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Análise dos elementos da prática de partejar

3 A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC) E DIÁLOGOS EPISTEMOLÓGICOS CRÍTICOS

5 REPRESENTAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO DE MÉDICOS E PARTURIENTES EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE E SOFRIMENTO

5.3 Análise dos elementos da prática de partejar

O objetivo da análise da prática social do evento discursivo parto no Gonzaguinha, de acordo com a ‘matriz social do discurso’ (FAIRCLOUGH, 2001), é: correlaciona as relações e as estruturas hegemônicas, que constituem a matriz dessa instância particular da prática social e discursiva (FAIRCLOUGH, 2002, p. 289-290) e os efeitos ideológicos de sua representação ou transformação.

Considero o gênero discursivo parto como uma dimensão semiótico-discursiva da prática social da Medicina, no ambiente hospitalar no contexto da pós-modernidade. Na perspectiva adotada por Fairclough (2001, p. 135) “a intertextualidade deve ser combinada com uma teoria das relações de poder e como se moldam (e são moldadas por) estruturas e práticas sociais”. As relações de poder são produzidas pelo discurso médico estabelecido pela ordem discursiva da prática médica.

A intertextualidade consiste das “relações externas e internas do texto – relações intertextuais e a presença material de outros textos dentro de um texto”. (FAIRCLOUGH, 2003, p. 29). A materialidade discursiva é advinda das práticas sociais. “E um texto é

constitutivo de convenções discursivas que entram na sua produção” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 136). E considerando que as ordens do discurso SÃO fontes gerativistas de práticas de saber – poder (FOUCAULT, 1997), a Medicina como prática social é legitimada sob esta ordem discursiva e representações dialeticamente relacionados numa dinâmica social complexa.

“A interdiscursividade corresponde aos discursos e gêneros discursivos citados ou comentados de forma explícita ou implícita nos textos” (MAGALHÃES, 2010, p.18). Ou seja, é a inter-relação entre os textos e discursos na ordem do discurso médico obstétrico e o

discurso do parto humanizado pelo Ministério da Saúde, que podemos localizar a prática

médica como conflitante de uma hegemonia ideológica clínica em sua especificidade cientifica, que vê o parto como um evento medicalizado.

A relação entre Análise de Discurso Crítica e Teoria Crítica do Discurso (MAGALHÃES, 2004) nos orienta a refletir sobre os efeitos sociais dos textos, pois como afirma Fairclough,

textos têm efeitos causais, isto é, produzem mudanças e pode mesmo em longo prazo provocar mudanças sem serem necessariamente regulares, pois muitos outros fatores no contexto determinam quais textos particulares têm tais efeitos e que variedades de efeitos o texto pode ter, por exemplo, o ponto de vista de diferentes intérpretes. (FAIRCLOUGH, 2003).

A prática social da Medicina e o Ministério da Saúde são aqui identificados como alguns dos elementos constitutivos dos poderes causais, que moldam os textos. O parto medicalizado é um meio de controlar a seleção das complexas ações da arte de partejar, excluindo-a de outras profissões da saúde, uma ação exclusiva do saber médico.

Segundo Fairclough (2003, p. 16), o discurso figura de três principais maneiras na prática social: Gênero, (modos de agir), Discursos (modos de representar) e Estilos (modos de ser) como as três principais maneiras em que o discurso figura como prática social – modos de agir, modos de representar, modos de ser. São os seguintes tipos de significações textuais: Ação, Representação e Identificação. Gêneros, discursos e estilos são na ordem meios relativamente estáveis e duráveis de agir, representar e identificar. São todos tidos como elementos de ordens do discurso médico-paciente no nível da prática social e que se articulam dialeticamente.

As relações dialéticas entre os significados gêneros, discursos e estilos não são estanques, mas a relação entre eles é mais sutil e complexa (FAIRCLOUGH, 2003, p.108). A representação tem a ver com conhecimentos e, por meio dele, controle sobre as coisas. A ação

está relacionada, de modo genérico, com a relação com os outros, mas também com a ação sobre os outros, e com o poder dialeticamente relacionado. Representações particulares (discursos) podem desempenhar de modo particular Ações e Relações (gêneros), e apontar modos de Identificação (estilos).

5.3.1 O gênero discursivo parto

O parto é um gênero semiótico multimodal, que tem um modo retórico embasado numa ritualística clínica médica integrada no cenário de uma maternidade pública. A característica dessa especificidade social é uma das questões que caracteriza o gênero partejar com critérios de abordagens diferenciadas e específicas às demandas obstétricas de mulheres em situação de vulnerabilidade social, que identifiquei no campo de pesquisa, e que gerou as seguintes características:

1) O parto é um evento não agendado;

2) O plantonista que faz o parto é desconhecido da mulher;

3) Não há um vínculo interacional prévio entre o plantonista e a mulher;

4) O plantonista não fez o pré-natal da mulher, nada conhece sobre sua gestação; 5) Não tendo o vínculo interacional e afetivo entre médico, médica e mulher o evento parto torna-se para a parturiente mais um desafio diante da complexidade que se reveste o processo de parir envolto em perspectivas de ansiedade, angústias, medos vários, de morrer, do bebê nascer aleijado ou mesmo vir a morrer ao nascer, enlaçado pelo cordão

umbilical, entre outras angústias;

6) A falta do processo interacional e relacional - que deveria ocorrer ao longo da gestação - desencadeia na mulher mais sofrimento, desconfiança, temor pelo atendimento do plantonista ou da plantonista;

7) O atendimento em maternidade de baixo risco não é considerado absolutamente seguro, pois conta com a imprevisibilidade do evento fisiológico parto com as prováveis complicações que possa evoluir;

8) No contexto da saúde pública é previsível tornar o evento parto mais sofrido para a mulher pois o arranjo estrutural da atenção à saúde esbarra em sua crise endêmica de gestão, escassez de recursos (técnicos, humanos, leitos de UTI materna e neonatal), que pode eventualmente ser um dos elementos em foco, que favorece a mortalidade materna e neonatal.

Apresento agora fragmentos das entrevistas de médicos e médicas, que são relevantes para a análise e que foram suscitadas a partir de minha indagação: Por favor, fala-

me um pouco sobre o parto humanizado? As respostas como os médicos e médicas no

Gonzaguinha discutem a ‘relação dialógica’ (BAKHTIN, 2008), entre o discurso da humanização do parto (Ministério da Saúde no Brasil) versus parto humanizado pela ordem discursiva da obstetrícia do qual são praticantes, disponho a seguir:

Nádia: E o parto humanizado?

DRA. VÊNUS de MILLUS (...) tudo isso é uma invenção antiMedicina. O parto

humanizado as Enfermeiras PODEM fazer, mas o atestado de óbito quem dá é o médico, muito engraçado né! Por isso eu defendo o Ato Médico, aquilo que é do médico fazer e pronto. Aí fica tudo que é profissional da saúde querendo fazer as coisas e dar as ordens aos médicos. Isso eu não aceito. O Ministério da Saúde parece que só tem economista.

Relato 18

Nádia: Por favor, fala como é ter que lidar com o parto humanizado aqui no

Gonzaguinha?

DRA. HELENA DE TROIA. (...) O parto huimanizado, feito natural, em casa tudo

isso é incrível se nosso país fosse a Dinamarca, Suiça, ... Gente aqui é o Brasil, estamos no Nordeste, gente. Isso é uma ironia. Não concordo que o parto deva ser feito em casa. Esse tempo era o tempo da Idade Média que tão querendo trazer de novo essas práticas. Qual é o médico que pode dispensar uma UTI? Uma incubadora? Um exame laboratorial de urgência? Isso é coisa de polícia!. A Medicina não pode caminhar feito caranguejo, prá trás e sim acompanhar as evoluções tecnológicas, imagens, suportes, etc. Por isso que o parto é hospitalar, tem que ser hospitalar, assistido com exclusividade por médicos especialistas obstetras, que o parto não é só do obstetra, mas tem que ter o neonatologista, o pediatra, não tem essa história que tá na moda, vamos fazer parto natural, tudo muito lindo, parece propaganda enganosa. Humanização do parto é ter tudo funcionando num hospital. Parto é potencialmente favorável para desencadear a mortalidade materna, quer seja humanizado, ou não.

Relato 19

Nádia: Por favor, fala como é ter que lidar com o parto humanizado aqui no

Gonzaguinha?

DR.ASCLÉPIO: Eu sempre falo: parto humanizado é todo parto, cesariana,

vaginal, humanizar é fazer certo, é tratar como gente a mulher, e não poder cortar não dar ocitócico, ao contrário, o ocitócico é reconhecidamente protetor, na dose correta ajuda a manter o útero numa dinâmica rítmica que precisa para o período expulsivo ocorrer tudo bem. Mas eu não quero dar ocitócico pra me ver livre da mulher não, pra terminar logo o parto e ir embora, isso é um absurdo. Tenho um nome pra zelar. Faço obstetrícia há 25 anos e nunca vi um caso nem na literatura e nem na clínica que um médico opte em fazer uso dessa medicação pra se ver livre da mulher, ou faça um fórceps pra maltratar a mulher, ou corte o períneo para a mulher ficar em situação estético-funcional de sua saúde reprodutiva prejudicada. Relato 20

Os textos dão conta da situacionalidade de questionar o parto humanizado como uma questão exclusiva não medicalizada, o que rompe com a epistemologia demarcadora da

prática social da Medicina, que se situa na dicotomia normalidade versus patológico e a imperiosa arte de curar. Tais regras atribuem posicionamentos discursivos específicos.

O parto é um evento interconectado a ordem do discurso que aponta as seguintes características:

a) recontextualiza a prática social da Medicina com a ótica da legitimação do poder;

b) determina relações sociais e identitárias do médico e médicas diante da equipe de saúde. Quanto à estrutura é pertinente localizar o discurso em relação à rede de ordens do discurso: o discurso legal da Medicina ou da ordem discursiva da Medicina, saber socialmente constituído para a garantia do controle da paciente em situação de parto.

A seguir apresento a dialética do discurso de acordo com Fairclough (2003), que se volta simultaneamente para a estrutura e para a interação.