3. O PARADOXO DO ÓCIO
3.2. DO USO DO TEMPO LIVRE AO CONSUMO: A CEGA ESPERANÇA
Adotaremos como referência para este panorama as idéias de Johan Huizinga que em
seu livro Homo Ludens define como elemento central da vida humana o jogo e suas variações
como força de distensão, escape da vida material e oposição à seriedade racional do trabalho.
De acordo com Johan Huizinga, antes da consolidação da Revolução Industrial que
tornou o trabalho o ídolo da sociedade da época, a vida na Idade Média era permeada de mais
jogos, arte e poesia.
“A vida medieval estava saturada de jogo. Ora são jogos populares desenfreados, permeados de elementos pagãos, que haviam perdido seu significado sagrado para se transformarem em puro humor e bufoneria, ora os solenes e pomposos jogos de cavalaria, os jogos sofisticados do amor cortês etc.[...] Porque a Idade Média herdou da antigüidade clássica suas grandes formas culturais nos domínios da poesia, do ritual, do saber, da filosofia, da política e da guerra, e essas eram formas fixas. A cultura medieval era sob muitos aspectos rude e pobre, mas não pode ser considerada primitiva. Sua tarefa era a elaboração de material tradicional, cristão ou clássico, sob uma forma nova. Só quando não se enraizava na antigüidade, nem era alimentado pelo espírito eclesiástico ou greco-romano, havia lugar para uma intervenção do fator lúdico e para a criação de alguma coisa inteiramente nova. Em resumo, a Idade Média conheceu uma influência extraordinária do espírito lúdico, não quanto à estrutura interna das instituições, que era de origem predominantemente clássica, mas quanto ao cerimonial através do qual essa estrutura era exprimida e ornamentada.”191
Sobre o Renascimento e o Humanismo, que foram também responsáveis pela
consolidação do conhecimento que revolucionou a ciência e posteriormente a técnica como
indicamos no segundo capítulo, Huizinga diz-nos o seguinte com relação ao elemento lúdico:
“Se houve alguma vez uma minoria plenamente consciente de sua superioridade, que se esforçou por se separar do vulgo para viver a vida como se fosse um jogo de perfeição artística, essa minoria foi a elite cultural do Renascimento. Mais uma vez aqui é necessário sublinhar que o jogo não exclui seriedade. O espírito do Renascimento estava muito longe de ser frívolo, e a vida como imitação da antigüidade era um jogo levado inteiramente a sério. A veneração pelos ideais do passado em matéria de criação plástica e de investigação intelectual caracterizava-se por uma violência, uma profundidade e uma pureza que ultrapassavam tudo o que podemos imaginar. Seria difícil imaginar. [...] Essa busca da beleza e da nobreza da forma, ao mesmo tempo sofisticada e espontânea, é um exemplo de jogo cultural. [...]
A palavra ‘Humanismo’ desperta imagens menos coloridas, ou mais sérias, se se quiser, do que o Renascimento. No entanto, tudo o que dissemos sobre a ludicidade do Renascimento se aplica também ao humanismo. Era, em grau ainda maior que ele, exclusivo de um círculo de iniciados e pessoas ‘por dentro’. Os humanistas cultivavam um ideal de vida formulado no mais rigoroso acordo com uma antigüidade imaginária.”192
191 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. Tradução João Paulo Monteiro. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2007. (Coleção Estudos). pp. 200-201.
O autor apresenta ainda suas interpretações sobre a época industrial na vida social, que
se revestem de extrema seriedade. Devido principalmente à importância dada aos fatores
econômicos e à evolução da tecnologia, os homens afastaram-se do lúdico, representado
principalmente pelo desaparecimento do jogo como parte do imaginário humano.
“Parece haver pouco lugar para o jogo no século XIX. Já no século XVIII o utilitarismo, a eficiência prosaica e o ideal burguês do bem-estar social (elementos que foram fatais para o barroco) haviam deixado uma forte marca na sociedade. Estas tendências foram exacerbadas pela revolução industrial e suas conquistas no domínio da tecnologia. O trabalho e a produção passam a ser o ideal da época, e logo depois o seu ídolo. Toda a Europa vestiu roupa de trabalho. Assim, as dominantes da civilização passaram a ser a consciência social, as aspirações educacionais e o critério científico. [...] A ciência analítica e experimental, a filosofia, o reformismo, a igreja e o estado, a economia, tudo no século XIX se revestia da mais extrema seriedade [...]. Jamais se tomou uma época tão a sério, e a cultura deixou de ter alguma coisa a ver com o jogo.”193
Entende-se que o homem, pouco a pouco, perde a sensação da importância do tempo
livre e deixa-se envolver pela urgência do trabalho. Ao envolver-se no trabalho intensamente,
esquece-se de si mesmo e tem uma percepção alterada da realidade.
Mas, segundo Domenico de Masi, a percepção do que realmente aconteceu no mundo
industrial entre os envolvidos no processo foi muito lenta e consolidou-se a partir de 1850.
“[...] quando se passou da sociedade rural à sociedade industrial,
foram necessários muitos anos para que pudesse ser apreciado o
núcleo da metamorfose que se tinha dado: nem Proudhon nem Owen,
que era um proprietário de fábrica, falam de ‘sociedade industrial’. Só
na segunda metade do século XIX se tomará consciência da totalidade
da mudança não apenas nos códigos, dos modos de produzir, ou da
maneira de iluminar as cidades.”
194“Por muito tempo a mudança é percebida apenas em partes pelos
estudiosos. Há quem, como Owen, denuncie a exploração; quem como
Fourier, fantasie utopias; outro ainda, como Smith enfatize o tamanho
das fábricas, e há quem, como Engels, Dickens e, em seguida Zola,
preste atenção na miséria dos trabalhadores. A consciência de que foi
toda a sociedade que mudou só aflora, aqui e acolá, em torno de 1850.
É então que se começa a falar não mais somente de indústrias, mas de
‘sociedade industrial’, e percebe-se a globalidade da mudança da
época que acabou de acontecer.”
195193 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. Tradução João Paulo Monteiro. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2007. (Coleção Estudos). pp. 212-213.
194 MASI, Domenico de. O ócio criativo. Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. pp. 71-72. 195 Ibidem. p. 49.
Somente para recordarmos, enquanto o trabalho era artesanal, o tempo e o espaço
cotidianos confundiam-se com a vida, assim como o tempo dedicado ao ócio e ao trabalho
não eram divididos e separados. De Masi explica-nos como era a estrutura da vida no mundo
artesanal.
“A primeira etapa é a do trabalho artesanal: trabalho e vida coincidiam totalmente. As oficinas eram muitas, separadas umas das outras, sem interação recíproca. Numa oficina faziam-se, digamos, vasos; numa outra, objetos de ferro batido. Elas funcionavam como microempresas, freqüentemente com localizações específicas, e é por isso que ainda hoje, em Roma, encontramos a via dei Baullari, que no dialeto romano significa literalmente ‘rua dos fazedores de baús’, ou via dei Sediari, isto é, ‘rua dos fazedores de cadeiras’, entre muitas outras.
Em cada uma dessas mini-empresas conviviam a casa e a oficina: o chefe da família também era o chefe da empresa, os trabalhadores eram os membros da família e os parentes, o crescimento de uma criança coincidia com o aprendizado do ofício, o tempo dedicado ao trabalho coincidia com o tempo da própria vida (por exemplo, se rezava, se cozinhava, se dormia nos mesmos lugares em que se trabalhava).
Naquele tipo de oficina se realizava um ciclo produtivo completo, desde o projeto até a execução e venda do objeto. O mercado era pequeno e praticava-se com freqüência diretamente a troca. No mesmo bairro se vivia, se trabalhava, se rezava na igreja ao lado e no botequim vizinho os homens iam jogar com os amigos.”196
Outro fator importante para que o homem dedicasse tanto tempo ao trabalho, além da
perda da importância do tempo livre, foram as recompensas advindas do consumo de bens
materiais até então não acessíveis à grande maioria da população. A.J. Veal em seu artigo
sobre a história do trabalho resume-nos o ocorrido.
“Fatores econômicos foram determinantes para a mudança no estilo de vida das massas. Enquanto a industrialização trouxe a distribuição da pobreza e a exploração dos trabalhadores, isto (a mudança no estilo de vida) não era sentido como verdade para todos: a pobreza urbana foi freqüentemente vista como preferível à alternativa rural. Os salários para trabalhadores qualificados eram historicamente altos. Uma característica da cultura do mundo não-industrial que os industriais achavam frustrante era a tendência dos empregados de trabalharem até eles obterem certa quantia de dinheiro, suficiente para as suas necessidades e depois pararem, às vezes desaparecendo do local de trabalho por extensos períodos – um fenômeno observado hoje em situações em que a moderna indústria é imposta a uma sociedade não-industrial, como nas minas da África do Sul. No entanto, salários mais altos também significavam que pelo menos alguns trabalhadores poderiam, por meio de trabalho árduo e longas horas de
196 MASI, Domenico de. O ócio criativo. Tradução de Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. pp. 191-
dedicação, melhorar as suas condições materiais. Além disto, os diversos produtos da indústria significavam que cada vez mais bens produzidos poderiam tornar-se acessíveis aos trabalhadores. O capitalismo começou a oferecer uma forma de prosperidade para as massas. A idéia de riqueza obtida por meio do trabalho árduo, particularmente no Novo Mundo, transformou os desejos e aspirações de muitas pessoas comuns. Não era mais necessário persuadir as massas que o trabalho era um dever moral ou para a glória de Deus, com as suas recompensas imediatas, trabalhar agora tinha a sua própria e crescente recompensa aqui na terra”.197