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3 A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA (ADC) E DIÁLOGOS EPISTEMOLÓGICOS CRÍTICOS

5 REPRESENTAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO DE MÉDICOS E PARTURIENTES EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE E SOFRIMENTO

5.2 Relação do discurso com outros momentos – discursos como parte da atividade discurso e reflexividade

5.2.2 O parto de baixo risco

Na atenção de baixo risco de parto, a classificação alcança quase ao estatuto não medicalizado que o parto vem se constituindo como uma prática não médica da tradição interventista obstétrica invasiva tal como preconiza o Ministério da Saúde (BRASIL, 2004)67. O médico, no parto humanizado, deve utilizar apenas as tecnologias biomecânicas para ajudar no acolhimento do trajeto do bebê, caso ocorra algum problema que dificulte o seu nascimento do ponto de vista fisiológico e vaginal. Nada mais. E os protocolos considerados desnecessários, tais como manobras de empurrar o bebê no abdômen da mãe, (Manobra de Kristeller), a aplicação de hormônios indutores do parto (ocitócicos) e os procedimentos cirúrgicos de cortes no períneo68 ou (episiotomia) é realizada para facilitar a ejeção do bebê e depilação dos pelos pubianos (tricotomia) e demais regiões perivaginais são discutidos pelos médicos e médicas em fragmentos de textos a seguir. Todas essas tecnologias consideradas desnecessárias e não humanizadas69.

Vejamos a seguir os Relatos 16 e 17.

67 BRASIL. Ministério da Saúde, 2004. Estratégias para redução de partos cirúrgicos. Disponível em: <http: //saude.gov.br/ datasus>. Acesso em: mar.2012.

68“O uso indevido da episiotomia e da posterior sutura (episiorrafia) é um exemplo da violação do direito de estar livre de tratamentos cruéis, humilhantes e degradantes” (REZENDE apud REDE NACIONAL FEMINISTA DA SAÚDE, DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS, BRASIL, 2012).

69 Algumas das práticas que inibem “a segurança e o bem-estar “desestimuladas pelo Ministério da Saúde, ainda estão sendo praticadas rotineiramente no Gonzaguinha. Dentre estas constam: indução à tricotomia (depilação dos pelos pubianos e da região perineal); exame de toque vaginal; posição horizontal durante o trabalho do parto; utilização de acesso na veia para administração de medicamentos; administração de ocitocina para acelerar o trabalho de parto; episiotomia e manobra de Kristeller (pressão no fundo do útero durante o trabalho de parto).

Nádia: Gostaria que comentasse sobre parto humanizado

DRA. VÊNUS DE MILUS. O Ministério da Saúde parece que só tem economista.

Inventaram essa história da gente ficar só observando o parto. Esse período que a gente nunca sabe como termina. De repente no final, no último momentozinho, o útero entra em atonia, não produz mais contrações, e aí?

Relato 16

Nádia:Gostaria que comentasse sobre parto humanizado

DR. HERÓDOTO: É o seguinte eu acho mesmo é que são as enfermeiras que

querem agora tomar de conta da obstetrícia, querem fazer parto, pré-natal, e ainda dar ordem pra a gente não fazer os protocolos chamados invasivos. É muito engraçadinho isso. DR. HERÓDOTO:

Relato 17.

Os conflitos que emergem, desse embate, levam-me a questionar o porquê nesse cenário discursivo do parto em uma maternidade de baixo risco. O poder médico reacende o debate de uma hegemonia científica obstétrica diante das prescrições do parto humanizado e leva-me a refletir sobre algumas angústias que os textos revelam. Seria possível pensar que o parto como um evento medicalizado da Medicina é deslocado para uma esfera não médica como uma forma de transformação de uma prática que quer ser de outros profissionais da saúde?

O Estado, ao defender o discurso da humanização, justifica a não medicalização do parto como uma ação natural a não depender necessariamente da atenção médica sofisticada? A sofisticação de fato seria desnecessária? Porque os médicos e médicas em defesa da vida das mulheres invocam o poder médico, e o Ato Médico70? A obstetrícia é somente da Medicina ou as demais profissões podem exercê-las, doulas, parteiras enfermeiras? Ou obstetrícia se constitui como uma imposição de um saber exclusivo e que foi incorporado às demais profissões de saúde e, inclusive, estaria no âmbito da Medicina sendo enfraquecida pelo Ministério da Saúde?

Esse discurso coincide com a luta do movimento médico pela aprovação na Câmara Federal do Ato Médico. Então, qual poderia ser a sua função? Em que medida essa normatização da prática do médico seria útil para a sociedade em nosso cenário contemporâneo? A ênfase no caráter singular da Medicina não seria uma estratégia de diferenciação e dominação? E é legítima para essa estratégia em defesa da vida das mulheres pobres atendidas no SUS? Para responder a isso, considero pertinente analisar as questões, considerando a relevância da problemática da saúde da mulher, o parto e a mortalidade materna no contexto da sociedade brasileira, sob condições em que se articulam outras práticas profissionais no âmbito da saúde pública. Aspectos relevantes das relações que se

estabelecem no fortalecimento do papel singular do saber médico, como modo de operação da ideologia, destacando o fortalecimento de quem exerce o poder médico, com ênfase na divergência e diferenciação entre o grupo das profissões da saúde.

As vozes dos profissionais assumem posicionamentos em discursos contra as prescrições do parto humanizado na prática da Medicina e o exclusivismo de abordar alguns aspectos conceituais, considerando suas habilidades e competências epistemologicamente legítimas na arte de partejar. O modo de produção da articulação do poder médico é controlado pelas elites simbólicas (epistemologia médica obstétrica) e, nesse aspecto, representa um capital simbólico, que determina a forma de representação do discurso e elabora as forma de dominação, controle e poder (VAN DIJK, 2008, p. 44).

O empreendimento político do reconhecimento da prática social da Medicina moderna faz do médico, apenas a este, o direto de intervir na arte de curar com a plenitude de um discurso científico numa figura única, a articulação da linguagem médica com seu objeto - o sofrimento da humanidade. A Medicina moderna fixou sua própria data de nascimento em torno dos últimos anos do século XVIII quando reflete sobre si própria, identifica a origem de sua positividade a forma da racionalidade médica, dotadas de conhecimentos cabendo a si, a qualidade singular, a forma única que torna possível organizar uma linguagem da cura. Cabia a esta linguagem, apenas a ela, autorizar, a respeito do indivíduo, um saber, a experiência clínica forma e em profundidade, e pronunciar sobre o indivíduo um discurso de estrutura científica (FOUCAULT, 1998).

A autonomia do discurso médico e a complexidade de seu olhar sobre a doença expurgam quaisquer outras práticas impuras, inclusive tais como operam os cirurgiões e os religiosos, freiras, os práticos. Para estas categorias podem cuidar - apenas de quem são portadores de pequenos problemas - pessoas que gozam de boa saúde, moradores das zonas rurais e pobres. Estamos contextualizando um cenário no qual o capitalismo entra em seu processo áureo de fortalecimento da prática da Medicina, para ser realizada privatista e liberal.

A experiência clínica médica e seu esforço de organização como biopolítica, superior a todas as outras artes de curar, criou o estatuto hegemônico do poder sobre a vida e a morte. Diante das transformações políticas e científicas, que instituíram outras profissões para atuarem na saúde e na doença - como a Psicologia, a Odontologia, a Enfermagem a Psiquiatria, a Cirurgia, a Psiquiatria - com autonomias epistemológicas se cientifizaram, ao abrigo da qual poderiam exercer sua experiência prática sob os limites e restrições no campo da saúde sem alcançarem a complexidade do estatuto da arte de curar tal como a Medicina

logrou. A exceção ficou para a psiquiatria e a cirurgia que, no final do século XIX, evoluiria a ponto de tornarem-se verdadeiramente especialidades médicas e que depois de uma intensa negociação, seriam agregadas à Medicina. Michel Foucault (1995), elucida essa digressão no contexto do nascimento da Medicina moderna no plano do discurso médico entre o século XVIII e XIX na França – uma ruptura e autonomia na episteme da época, com todas as outras artes de curar.

O estatuto do Ato Médico, que atravessou o século XX, chegando aos nossos dias na modernidade posterior, luta mais uma vez por sua exclusiva episteme, diante da dor do homem no limite da vida e da morte. Um espaço de poder que classifica, ordena o modo de olhar, dizer, guiar para o interior invisível do corpo e dos órgãos, na busca das alterações na estrutura anatômica que podem correlacionar com os sintomas e sinais da doença. A definição de um estatuto político da Medicina e a constituição, ao nível de um estado, de uma consciência médica, encarregada de uma tarefa constante de informação, controle e coação, exigências que compreendem objetos tanto relativos à polícia, quanto propriamente os da competência da Medicina (FOUCAULT, 1995).

Assim, estabelece-se um duplo controle das instâncias políticas sobre o exercício da Medicina e de um corpo médico privilegiado sobre o conjunto de práticas e de outras profissões, que se apropriam do objeto da Medicina. Ontem e hoje -, o discurso médico se estabelece em sua autonomia singular. Pede-se que a consciência de cada indivíduo esteja medicamente alerta. Será preciso que cada cidadão esteja informado do que é necessário e possível saber em Medicina (FOUCAULT, 1998).

Estas discussões, na modernidade, deram à Medicina o seu caráter de representação do discurso que compromete politicamente os médicos em relação à doença e ao doente, o caráter privilegiado da normalidade médica socialmente definida, a verdadeira arte de curar. Com a contribuição genealógica de Michel Foucault, encontramos apoio para esclarecer como o discurso médico se estabelece como produto da biopolítica disciplinar, nas relações de poder e de seu caráter produtor de eventos sociais, da prática da saúde no cenário da modernidade.

O texto final do Ato Médico, aprovado na Câmara dos Deputados em 21 de outubro de 2009, legitima uma representação estável de poder e dominação que a Medicina tem sobre a arte de curar e historicamente acumulam-se de epistemologias de alto teor de capital simbólico, destacando sua superioridade em relação às demais profissões de saúde.

O poder é legal e simbólico. Vascularizam-se nas relações de políticas públicas de saúde, como também na cor branca em vestimentas, no avental que incorporam rituais

exclusivos do médico. Prescrevem medicamentos, consultam, elaboram diagnósticos, dirigem instituições, assumem o controle e chefia de Hospitais, Clínicas, Secretarias de Saúde, entre outras esferas administrativas, socialmente articuladas nas práticas sanitárias e de gestão pública. Adquiriram-se legitimamente poderes em práticas sociais para o atendimento, gerenciamento das demandas de saúde das populações.

A seguir, apresento Relatos do conflito pela hegemonia do discurso médico na arte de partejar versus discurso do parto humanizado não medicalizado prescrito pelo Ministério da Saúde no Brasil; legitimação de ações e ordens sociais e o papel social do médico; ideologia como representação de aspectos do mundo, contribuindo para o estabelecimento, manutenção das relações sociais de poder, associadas com discursos (FAIRCLOUGH, 2003).

Nádia: É possível falar que o parto de baixo risco outros profissionais da saúde

podem executá-lo?

DR. ASCLÉPIO: Eu acho que essa classificação de parto de baixo risco é

hipocrisia. O Ministério da Saúde não quer gastar dinheiro e que fazer com que os médicos voltem no tempo das cavernas. Fecham os hospitais maternidade. Aqui foram fechadas duas grandes maternidades. Em Fortaleza foram fechadas nos últimos cinco anos oito maternidades. Só tem três funcionando. E a população de gestante muito alta, é como você diz mesmo aí, são as mulheres que batem de porta em porta. Elas precisam é de uma vaga para serem atendidas, e tem horas que lota tudo, não tem onde botar mulher; veja tem 15 dias que morreu àquela gestante lá na fila de espera do HGF71, sabe quantas horas ela passou para ser atendida? Oito horas. Oito horas se contorcendo em dores em cima de uma cadeira. Chegou no hospital as 15 horas, morreu a meia noite quando foi ser atendida. Isso é um genocídio. E vem a hipocrisia do Ministério com esses manuaizinhos de parto humanizado. Isso é hipocrisia. Escreva isso na sua tese: hipocrisia.

Relato 26.

O desabafo do Dr. Asclépio é forte e aponta algumas questões que precisam ser enfrentadas pela sociedade brasileira, pois as revelações aqui trazidas são fontes de muitas inquietações diante dessa conjuntura discursiva do sofrimento no parto. Os relatos médicos apontam para a necessidade do fortalecimento da medicalização no parto, considerando que a humanização possa ser um discurso problemático de enfrentamento das causas mais graves relacionado à mortalidade materna.

A interação médico, médica e mulher sem dúvidas é crucial nesse processo, que facilitaria solucionar uma faceta desse problema; a atenção acolhedora para garantir que as subjetividades e angústias da maldição do parto e algumas das suas manifestações possam ser suavizadas. Mas o Dr. Asclépio nos leva a outras angústias que devem ser enfrentadas na

71 HGF: Hospital Geral de Fortaleza, um dos poucos hospitais públicos na cidade de Fortaleza com UTIs materna e neonatal de alta complexidade.

nova ordem discursiva das políticas de saúde ao parto nesse País, não suavizadas pela

humanização, e sim solucionadas nas esferas governamentais no SUS. Na Medicina privada

tudo é compatível com a força do dinheiro, bem estar, agendamento “e lá é proibida a palavra sofrimento no parto” (DR. HERÓDOTO). A mulher pobre não tem escolhas, não pela via de parto e sim pelas circunstâncias presentes e não resolvidas pelo sistema. Pobreza é igual a mortalidade materna. A mortalidade materna sinaliza de forma grave e cruel o quanto que a cidadania está sendo desumanizada, desrespeitada e, o pior, desfocado do debate político nesse país.

Há nos textos de médicos e médicas o posicionamento político crítico junto às esferas governamentais. Defendem o parto como um evento médico potencialmente favorável a complicar, e encara o discurso da humanização como uma forma atenuada de desfocar o verdadeiro obstáculo de mudança dessa prática para uma posição humanitária de suas ações gerenciais, recursos, e prioridades reais da saúde pública.

A partir das texturizações médicas - que defendem a prática obstétrica como hegemônica contra a naturalização romântica do parto humanizado prescrito pelo Ministério da Saúde -, considero que emergem identidades profissionais éticas, comprometidas com a ordem do discurso da Medicina positivista