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3 A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC) E DIÁLOGOS EPISTEMOLÓGICOS CRÍTICOS

4.5 O mergulho etnográfico

Figura – 4: Serra de Maranguape.

Este é o campo de pesquisa privilegiado pelo entorno da Serra de Maranguape, que está cercado por um santuário. Recebe muitos olhares, guarda segredos, preserva esperanças, acolhe de vez em quando os berros valentes dessas mulheres em suas parições dolorosas. O hospital recebeu muitos nomes e muitas placas inaugurais, que vão sendo fixadas a cada ampliação de seus equipamentos, mas a cidade o conhece da primeira placa, datada de 1988, que tem o nome do ex-governador Gonzaga Mota, mas é conhecido como Gonzaguinha. Em 2005, foi inaugurada uma ala, correspondendo à maternidade que tem também outra placa e outro nome, fotografia de morto ilustre, mas é conhecida pela comunidade como a “maternidade do Gonzaguinha”, caracterizada como de baixo risco para parto, sendo a única da cidade em funcionamento, pertencente ao Sistema Único de Saúde – SUS.

O atual nome é Argeu Braga Herbest, nome forte. Parece que não vai mudar. Trata-se de uma homenagem ao médico maranguapense, filho de imigrantes alemães, que vieram se instalar sob essa serra e profissional dedicado, que se tornou um mito para Maranguape porque os moradores acreditam que faz milagres, partos difíceis e cura todas as doenças. Nas décadas de 1950 a 1970, foi o maior nome da clínica médica no Ceará. Ele tudo sabia e quando em Fortaleza qualquer médico tinha uma dúvida diziam: “se eu não conseguir diagnosticar seu problema, a última palavra será dada pelo Dr. Argeu”. Mas a memória social da cidade concebe Gonzaguinha como o nome mais forte para o hospital e para a maternidade, apesar do atual nome merecer - segundo a população local - não uma placa, mas uma estátua, no altar da igreja, pois está mais para santo do que para uma placa simplesmente. Por enquanto é o Gonzaguinha, o campo de minha experiência etnográfica. Como todos os santos na cidade, o nome do Dr. Argeu circula nos santinhos, nos escapulários junto com Nossa Senhora da Penha, a padroeira da cidade.

O médico homenageado tem o túmulo mais visitado no belíssimo cemitério da cidade, protegido por muito verde, com belos mausoléus de estilo neoclássico e suas torres estilo gótico, tocando o céu. Se no passado havia caravanas de doentes em sua casa, vindos de todos os lugares, o seu túmulo ainda é o refúgio de muitos apelos testemunhados em candelabros toscos, com velas ardentes de fé.

A maternidade “do Gonzaguinha” foi projetada de acordo com os parâmetros do Ministério da Saúde, respondendo às demandas do parto humanizado. Contém quatro salas de parto e uma ala para o alojamento conjunto da mãe e do recém-nascido. São, ao todo, duas enfermarias de seis leitos cada e uma de dois leitos, para atendimento de outras questões ginecológico-obstetras. É uma ala acoplada ao Hospital Geral, de baixo risco, para

atendimentos de nível secundário, clínico, urgência e emergências cirúrgicas e traumatológicas. O Centro Obstétrico atende clínica e obstetrícia de baixo risco, com centro cirúrgico para partos cesáreos.

Os casos de maior complexidade são encaminhados para Fortaleza, pois a maternidade não possui Unidade de Tratamento Intensivo - UTI para mãe e recém-nascido (UTI-NEONATAL ), nem médio para alto risco. A equipe médica só realiza intervenções com anestesia se a opção for cirúrgica em partos cesariano. Partos fisiológicos ou vaginais não são cobertos por analgesia, tal como preconizam os protocolos de amparo e minimização da dor no parto vaginal, pois para isso a equipe teria que ter um anestesista, o que não ocorreu durante o desenvolvimento da pesquisa. Anestesista, quando tem, é para sala de cirurgia e não casos dispensáveis como o parto, por exemplo.

Figura – 5: Entrada principal do Hospital

Fonte: Arquivo pessoal.

A ala da maternidade é bem cuidada, protegida por um verde exuberante, no entorno da Serra do Maranguape. As mulheres usuárias geralmente são muito pobres. O centro obstétrico está organizado para atender a demanda de parto de baixo risco. É composta por três enfermarias de seis leitos cada. Tem um pequeno centro cirúrgico e uma ala específica para o preparo do recém-nascido. Para além dos médicos e médicas obstetras, trabalham os demais profissionais da saúde, enfermeiras, técnicos, auxiliares e o pessoal dos serviços de limpeza, maqueiros e apoio. Tem um consultório de consulta e dois postos de enfermagem, um para as duas enfermarias e o outro para a sala de parto. Também trabalham na maternidade as ex-parteiras que hoje assumem o papel de doulas ou amigas do parto. Essas têm uma significativa importância no contexto de atendimento ao parto no Gonzaguinha.

O ambiente é agradável, bem cuidado, como todo o ambiente da saúde pública deveria ser. Porém, como acontece nesse imenso País, a maternidade carece eventualmente de

uma ou outra coisa, acarretando mudanças na rotina, complicando as intervenções profissionais. De um modo geral, há dificuldades de infraestrutura, logística e recursos humanos. “É ruim, mas já foi muito pior”, como afirma um médico participante deste estudo, Dr. Heródoto.

Figura – 6: O convite ao silêncio.

Fonte: Arquivo pessoal.

No cenário surreal, as conversas; os olhares; nos horários possíveis, assistindo um pouco de TV; comentando sobre o noticiário, as artistas, celebridades de novelas, as fofocas do mundo, as fofocas da maternidade, o parto, a correria no parto; sobre as parturientes e suas coisas, sacolas, charme, preocupações com o corpo, a estética, “os seios que poderão cair” com a amamentação, “buxos quebrados”, mulheres “saradas”, “pernas cheias de veias

quebradas”, as “rabiçacas56”, e semioses não verbais articuladas corporalmente e

identificados por mim nesse cotidiano. Tudo isso todo o esforço desse trabalho ainda não dar conta de uma mais abrangente textualização etnográfica. Espero posteriormente poder fazê-lo. Os limites impositivos da academia conduziram o processo de análise dos dados organizados57 de forma a atender à multifuncionalidade da pesquisa.

As notas de campo, observações participantes, são também uma forma valiosa que elencam o diário de pesquisadora. Minha atuação inicialmente foi conhecer o cotidiano da

56Rabiçacas é virar o rosto de uma vez como forma de desprezo. Muitas das mulheres chateadas com algumas imposições prescritivas do hospital assim o faziam.

57 Tanto as entrevistas, análise dos relatos colhidos e análise das notas de campo proporcionaram-me uma grande quantidade de dados que constrói o enredo da tese. Os dados avançam para além das demarcações de suas “caixinhas” organizacionais e vão se transformando continuamente em novos materiais e fontes de reflexão teóricas. “Os cientistas como Bruno Latour os descreve, transformam continuamente seus materiais. Começam com uma observação no laboratório ou no campo e transforma isso em matéria escrita num caderno, depois transformam essas anotações em tabelas, a tabela em diagrama , o diagrama em conclusão, a conclusão no título de um artigo. A cada passo, a observação se torna mais abstrata, mais divorciada da concretude do seu contexto original, e o destino de um argumento ou achado científico está sempre nas mãos de usuários posteriores: eles decidem se será rejeitado ou acatado e incorporado ao corpo de fatos aceitos por todos nessa ciência” (BECKHER, 2009, p. 30).

maternidade. Revi amigas, amigos, e me incorporei ao grupo de profissionais de uma forma muito bem aceita. No princípio, muitas emoções, curiosidades e uma sensação de impotência diante do desafio que se apresentava aos meus olhos. Um ambiente sensível, onde circulam muitas pessoas com demandas diversificadas.

Figura – 7: Porta principal de entrada da sala de pré-parto,

conhecida pelas mulheres como “o sofredor”.

Fonte: Arquivo pessoal.

Figura – 8: A sala de parto.

Fonte: Arquivo pessoal.