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3. O PARADOXO DO ÓCIO

3.4. O ELOGIO AO ÓCIO

Outro autor, Bertrand Russel (1872-1970), publica em 1935 O Elogio ao Ócio, no qual

questiona sua própria crença sobre o trabalho. O autor descreve-nos quais eram suas idéias

atuais, diferentes daquelas que tinha absorvido.

“Como muitos homens da minha geração, fui educado segundo os preceitos do provérbio que diz que o ócio é o pai de todos os vícios. E. como sempre fui um jovem virtuoso, acreditava em tudo o que me diziam, e foi assim que a minha consciência adquiriu o hábito de me obrigar a trabalhar duro até hoje’. Mas apesar de a consciência ter controlado as minhas ações, minhas opiniões sofreram uma verdadeira revolução. Eu acho que se trabalha demais no mundo de hoje, que a crença nas virtudes do trabalho produz males sem conta e que nos modernos países industriais é preciso lutar por algo totalmente diferente do que sempre se apregoou”.222

A reflexão principal de Bertrand Russell está centrada na busca de equilíbrio entre as

horas trabalhadas e as horas de lazer, pois o mundo moderno (industrial) já criara as

condições para que tal fato ocorresse.

Neste momento, iremos conhecer suas idéias com relação à dedicação exagerada ao

trabalho.

De acordo com Russell, a partir de idéias difundidas desde o início da civilização “a

idéia do dever, historicamente falando, foi um meio usado pelos detentores do poder para

convencer os demais a dedicarem suas vidas em benefício de seus senhores, mais do que aos

seus próprios interesses”.

223

“Do início da civilização até a Revolução Industrial, um homem era em geral capaz de produzir, trabalhando arduamente, um pouco mais do que o necessário para a própria subsistência e a de sua família, embora sua mulher trabalhasse não menos arduamente e os filhos também adicionassem trabalho logo que atingiam uma idade suficiente. O pouco que excedia a satisfação das necessidades básicas não ficava para os produtores, pois era apropriado pelos guerreiros e sacerdotes. Em épocas de escassez não havia excedente, mas os guerreiros e sacerdotes asseguravam-se os tributos de costume, o que levava muitos trabalhadores à morte por inanição. [...] Na Inglaterra, apesar da Revolução Industrial, ele [este sistema] se manteve em pleno vigor durante as guerras napoleônicas e persistiu até há cem anos, quando a nova

222 MASI, Domenico de (Org). A economia do ócio: Bertrand Russell, Paul Lafargue. Tradução de Carlos

Irineu W. da Costa, Pedro Jorgensen Júnior e Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante 2001. p. 49.

classe dos manufatureiros chegou ao poder. [...] Um sistema tão duradouro e de fim tão recente deve ter deixado marcas profundas no pensamento e na opinião dos homens. Muitas das idéias correntes acerca do caráter virtuoso do trabalho deriva [sic] desse sistema que, no entanto, dada a sua origem pré-industrial, não é adequado ao mundo moderno”.224

Entretanto, deve-se observar que Russell tem um pensamento anti-ciência e anti-

industrialização, como evidencia em seu ensaio “Ícaro, ou o Futuro da Ciência” (1924).

Russel defende uma jornada de quatro horas de trabalho para todos os homens, mas

observa que mesmo com as novas possibilidades oferecidas pela técnica o homem continua a

considerar o trabalho como dever. É conveniente entendermos como o autor raciocina para

chegar às quatro horas necessárias de trabalho a partir do acontecimento da Primeira Guerra

Mundial.

“A técnica moderna tornou possível a drástica redução da quantidade de trabalho necessária para garantir a todos a satisfação de suas necessidades básicas. Isto ficou claro durante a Primeira Guerra Mundial. Todos os membros das forças armadas, todos os homens e mulheres engajados na produção de munições, na espionagem, na propaganda de guerra e nas funções do governo ligadas à guerra foram sacados das ocupações produtivas. Apesar disso, o nível de bem-estar físico entre os assalariados não qualificados do lado dos aliados era mais alto do que antes e até do que depois da guerra. A guerra demonstrou claramente que, por meio da organização científica da produção, uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno é suficiente para que a população desfrute de um nível de conforto satisfatório. E se, ao final da guerra, tivesse sido preservada a organização científica criada para liberar os homens para a tarefa de lutar e municiar, e se a jornada de trabalho tivesse sido reduzida a quatro horas, estaria tudo certo. Em vez disso, foi restaurado o antigo caos – aqueles cujo trabalho era necessário voltaram às suas longas horas de trabalho, os demais foram deixados à míngua como desempregados. Por quê? Porque o trabalho é um dever, as pessoas não devem receber salários proporcionais à sua produção, mas à virtude demonstrada em seu esforço”.225

Vamos conhecer as idéias do autor com relação à educação para utilização do tempo

livre. É fundamental observamos que o autor considera que o tempo remanescente ao trabalho

poderia ser gasto pelo trabalhador da forma que ele julgasse mais conveniente, porém admite

que a “o uso judicioso do lazer é produto da civilização e da educação”.

226

“Quando sugiro a redução da jornada de trabalho para quatro horas, não quero com isto dizer que o tempo remanescente deveria necessariamente ser gasto em frivolidades. [...] Uma condição fundamental de um tal sistema

224 MASI, Domenico de (Org). A economia do ócio: Bertrand Russell, Paul Lafargue. Tradução de Carlos

Irineu W. da Costa, Pedro Jorgensen Júnior e Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante 2001. pp. 52-53.

225 Ibidem. pp. 52-53. 226 Ibidem. p.57.(grifo nosso)

social é que a educação ultrapasse as suas atuais fronteiras e adote como parte de seus objetivos o cultivo de aptidões que capacitem as pessoas a usar seu lazer de maneira inteligente. E não estou aqui pensando apensas em atividades supostamente ‘intelectualizadas’. As danças camponesas desapareceram, salvo nas áreas rurais mais remotas, mas ainda devem existir na natureza humana os impulsos que as fizeram florescer. Os prazeres das populações urbanas se tornaram fundamentalmente passivos: ver filmes, assistir a partidas de futebol, ouvir rádio e assim por diante. Isto ocorre porque as energias ativas da população estão totalmente absorvidas pelo trabalho. Se as pessoas tivessem mais lazer, voltariam a desfrutar prazeres em que participassem ativamente.”227

O filósofo inglês considera em seu raciocínio algo que Lafargue sequer menciona em

seus artigos sobre O Direito à Preguiça – a existência do “trabalhador intelectual”. Segundo

Josef Pieper, os termos “trabalho intelectual” e “trabalhador intelectual” são “os sinais que

indicam o último padrão da jornada histórica, e jornada histórica no sentido de que o moderno

ideal de trabalho foi definido na sua forma extrema e final – pois os termos são relativamente

modernos”. Comenta ainda o seguinte:

“A atividade intelectual costumou sempre ser considerada uma esfera privilegiada, e do ponto de vista do trabalhador manual especialmente, aparentava ser uma esfera em que ele não precisava trabalhar. Dentro desta esfera, a área de filosofia e a de cultura filosófica pareciam distantes do mundo do trabalho. Mas, atualmente, o total campo da atividade intelectual, sem exceção à área de cultura filosófica, tem sido sobrepujada pelo moderno ideal do trabalho e está à mercê dos direitos totalitários.”228

Não podemos deixar de citar um contemporâneo de Pieper, ligado à Escola de Frankfurt

– que tem como seus principais representantes Adorno e Horkheimer – Herbert Marcuse

criador de obras como A Ideologia da Sociedade Industrial e um pensador anti-

industrialização. Vejamos nas palavras de Suzana Albornoz como pensava Marcuse.

“Em A Ideologia da Sociedade Industrial, Herbert Marcuse, filósofo alemão radicado nos EUA, falecido há poucos anos, afirma que é particularidade distintiva da sociedade industrial desenvolvida sufocar as necessidades que exigem libertação – também do que é tolerável e compensador e confortável, enquanto mantém e desculpa o poder destrutivo e a função repressiva da sociedade afluente. Os novos controles sociais criam nas massas, através da propagana veiculada pelos meios de comunicação, uma carência irresistível para a produção e o consumo supérfluo. O trabalho entorpecedor, como cachaça para esquecer a falta de reais liberdades, se torna necessário mesmo ali onde não existe mais a necessidade real do trabalho, onde já há superprodução de riquezas. Por isto se tornam cada vez mais necessários

227 MASI, Domenico de (Org). A economia do ócio: Bertrand Russell, Paul Lafargue. Tradução de Carlos

Irineu W. da Costa, Pedro Jorgensen Júnior e Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante 2001. pp. 60 e 61.

228 PIEPER, Josef. Leisure: the basis of culture. Traduzido para o inglês por Alexander Dru. Introdução de

modos de lazer também entorpecedores, que dourem a pílula e ajudem a conformar-se com liberdades decepcionantes, como a de uma imprensa livre que se autocensura para se manter bem com os anunciantes ou a opinião pública predominante; ou com a pequena liberdade de escolher na estante do supermercado entre diversas marcas de engenhocas eletrodomésticas.

O trabalho, pois, segundo Marcuse, não seria apenas alienado no mundo de hoje, mas alienado. A servidão ao trabalho sem sentido serve para castrar os indivíduos como seres políticos e pensantes. A ocupação no trabalho de oito horas, mesmo quando quatro horas seriam mais do que suficientes para manter a produção de alimentos e produtos de necessidade real para a sobrevivência, tem o sentido de manter as massas ocupadas e obedientes, de abafar os protestos, e assim manter as inércias de um sistema que se auto- reproduz quase insensivelmente.”229

Quando Russell escreve O Elogio ao Ócio em 1935, Josef Pieper era um filósofo

alemão que já sentia na pele o que os “direitos totalitários” poderiam fazer com o ideal do

mundo do trabalho total. É só lembrarmos que esta era a década da ascensão ao poder do

partido Nazista, comandado por Adolf Hitler, um estadista que sempre alegou estar

seriamente preocupado com a “qualidade de vida” do trabalhador. Pieper e Russell sabiam

que havia algo a mais no “trabalho intelectual”, que não podia ser substituído pela “mera

ação” (como pensavam os ideólogos nazistas). A ação também poderia ter uma “implicação

social” que ajudaria na concretização de uma sociedade mais justa e igualitária:

“O trabalho como é entendido neste contexto significa a mesma coisa que serviço social. ‘Trabalho intelectual’ significaria aqui atividade intelectual tanto como contribuição social como contribuição a necessidade comum. Mas isso não é tudo o que está implícito nas palavras ‘trabalho intelectual’ e ‘trabalhador intelectual’. O real significado é aproximadamente este: como o ganhador de salário, o artesão e o proletário, o homem educado, o estudioso, também é um trabalhador, de fato um ‘trabalhador intelectual’, e ele também está ligado ao sistema social e tem a sua parte na divisão do trabalho; ele está alocado e tem seu lugar e função entre os trabalhadores; é um funcionário no mundo do ‘trabalho total’; ele pode ser chamado de especialista, mas é um funcionário. E este fato é o que realmente nos interessa e está por trás de nossas indagações com todo o seu colorido. Esse problema, é extremamente necessário que seja dito, não é somente teórico: é a raiz do problema.”230

Sem usar o termo “trabalho intelectual”, Bertrand Russell também apresenta-nos sua

visão do produto significativo produzido pela “classe ociosa” para a humanidade. Para ele, a

oportunidade do ócio pode incentivar a criatividade e o desenvolvimento de novidades.

“No passado havia uma pequena classe ociosa e uma grande classe trabalhadora. A classe ociosa desfrutava vantagens que não tinham qualquer

229 ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004. pp. 74-76.

230 PIEPER, Josef. Leisure: the basis of culture. Traduzido para o inglês por Alexander Dru. Introdução de

fundamento na justiça social, o que tornou essa classe inapelavelmente opressora, limitou seu sentido de solidariedade e levou-a a inventar teorias para justificar seus privilégios. Isso fez diminuir enormemente a sua excelência, mas não a impediu de ter contribuído para quase tudo o que hoje chamamos de civilização. Ela cultivou as artes e descobriu as ciências, escreveu os livros, inventou as filosofias e aperfeiçoou as relações sociais. Mesmo a libertação dos oprimidos foi geralmente iniciada a partir de cima. Sem a classe ociosa, a humanidade nunca teria emergido da barbárie.”231

Há uma distinção interessante que devemos apresentar com o objetivo de observar como

a idéia de ócio é percebida por Russell em diferentes situações.

“Há quem diga que o lazer só é prazeroso até certo ponto e que as pessoas não saberiam como preencher o seu dia se tivessem uma jornada de quatro horas. Considerar isto uma verdade no mundo moderno constitui uma condenação da nossa civilização. As coisas jamais foram assim. A antiga propensão para a despreocupação e o divertimento foi de certo modo inibida pelo culto da eficiência. O homem moderno acha que qualquer atividade deve ser exercida em prol de outras coisas, nunca da coisa mesma. Há, por exemplo, pessoas sisudas que condenam o hábito de ir ao cinema, dizendo que ele induz a juventude ao crime. Mas o trabalho necessário à produção dos filmes é tido como respeitável, porque é trabalho, e porque gera lucro. A noção de que atividade boa é aquela que produz lucro constitui uma completa inversão da ordem das coisas. O açougueiro que lhe vende carne e o padeiro que lhe vende pão são dignos de louvor, porque estão ganhando dinheiro. Mas se você come com deleite e vagar a comida que lhes venderam, você é um frívolo, a menos que só esteja comendo para ter energia para trabalhar. [...] O divórcio entre os fins individuais e os fins sociais da produção é o que torna tão difícil pensarmos com clareza num mundo em que a busca do lucro constitui o único incentivo ao trabalho. Pensamos demais na produção e de menos no consumo. Por isso, acabamos dando pouca importância ao desfrute e à felicidade e deixamos de avaliar a produção pela satisfação que ela proporciona ao consumidor.”232

Portanto, para o filósofo inglês, o ócio – e, por sua vez, o “trabalho intelectual” - é

fundamental para a evolução da humanidade, tanto do ponto de vista individual como social.

Ele defende que a cultura geral deve ser aliada da competência técnica para que novos

horizontes, novas concepções de vida abram-se como possibilidades de um melhor

aproveitamento do tempo livre e da vida prática.

“Além das situações em que cultura e utilidade imediata se podem combinar, o conhecimento que não contribui para a eficiência técnica possui diversas formas de utilidade indireta. Eu creio que muitos aspectos negativos do mundo moderno poderiam ser minimizados se houvesse mais incentivo a esse tipo de conhecimento e repúdio à procura insaciável da mera competência profissional. [...] Para que uma população ociosa seja feliz, ela

231 MASI, Domenico de (Org). A economia do ócio: Bertrand Russell, Paul Lafargue. Tradução de Carlos

Irineu W. da Costa, Pedro Jorgensen Júnior e Léa Manzi. Rio de Janeiro: Sextante 2001. p. 60.

deve ser uma população educada, e educada com uma visão de um deleite mental equivalente à da utilidade imediata do conhecimento técnico. Quando o componente cultural na formação do conhecimento é assimilado com êxito, ele forma o caráter dos pensamentos e desejos das pessoas, levando-as a se ocuparem, ao menos em parte, de temas amplos e impessoais, e não apenas de seus interesses imediatos. É muito difundida a suposição fácil de

que as capacidades adquiridas por meio do conhecimento serão usadas em benefício da sociedade. A concepção estreitamente utilitária da educação ignora a necessidade de os indivíduos serem tão bem treinados em seus

propósitos quanto em suas qualificações.”233