredo se desenrola, e o ponto de vista é o ângulo no qual a história é contada e como ela é resolvida. Logo, a visão do leitor será dada pela personagem principal, que pode assumir dois pontos de vista conforme o entendimento de Vicente Ataíde: “O primeiro é aquele em que a narrativa é vista por dentro, faz-se a partir de alguém que vive e convive os fatos; o segundo é aquele em que os episódios são apresentados de fora por alguém que sabe dos fatos mas não os viveu.”70

2.4.5 Linguagem

A linguagem é um elemento muito importante da vida humana. Ela não é uma questão qualquer à existência humana. Ela permite a fundação da consciência e construção do entendimento de sua história. A linguagem assume o profundo do ser humano, nela encontra-se o mistério da existência humana. A literatura como discurso artístico perscruta o mundo humano, daí a importância do tema para a teologia.71

A linguagem pode ser falada ou literária. A falada é livre, enquanto a literária assume um conjunto de regras, constituindo-se em linguagem lógica. Assim sendo, o romance não reproduz o mundo, ele usa da linguagem, mas não da maneira como se fala, não é reprodução dos fatos, como uma narração jornalística. Os principais expedientes romanescos - diálogo, narração, descrição, dissertação - espelham essa discrepância entre linguagem falada e escrita artística. Querer igualar a linguagem falada à linguagem escrita é errar o alvo.

70 ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. Op.cit. p. 55.

71VILLAS BOAS, Alex. A essência da linguagem. Disponível em:

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Por isso o romance-reportagem, querendo tornar-se a transposição direta da vida, falseia-se e falseia os fins da arte (que, antes de ser cópia [grifo do autor], é uma transfiguração [grifo do autor] do real), e o romance-arte, recriando a vida, cumpre o seu papel. Paradoxalmente o romance-arte depois volta para a vida de onde nasceu, enquanto o outro se ausenta da realidade. O primeiro, por manter-se fiel a si próprio, modifica a realidade de onde partiu, o outro, mumifica-se, porque voltado para o transitório, e não para os constantes, do mundo do real. Efetivamente só a imaginação, trabalhando sobre os possíveis da realidade, é capaz de perceber o que perdura, e

abandonar o que varia.72

3. Diálogo entre Teologia e Literatura

A aproximação ou diálogo entre teologia e literatura na história contemporânea está cada vez mais presente nos círculos acadêmicos. Este diálogo atrai pesquisadores de diversas áreas como literatos, filósofos, psicólogos, cientistas da religião e teólogos.73 Aos poucos, este diálogo vai construindo um significativo caminho, tanto no Brasil quanto no exterior. Destaca-se também que existem diferentes formas de aproximação deste diálogo. Portanto, faz-se necessário observar os pontos que aproximam a teologia da literatura e o percurso até aqui. Esta observação será de suma importância para os demais pesquisadores.

Um primeiro aspecto a ser destacado nesta aproximação entre a literatura e a teologia é a riqueza e a diversidade de ambas, atributos que permitem uma gama de aproximações com diferentes métodos. Logo, nesta pesquisa, não se tem a pretensão de encerrar o assunto sobre as discussões metodológicas, discussões estas que ganharão novos moldes e novos caminhos com o passar do tempo, como sugere Alex Villas Boas.74

Ressalta-se que esta aproximação da ciência teológica com a arte literária não é exclusividade da teologia. Outras ciências, como a psicologia, também têm se aproximado da literatura como mediação do seu pensamento. Igualmente, destacam-se a filologia, a

72 MOISÉS, Massaud. A criação literária... Op.cit. p. 242.

73 Destaca-se o IV Colóquio Latino Americano de Teologia e Literatura, sob o tema Literatura e Teologia em

diálogos e provocações. Organizado pela Alalite (Associação Latino Americana de Literatura e Teologia) em conjunto com o grupo de pesquisa Lerte da PUC-SP, foi realizado na PUC-SP entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, e contou com mais de cem participantes de várias regiões do Brasil e do exterior.

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linguística e a sociologia. Segundo Alejo Carpentier, esse interesse tem seu start no fato de a literatura ultrapassar os limites da narração: “Por aí pode-se perceber que o romance vai além

da narração, do relato, ‘além do próprio romance’, e engloba os contextos social, econômico, racial, religioso, político, cultural, ideológico e torna-se então interessante, como campo de pesquisa, para várias ciências”.75

A aproximação entre teologia e literatura é legítima. Não se trata de um devaneio da teologia, pelo contrário, será um ato de amor. Na verdade, o teólogo que busca esta relação sabe que por trás da obra literária, seja ela qual for, encontrará um ser humano, um modelo capaz de nos iluminar e que também necessita ser iluminado pela luz da fé.

3.1 O eixo antropológico: o tri-vial entre a teologia e a literatura76

Tanto teologia como literatura são produtos humanos, são produções intelectuais. A teologia é marcada pela reflexão à luz da fé, enquanto a literatura, por ser expressão artística, é obra da imaginação, que, por sua vez, também possui seu viés de racionalidade.

Pela ficção ou poesia, a literatura põe em cena o homem vivo, com suas questões, seus sonhos, seus problemas e seus sentimentos em face do mundo da natureza, em face dos outros homens e diante de si mesmo. Ela interessa-se por tudo o que é humano, de tal modo que se pode dizer que a

literatura é tão grande quanto o humano.77

A partir da ótica do artista, a literatura pode apresentar sua visão do mundo, podendo afirmá-lo ou criticá-lo. Esta visão apresentada pela arte, no caso específico desta pesquisa, o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, pode fazer com que a vida imite a arte, dependendo da compreensão do ser humano e da sua significação ali apresentada. A literatura, pela sua configuração simbólica, convida a vida a imitar a arte, anunciando novas possibilidades de construir a sociedade. A obra de ficção pode afirmar ou contestar a história

75 CARPENTIER, Alejo. Literatura e consciência política na América Latina. Apud MANZATTO,

Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos romances de Jorge Amado, São Paulo, Loyola, 1994. p. 64.

76 O termo tri-vial reporta ao conceito de trivialidade e faz referência à organização da cidade antiga em três vias

principais. Estas vias deviam convergir num único ponto. Neste ponto comum, os cidadãos se encontravam e discutiam aspectos da vida que se impunham à existência humana. Ao usar este conceito de convergência, destaca-se o antropológico como lugar de encontro entre teologia e literatura. Cf. BOFF, Leonardo. João Batista

Libanio: Teologia Peregrina: Pequeno ensaio de teologia “tri-vial”. In. KONINGS, Joham. (org). Teologia e Pastoral: Homenagem ao Pe. Libanio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 43 (Coleção CES).

Referências

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