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A humanização na prática obstétrica e dialogicidades

3 A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC) E DIÁLOGOS EPISTEMOLÓGICOS CRÍTICOS

5 REPRESENTAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO DE MÉDICOS E PARTURIENTES EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE E SOFRIMENTO

5.1 A humanização na prática obstétrica e dialogicidades

No capítulo 3, expus as considerações teóricas da Teoria Crítica do Discurso enquadradas na pós-modernidade, que debate questões sociais num foco dialético pós- estruturalista, movimento epistemológico e filosófico insurgente que se disseminou na Europa diante das negações que solaparam as velhas e sagradas utopias das esperanças modernas.

As estruturas internas da realidade social como elementos dinâmicos, dialéticos articulados, que se interconectam às relações sociais e às concepções mentais, recebe da ADC a sustentabilidade filosófica marxista para o desenvolvimento de sua epistemologia linguística híbrida com interfaces dialógicas transdisciplinares.

As questões problemáticas que devem ser discutidas, enfrentadas na relação linguagem e sociedade interpela inevitavelmente a busca por mudanças e transformações sociais possíveis, que garantam práticas sociais e discursivas com menos sofrimentos à humanidade em sua relação intrínseca com a natureza e à vida social. Cenário de intensas lutas em contingências sociais complexas, que - para serem compreendidas e enfrentadas - prescinde um diálogo da ADC com a Teoria Social Crítica. Uma leitura “essencial para a fundamentação da teoria do materialismo histórico” considera a totalidade da realidade social e que Harvey denomina dos “seis elementos58 reunidos num mesmo espaço, mas em intensa inter-relação” (HARVEY, 2013, p. 192).

Cada um desses elementos “é internamente dinâmico” (HARVEY, 2013, p. 192), o que permite ver cada um como um “momento” das práticas sociais. A interação entre cada

58 “Os elementos constituem momentos distintivos de evolução humana, entendido como uma totalidade. Nenhum momento prevalece sobre os outros, mesmo que no interior de cada um exista a possibilidade do desenvolvimento autônomo (a natureza muda e evolui, do mesmo modo que as ideias, as relações sociais, as formas de vida cotidiana etc.). Todos esses elementos se desenvolvem em conjunto e estão sujeitos a renovações e transformações perpétuas como momentos dinâmicos no interior da totalidade. Mas essa totalidade não é uma totalidade hegeliana, em cada momento interioriza estreitamente todos os outros, mas uma totalidade ecológica, o que Lefebvre chama de “conjunto” e Deleuze, de “junção” de momentos que se codesenvolvem de modo aberto, dialético. O desenvolvimento desigual entre os elementos produz contingência na evolução humana (de maneira muito semelhante como as mutações imprevisíveis produzem contingência na teoria darwiniana) (HARVEY, 2013, p.193). Destaco que a ‘evolução’ não deva ser compreendido como uma significação ascendente de acordo com as concepções de ordem e progresso idealistas da razão ‘indolente’ hegeleana.

momento59 por sua dinamicidade constroem as concepções mentais do mundo ou discurso como representação (FAIRCLOUGH, 2001; 2003), que podem mudar por ser contingentes. Tais concepções são alteradas pelas tecnologias60 que por sua vez alteram e constroem práticas sociais. Uma totalidade não é algo estático, mas construído numa ‘realidade’, um dédalo de muitas e complexas redes tornadas61 invisíveis, declaradas como inexistentes pela ‘razão indolente’ (SANTOS, 2006).

Analisar as relações dialéticas do discurso “pode identificar a relação de causalidade entre práticas sociais e textos” (RESENDE, 2009, p. 24) e contribui para desvendar epistemologicamente as dimensões ontológicas potenciais não realizadas ou realizadas. Contudo, é imperioso alcançar ‘realidades’ para além do campo teórico discursivo. A seguir, transcrevo o gráfico do modelo conceitual do arcabouço dialético marxista proposto por Harvey (2013), por considerar sua pertinência em relação as bases teóricas e epistemológicas com as quais a ADC operacionaliza sua epistemologia dedicada a estudar a linguagem l na relação sua relação com a sociedade.

Textos têm efeitos sociais, efeitos causais, seus efeitos ‘mediados por produção de sentidos’ podem mudar relações e incluir mudanças no mundo em todas as esferas políticas, geopolíticas, econômicas, etc. (FAIRCLOUGH, 2003). Mas entender e explicar as causalidades tem sido desde os pré-socráticos o grande investimento da humanidade, alcançando todas as esferas de produção de conhecimentos e constituições de verdades no mundo. Mas o esforço moderno e contemporâneo das ciências sociais vem discutindo a vida e o mundo, as relações sociais, econômicas, poder, ideologia e hegemonia, a partir de um ponto importante desenvolvido pelo marxismo, base fundante do caráter crítico teórico e epistemológico da ADC. O modelo conceitual dialético marxista (HARVEI, 2013, p.192) dá uma cosmovisão das complexas relações entre representações, discursos e práticas sociais numa inter-relação dinâmica sob das concepções mentais do mundo e sua relação com a natureza, modos de produção, tecnologias, relações sociais e reprodução da vida cotidiana.

59A relação humana com a natureza merece uma reflexão importante dentro desse arcabouço de Harvey: a natureza muda evolui, e sofre ao longo do processo de exploração capitalista uma série de práticas destrutivas. Uma visão determinística da natureza como um potencial infinito de recursos é mais um discurso problemático da concepção capitalista de produção no mundo.

60Como tecnologias nessa tese faço uma analogia da arte médica e a complexa rede de discursos, científicos, políticos, morais, éticos que circulam e ativam cognições e práticas discursivas. “Tecnologias são produzidas a partir de concepções mentais” (p. 193) Nesse sentido lembro a violência obstétrica no parto como as tecnologias invasivas.

61Sem esquecermos que a luta hegemônica e o desenvolvimento da hegemonia “implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos” (GRAMSCI, 1999, p.104).

Figura - 9: Modelo conceitual do arcabouço dialético marxista.

Fonte: Harvey (2013, p. 192).

Evidentemente a representação e identificação de médicos, médicas e parturientes em situação de vulnerabilidade e sofrimento é parte desse arcabouço conceitual sobre o qual são construídas. O desafio posto nessa reflexão é identificar como sofrimentos são efeitos ideológicos do poder e hegemonia da Medicina obstétrica, e das relações opressivas dos sistemas de conhecimento patrocinados pelo patriarcado. Neste capítulo me deterei em estudar os efeitos ideológicos da hegemonia obstétrica no confronto dialógico Bakhtin (2008) dos discurso da humanização ao atendimento no parto pelo Ministério da Saúde versus prática obstétrica científica adotada pelos médicos e médicas no cenário da pesquisa etnográfica.

Por isso considero que o enfrentamento dessa questão prescinde da contribuição epistemológica, que aponte para uma compreensão da realidade social que seja articulada como Realismo Crítico, considerando o mal estar e a crise das ciências sociais que não conseguiram responder às dimensões ontológicas (‘potenciais não realizadas, ou realizadas’) (BHASKAR, 1977) da realidade social. Muitos dos problemas das sociedades contemporâneas têm como consequência “da relação colonial de exploração e dominação nos dias de hoje, sendo talvez o eixo da colonização epistêmica mais difícil de criticar abertamente: a relação global etnorracial do projeto imperial do Norte Global vis à vis do Sul Global – metáfora da exploração e exclusão social – como parte da relação global capitalista” (MENEZES, 2008, p. 5), constituindo nos discursos as dimensões obliteradas dessa ‘realidade social’ veiculados nos diversos textos e práticas sociais que circulam no mundo.

Debater o conhecimento produzido pelas epistemologias canônicas merecerá de Santos (2006) uma proposta alternativa da alternativa do conhecimento (Epistemologias do

Sul62), enfrentando o centro do mundo e suas epistemologias colonizadoras, imperialistas dominantes quando se pensa em mudança e transformação social é imprescindível ‘renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social’ (SANTOS, 2009). Prescinde de um olhar para além do cânone no qual as muitas facetas da realidade não são identificadas como problemáticas, ou quando apontadas como impossíveis de serem enfrentadas nos limites políticos e ideológicos que as institui. A leitura de uma ‘realidade social’ pelas lentes do colonizador sob uma estrutura disciplinar (científica, teórica, filosófica) de produção de conhecimentos do Norte

que representam uma divisão de saberes, uma estrutura organizativa que procura tornar gerível, compreensível e ordenado o campo do saber, ao mesmo tempo que o disciplina, endossando e justificando desigualdades entre saberes e criando outras formas de expressão, que perpetuam a divisão abissal da realidade social; o que não está conforme o definido pela racionalidade moderna volatiza-se e desaparece (MENEZES, 2008, p. 6).

Segundo Santos (2008), a geração do conhecimento moderno produzido pelas ciências sociais não conseguem dar conta de identificar ‘realidades sociais fora do processo hierárquico disciplinar do colonizador63.

É uma racionalidade indolente que subjaz ao pensamento ortopédico ocidental, que não reconhece, e por isso, desperdiça muita da experiência social disponível ou possível no mundo. Muita da realidade que não existe ou é impossível, é ativamente produzida como não existente e impossível (SANTOS, 2008, p. 20).

Entender e identificar dimensões da ‘realidade’ obscura, silenciada ou produtivamente dada como não existente, demandará, nesses ‘tempos de transição, trabalhar o velho para renová-lo até o limite’ (SANTOS, 2006). E a partir de uma reflexão ‘rebelde’, ‘insurgente’ o Sul do sofrimento merecerá nessa etnografia no evento discursivo parto, uma sustentabilidade epistemológica à ADC e ao Realismo Crítico, que torne visível cosmologias no sofrimento no parto apagadas pelo saber canônico.

62 “Epistemologias do Sul deve ser compreendido como parte de uma história, de um percurso que parte do envolvimento crítico com as epistemologias dominantes associadas às ciências modernas, com suas tensões, dinâmicas de debates e propostas de inovação, convergindo o que Santos designou de crítica interna ciência (NUNES, 2008,p. 45-70).

9 As mudanças sociais desejadas não aconteceram e que poderiam ser conquistadas com o marxismo não o foram e fracassaram “devido a incapacidade de reconhecer a necessidade de um engajamento político que atravessasse todos esses momentos e fosse sensível às especificidades geográficas. A tentação do comunismo revolucionário foi reduzir a dialética a um simples modelo causal, em que um ou outro momento era colocado na vanguarda da mudança e encarado realmente como tal. O fracasso era inevitável” (HARVEY, 2013, p. 194).

No contexto da pesquisa etnográfica discursiva, pude identificar algumas dessas dimensões potenciais não realizadas, como o discurso médico-paciente sob a ordem discursiva canônica da Medicina no conflito interdiscursivo do discurso da humanização da

Medicina patrocinado pelo Ministério da Saúde no Brasil. O saber ortodoxo, ‘ortopédico’,

disciplinador e higiênico da constituição epistemológica científica da tradição positivista médica, não alcança a interação dialógica permeada pela subjetividade médico, médica e mulheres.

5.1.1 Análise da conjuntura

A análise da conjuntura aqui esboçada de acordo com Chouliaraki e Fairclough (1999) constitui numa abordagem política e institucional de como as práticas sociais são organizadas no cenário de uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais sob a força do capitalismo. O marxismo é a base filosófica e teórica, pois Marx como ‘analista do discurso’ - em sua tese sobre filosofia política, economia e sociedade - justifica e propõem mudanças sociais de práticas abusivas das relações sociais.

No contexto da pesquisa etnográfica a conjuntura é identificada na prática obstétrica numa maternidade pública. Médicos e médicas atuam no atendimento clínico ao parto sob a ordem discursiva da Medicina científica. Esta interação é técnica e disciplinar. A dimensão epistemológica (dados gerados e triangulados pelas entrevistas, observação participante, artefatos, notas de campo) produzida pela etnografia aponta para um processo de interação marcada pela neutralidade médica, uma escolha moral, o poder disciplinar. É uma constituição dominante do modo como a Medicina constitui o seu saber e sua prática sobre corpos doentes.

5.1.2 Práticas relevantes

A Medicina vê um corpo, sutil, invisível que se esconde na clínica e que essa percepção é mediada pelo silêncio, a neutralidade, imparcialidade solitária que penetra e ausculta sinais e sintomas. O corpo doente cingindo é o corpo ontológico potencial

irrealizável ao atual conhecimento-formação do saber médico. O potencial irrealizado espera

para o encontro da ‘realidade’, que apresente um corpo atravessado por outros matizes e sutilezas dos sofrimentos, sobre os quais um gesto de compreensão e solidariedade é mais

importante que uma estratificação anamnésica ou taxonômica das patologias e fisiologias do parto.

De acordo com a concepção ontológica heterogênea e insurgente o acesso ao

potencial e ao realizado por meio da empiria é contingencial, é um momento das práticas.

Não são estruturas causativas eternas, leis universais determinísticas e que seriam irrefutáveis tais como o positivismo clássico e lógico proclama. Identificar as vozes, as estruturas do mundo em um sistema complexo, aberto, contingencial, acessível ou não, observável ou não, é um exercício teórico e epistemológico denso, impossível de apenas ser conformado aos postulados disciplinares clássicos do conhecimento prévio, canônico passível de ser comprovado por hipóteses e leis causais no campo etnográfico.

Bhaskar (1998) defende que as estruturas sociais podem gerar um Sistema de

Intransitividade. Contempla a realidade das entidades das coisas, estruturas - que existem e

agem independentemente do nosso conhecimento que temos delas - o realismo ontológico. Cristalizado na linguagem, o conhecimento é fixado pelas práticas e instituições sociais em seu poder de verdade.

5.2 Relação do discurso com outros momentos – discursos como parte da atividade-