• Nenhum resultado encontrado

3. O PARADOXO DO ÓCIO

3.1. IDÉIAS E CRENÇAS

Como diz Ortega Y Gasset, “Las ideas se tienen; en las creencias se está. – ‘Pensar en

las cosas’ y ‘contar con ellas’ ”

184

. Há, portanto, para o filósofo uma diferença entre os dois

termos – idéias e crenças. Vejamos como ele nos explica os conceitos. Optamos por

183 PIEPER, Josef. Leisure: the basis of culture. Traduzido para o inglês por Alexander Dru. Introdução de

T.S.Eliot. Indianápolis: Liberty Fund., 1998. pp. 1-2. Tradução nossa.

184 ORTEGA y GASSET, José. Ideas y Creencias. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 23. Têm-se as idéias;

reproduzir a maior parte da explicação devido à originalidade do autor e à complexidade do

tema.

“Quando se quer entender um homem, a vida de um homem, procuramos antes de tudo averiguar quais são suas idéias. [...] Como não vão influenciar na existência de uma pessoa, suas idéias e as idéias de seu tempo ? É óbvio que sim. Perfeitamente, mas também é equívoca, a meu ver, a insuficiente clareza sobre o que se busca quando perguntam sobre as idéias de um homem – ou de uma época – impede-se que se obtenha a clareza sobre a sua vida, sobre a sua história.

Com a expressão ‘idéias de um homem’ podemos nos referir a coisas muito diferentes. Por exemplo: os pensamentos que lhe ocorrem sobre isto ou aquilo e aqueles pensamentos que ocorrem ao próximo e ele repete e adota. Estes pensamentos podem possuir os graus mais diversos de verdade. Inclusive podem ser “verdades científicas”. Tais diferenças, no entanto, não importam muito, somente importam um pouco para a pergunta muito mais radical que colocamos agora. Pois, sejam pensamentos vulgares, sejam rigorosas “teorias científicas”, sempre são ocorrências que surgem em um homem e que são originalmente suas ou do próximo. Mas isto implica evidentemente que o homem estava já aí antes que lhe ocorresse ou adotasse a idéia. Esta idéia brota, de um ou outro modo, dentro de uma vida que preexistia a ela (a idéia). Pois bem, não há vida humana que não esteja desde logo constituída por certas crenças básicas e, pode-se dizer, alicerçada sobre elas. Viver é ter que ter as crenças em algo – com o mundo e consigo mesmo. Mas este mundo e este ‘si mesmo’ com os quais o homem se encontra aparecem-lhe já debaixo de uma interpretação, de ‘idéias’ sobre o mundo e sobre ‘si mesmo’.

Aqui nos confrontamos com outro estrato de idéias que um homem tem. Mas, quão diferente daquelas idéias que lhe ocorrem ou que adota! Essas ‘idéias’ básicas que chamo ‘crenças’ – já se verá porquê – não surgem em um dia e hora qualquer dentro de nossas vidas, não chegamos a elas por um ato particular de pensar, não são em suma, pensamentos que temos, não são ocorrências nem sequer daquela espécie mais elevada por sua perfeição lógica e que denominamos raciocínio lógico. É o contrário: essas idéias que são, na verdade, ‘crenças’ constituem o continente de nossa vida e, por isso, não possuem o caráter de conteúdos particulares dentro de nossa vida. Cabe dizer que não são idéias que temos, senão idéias que somos. Mais ainda; precisamente porque são crenças radicais se confundem para nós com a própria realidade – são o nosso mundo e o nosso ser – perdem, portanto, o caráter de idéias, de pensamentos nossos que poderiam muito bem não nos ter ocorrido.

Quando se leva em conta a diferença existente entre estes dois estratos de idéias aparece, sem mais, clara a diferença que fazem em nossa vida. E, prontamente, a diferença de origem funcional. Das idéias-ocorrências – e conste que incluo entre elas as verdades mais rigorosas da ciência – podemos dizer que as produzimos, sustentamos discutimos, divulgamos, combatemos a seu favor e somos capazes até de morrer por elas. O que não podemos é... viver delas. São obra nossa e, por isto mesmo, supõem a nossa vida, a qual se assenta em idéias-crenças que não produzimos nós mesmos, que, em geral, nem sequer formulamos e que, claro está não discutimos, divulgamos

ou sustentamos. Com as crenças propriamente não fazemos nada, senão que simplesmente, estamos nelas. Precisamente o que não nos passa jamais – se falamos cuidadosamente – com nossas ocorrências. [...] Com efeito, na crença se está, e a ocorrência se tem e se sustém. Mas a crença é quem nos tem e sustém a nós próprios.

Há, pois, idéias com que nos encontramos – por isto as chamo ocorrências – e idéias em que nos encontramos, que parecem estar aí já, antes que nos ocupemos em pensar.

Uma vez dito isto, o que surpreende é que se chamem ambas de idéias.”185

O autor continua a discussão do tema apresentado e coloca a questão de tanto as “idéias-

crenças” como as “idéias-ocorrências” serem ambas denominadas “idéias” por efeito do uso

que a psicologia faz do termo para ambos os conceitos

186

.

Para Ortega, o mais importante é que se use o termo “idéias” para designar tudo aquilo

que em nossa vida aparece como resultado de nossa ocupação intelectual. E que se faça o uso

oposto com relação ao termo “crenças”.

“[...] não chegamos a elas (crenças) com um trabalho de entendimento, senão que elas já operam em nosso íntimo quando começamos a pensar em algo. Por isso, não costumamos formulá-las, e contentamo-nos com aludirmos a elas como costumamos fazer com tudo que é realidade para nós. [...] Nas crenças, não pensamos agora ou em algum instante posterior: nossa relação com elas consiste em algo muito mais eficiente, consiste em... contar com elas, sempre, sem pausa.

Parece-me de excepcional importância para agregar, por fim, clareza na estrutura da vida humana esta contraposição entre pensar em alguma coisa e contar com ela.”187

O autor utiliza como exemplo para explicar uma crença a resolução de alguém que

decidiu sair para a rua. No momento em que se resolve sair à rua, não se pergunta se a rua está

ou não lá. Simplesmente, conta-se com o fato de que a rua esteja lá. A surpresa causada, caso

a rua não estivesse lá e não se tivesse feito questão de pensar sobre o assunto (a existência da

rua), descreve até que ponto a existência da rua atuava em seu estado anterior (como uma

185 ORTEGA y GASSET, José. Ideas y Creencias. Madrid: Alianza Editorial, 2005. pp. 23-27. Tradução

nossa.

186 É importante comentarmos que adotamos a definição de Idéias e Crenças de Ortega y Gasset, mas existe uma

proximidade com o termo ideologia utilizado pelo filósofo inglês Terry Eagleton (nascido em 1943). Das seis proposições que o filósofo apresenta a mais próxima de Ortega y Gasset é a seguinte: “idéias e crenças, verdadeiras ou falsas, que sintetizam as condições e experiências de vida de um grupo socialmente significativo (essa é uma definição que poderíamos assimilar à de “visão de mundo”) [...] Cf. EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Unesp/Boittempo, 1997. apud MAGALHÃES, Gildo. Introdução à metodologia da pesquisa: Caminhos da Ciência e Tecnologia. São Paulo: Editora Ática, 2005. p 97.

187 ORTEGA y GASSET, José. Ideas y Creencias. Madrid: Alianza Editorial, 2005. pp. 26-27. Tradução

crença), até que ponto contava-se com a rua, ainda que não se pensasse nela e precisamente

porque não se pensava nela.

Novamente, sem querer argumentar com a psicologia que poderia explicar o fato acima

como um pensamento habitual. Ortega y Gasset define crença e sua influência sobre o

comportamento humano.

“Pois bem, a este modo de interferir algo em nossa vida sem que pensemos, chamo de “contar com ele”. É este o modo próprio de nossas efetivas crenças.

O intelectualismo, como havia dito, inverte o valor dos conceitos. Com efeito, o intelectualismo tendia a considerar como o mais eficiente em nossa vida o que é mais consciente. A máxima eficácia sobre o nosso comportamento reside nas implicações latentes de nossa atividade intelectual, em tudo aquilo com que contamos e em que, de puramente contar com isso, não pensamos. [...]

As crenças constituem a base de nossa vida, o terreno sobre o qual a vida acontece. Porque elas nos colocam diante do que para nós é a própria realidade. Toda nossa conduta, inclusive a intelectual, depende de qual é o

sistema de nossas crenças autênticas. Nas crenças ‘vivemos, nos movemos e

somos’ [...]”188

O autor define a associação entre razão e inteligência, que também influenciam o

comportamento.

“Não se pode negar, sem dúvida, que nos é normal reger nosso comportamento conforme as muitas ‘verdades científicas’. Sem considerá-lo heróico, vacinamo-nos, exercemos usos, empregamos instrumentos que, a rigor, parecem-nos perigosos e de cuja seguridade não temos maior garantia que a da ciência. [...] Trata-se simplesmente de recordar (ao leitor) que entre as crenças do homem atual é uma das mais importantes sua crença na ‘razão’, na inteligência. Não iremos precisar agora as modificações que nestes últimos anos tem experimentado essa crença. Sejam quais forem, é indiscutível que o essencial desta crença subsiste, quero dizer, que o homem continua contando com a eficiência de seu intelecto como uma das realidades que existem, que integram a sua vida. Mas tenha-se a serenidade de reparar que uma coisa é fé na inteligência e outra crer nas idéias determinadas que esta inteligência cria. Em nenhuma destas idéias se crê com fé diretamente. Nossa crença refere-se à ‘coisa’ inteligência, assim de forma geral, e essa fé não é uma fé na inteligência. Compare-se a precisão desta fé na inteligência com a imprecisa idéia que quase todas as pessoas têm de inteligência.”189

188 ORTEGA y GASSET, José. Ideas y Creencias. Madrid: Alianza Editorial, 2005. pp. 28-29. Tradução e

grifo nossos.

Ortega y Gasset propõe-nos a abordagem que nos interessa para este capítulo ao dizer

que se quisermos tomar a história também como ciência, deveríamos procurar definir com a

maior precisão possível qual era a fé na razão que se conhecia em cada época e quais eram as

suas conseqüências para a vida.

“Aqui está um exemplo esplêndido do que se deverá, sobretudo, interessar a história quando se resolve a ser ciência, a ciência do homem. Em vez de ocupar-se somente em fazer a história – quer dizer, em catalogar a sucessão – das idéias sobre a razão desde Descartes até esta data, procurará definir com precisão como era a fé na razão que efetivamente operava em cada época e suas conseqüências para a vida. Pois é evidente que o argumento do drama em que a vida consiste é distinto se se está na crença de que um Deus onipotente e benévolo existe, ou se se “está” na crença oposta. E também é distinta a vida, ainda que a diferença seja menor, de quem crê na capacidade absoluta da razão para descobrir a realidade, como se acreditava ao final do século XVII na França, e quem crê, como os positivistas de 1860, que a razão é por essência conhecimento relativo.”190

Diferentes crenças e idéias sobre o trabalho e o ócio levaram a diferentes modos de

vida, cada povo em sua respectiva época. Diversos autores pensaram e divulgaram as suas

idéias sobre o tema. Nossa abordagem sobre o tema do ócio estará principalmente centrada

em autores que elaboraram suas idéias durante e depois da consolidação da Revolução

Industrial.

Iremos expor um pequeno panorama de como evoluíram alguns elementos formadores

do tempo livre desde a Idade Média.