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2. AS VIDAS INVENTADAS

2.3. A IDADE MÉDIA E SUAS INVENÇÕES

A atividade essencial da Idade Média era a agricultura, por isso as invenções estavam

voltadas para esse ramo de atividade. Assim, vejamos como Lynn White Jr. descreve as

principais invenções realizadas na época.

“[...] o arado, o sistema de três campos uma rotação aperfeiçoada de lavra e alqueive – que aumentou muito a eficiência do trabalho agrícola. Por exemplo, ao transferir o cultivo de 600 acres de do sistema de dois campos para o de três campos, uma comunidade camponesa passava a poder cultivar 100 acres a mais de lavoura e arar 100 acres a menos por ano. Uma vez que as terras de pousio eram aradas duas vezes para evitar ervas daninhas, o sistema antigo requeria três acres de aradura para cada acre de cultivo, ao passo que para o novo bastavam apenas dois acres de aradura por acre de cultivo.”109

Porém, as três invenções que mais modificaram a atividade agrícola são mencionadas

por um estudioso medieval, Lefebvre de Noëttes, e aconteceram nos fins do século IX ou

início do X de forma quase simultânea: a moderna coelheira para cavalo, a atrelagem de

animais em fila e a ferradura.

108 WHITE JR, Lynn. Tecnologia e invenções na Idade Média. Tradução de Sylvia Ficher e Ruy Gama. In:

GAMA, Ruy (Org.). História da Técnica e da Tecnologia. São Paulo: Edusp, 1985 p. 90.

“Tomados em conjunto, estas três invenções deram à Europa um novo suprimento de

força motriz não-humana, sem acréscimo de despesas ou trabalho; fizeram pelos séculos XI

e XII o que a máquina a vapor fez pelo século XIX”.

110

Se adicionarmos às invenções acima a mó (moedor), a braço ou a cavalos, o moinho

impulsionado pelo vento e finalmente o moinho d'água temos um grupo de invenções que

resumem a essência do que significaram as inovações da Idade Média, aparentemente tão

rudimentares para os nossos tempos.

As conclusões de Lynn White Jr. permitem um panorama revelador sobre esse período

de fundamentais invenções, que já traziam em seu escopo uma das mais importantes essências

do sentido do trabalho.

“A maior glória da Idade Média tardia não foram suas catedrais, seus épicos ou sua escolástica: foi a construção, pela primeira vez na história, de uma civilização complexa que se apoiava, não nas costas de escravos ou cules esfalfados, mas basicamente em energia não-humana.

O estudo da tecnologia medieval é muito mais que um aspecto da história econômica: revela um capítulo na conquista da liberdade. Mais ainda, é parte da história da religião. A tecnologia humanitária que nosso mundo moderno herdou da Idade Média não tem suas raízes nas necessidades econômicas. Tais “necessidades” são inerentes a qualquer sociedade e, no entanto, encontraram expressão inventiva apenas no ocidente, alimentadas pela tradição ativista ou voluntarista da tecnologia ocidental. São idéias que tornam conscientes as necessidades. As máquinas medievais que economizavam trabalho eram produzidas no pressuposto teológico implícito do valor infinito que tem mesmo a personalidade humana mais degradada e devido a uma repugnância instintiva à sujeição de quem quer fosse a uma atividade desprezível e monótona, a qual parece inferior ao ser humano, por não requerer o exercício da inteligência nem da escolha. Já foi dito inúmeras vezes que a dignidade e o valor espiritual do trabalho foram descobertos primeiramente pela Idade Média Latina – que trabalhar é orar. Mas, a Idade Média foi ainda mais longe: começou gradual e lentamente a explorar as implicações práticas de um paradoxo essencialmente cristão: assim como não há templos na Jerusalém celeste, o objetivo do trabalho é abolir o trabalho.”111

De acordo com o autor acima, podemos perceber que o sentido do trabalho começa a

ganhar referência já na Idade Média, pois é fator relevante que o “objetivo do trabalho é abolir

o trabalho”, poupar e economizar o esforço humano.

110 WHITE JR, Lynn. Tecnologia e invenções na Idade Média. Tradução de Sylvia Ficher e Ruy Gama. In:

GAMA, Ruy (Org.). História da Técnica e da Tecnologia. São Paulo: Edusp, 1985 p. 96.

A mão-de-obra humana intensamente disponível na Idade Antiga, segundo Marc Bloch,

explica-nos o motivo pelo qual o economizar esforço humano por meio da técnica não

ocorreu antes, na Idade Antiga.

“Ora, no mundo antigo, esta negligência em conduzir ao seu desenvolvimento, as possibilidades técnicas já prontas, não é um fato isolado. [...] Conta Suetônio que, quando Vespasiano fazia reconstruir o Capitólio, incendiado nas últimas guerras civis, um artesão lhe propôs uma máquina que permitiria transportar, com pouco custo, as colunas para o alto da colina. O príncipe recompensou o inventor e recusou a invenção: ‘Que me seja permitido”, diz ele, “dar de comer aos mais pobres’. A anedota é instrutiva por mais de uma razão. As civilizações greco-romanas contavam com muitos olhos prontos e espíritos vivos para que lhes fosse negada a graça da imaginação técnica. [...] As gerações contemporâneas das primeiras rodas de moinho não eram, naturalmente, tão tolas que não percebessem que, além disso, todo progresso do instrumental devesse ter o efeito de poupar o esforço dos braços. [...] Porém, esta economia de força humana era precisamente o de que o mundo antigo não tinha necessidade. Pois, pelo começo da era cristã, ele era abundantemente povoado, se considerarmos as possibilidades de sua agricultura. Sobretudo porque, então, costumava-se exigir da mão-de-obra disponível (um dos gêneros menos raros e menos caros da época) estas tarefas rudes cuja realização parecesse suscetível de ser confiada às forças inconscientes da natureza. Porque, é claro, o caso dos trabalhos do Capitólio era excepcional. Hipertrofiada em relação à sua função econômica, Roma via agitar-se em suas ruas um proletariado famélico que os governantes estavam muito contentes de ajudar a viver, empregando-o em suas obras. [...] Além disso, sobretudo nos grandes domínios que cobriam a Itália e muitas províncias, não eram assalariados e nem mesmo ordinariamente cavalos ou asnos que moviam as mós ou esmagavam os grãos no velho pilão (procedimento bem mais primitivo, cujo uso é atestado por Plínio). Este duro trabalho era coisa de escravos: às vezes de homens, mas constantemente de mulheres, irmãs das servas às quais o poeta da Antologia, misericordiosamente, prometia o sono.”112