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ESPECIALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO DO INDIVÍDUO

1. DA AÇÃO À DESINTEGRAÇÃO DO INDIVÍDUO: Uma Exposição do Sentido do

1.9. ESPECIALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO DO INDIVÍDUO

vê envolvido com uma série de situações justificadas pelos “tempos modernos” em que vive.

Os momentos em que o personagem está em uma linha de montagem são um retrato fiel

do que entendemos por divisão do trabalho no chão de fábrica. Nas cenas ambientadas na

fábrica, temos como ação do personagem o “apertar de parafusos” de um produto qualquer. O

trabalho é compartilhado por outros dois personagens na linha de montagem, é repetitivo e

desgastante a ponto de encaminhar o principal personagem para o manicômio.

Os múltiplos efeitos negativos da divisão do trabalho estão ali registrados de forma

exacerbada e magistral.

Podemos citar entre os principais efeitos da divisão do trabalho, do ponto de vista do

trabalhador: 1) a intensificação da desigualdade inata dos homens, pois exige que o

trabalhador se torne especialista no processo que executa no trabalho e 2) o desenvolvimento

de certas habilidades necessárias ao trabalho faz com que o homem deixe suas outras

habilidades de lado.

Segundo Ludwig Von Mises, a mecanização também pode ser considerada um fator

intensificador dos efeitos da divisão do trabalho.

“A divisão do trabalho divide os vários processos de produção em tarefas mínimas, muitas das quais podendo ser realizadas por dispositivos mecânicos. Este fato tornou possível o uso das máquinas e provocou o assombroso progresso das técnicas de produção. A mecanização é fruto da divisão do trabalho, sua conseqüência mais benéfica, e não sua causa e sua fonte. A maquinaria especializada movida a motor só poderia ser empregada num ambiente social onde predominasse a divisão do trabalho. Cada avanço na direção do uso de máquinas mais especializada, mais refinadas e mais produtivas exige uma maior especialização das tarefas.”67

1.9. ESPECIALIZAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO DO INDIVÍDUO.

66 TEMPOS Modernos. Direção de Charles Chaplin. EUA: Charles Chaplin Productions, 1936.

67 MISES, Ludwig Von. Ação Humana: Um tratado de Economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de

Ao incentivar a cooperação na sociedade, a divisão do trabalho associada à mecanização

provoca uma maior produtividade. Mas quais são as conseqüências para o ser humano desta

mecanização e busca da maior produtividade?

De imediato, podemos citar a crescente necessidade de especialização, paralelamente à

fragmentação do indivíduo.

Qualquer que seja a sua atribuição ou função no mundo do trabalho, o homem lida com

estes dois movimentos o tempo inteiro. A especialização, fundamental para desempenhar seu

papel na fábrica ou no escritório, e a fragmentação do seu papel enquanto indivíduo.

A especialização atinge os vários níveis da realidade do mundo do trabalho.

Tomemos como exemplo a realidade de uma empresa/firma/organização que

basicamente pode possuir áreas ou processos de manufatura, vendas, inovação e realiza a

gestão do negócio de forma geral. Minimamente precisaremos de grupos de especialistas para

lidar com o trabalho da produção, com venda de produtos e a criação de novos produtos. E

ainda existe a necessidade de especialistas gestores do negócio que devem promover a

interação intrínseca aos vários grupos desta organização.

Ao extrapolarmos os efeitos desta especialização inerente ao mundo do trabalho,

encontramos o que diz Eugen Rosenstock-Huessy:

“A gestão do negócio é sempre mediadora entre as potenciais mudanças tecnológicas nos produtos, métodos e tempos de produção e a realidade das possibilidades para a divulgação e venda dos produtos. Como expressamos esta relação crucial por uma cruz, devemos posicionar os gestores no centro da indústria enfrentando as operações no campo, o vendedor enfrenta o mercado. Os engenheiros lidam com o futuro, fragilizado pelas mudanças tecnológicas. Os operários permanecem nos bastidores cumprindo rotinas estabelecidas novamente e novamente e novamente. A análise crucial de grupos não é, obviamente, restrito à indústria. Em todos os lugares eu observo que qualquer “grupo vivo”, família, exército, clube de futebol, nação, igreja não pode se ver livre da realidade de se dividir nestas quatro direções e delegar especialistas para lidar com o novo, o velho, o externo e a vida interior inerente ao grupo.”68

68 ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. The multiformity of man. Vermont, USA: Argo Books, 2000. pp. 4-5.

Nota de tradução de nossa autoria: O termo “futuro” utilizado no texto está relacionado à função do engenheiro, da mesma forma os termos “velho e rotina” estão relacionados à função dos operários, o termo “externo” está relacionado à função dos vendedores; e os termos “vida interior” e “relações” estão relacionados aos “gestores”.

A industrialização crescente, a partir do fim do século XIX fez com que a realidade

humana fosse totalmente transformada. A substituição do fator de produção da terra pela

fábrica criou novas perspectivas e formas de se relacionar com a vida.

Passamos a viver em um mundo em que a engrenagem e a máquina aceleram a

produção, aceleram o tempo e por isto provocam novos comportamentos no homem e na

sociedade em geral.

Nas palavras de Viktor E. Frankl:

“O final do século XIX e o começo do século XX deformaram completamente a imagem do homem, vendo-o predominantemente no seu vário estado de sujeição; quer dizer na sua hipotética impotência em face dos liames que o atam; assim, o biológico, o psicológico, o sociológico. E a liberdade verdadeiramente humana, a liberdade do espírito em face da natureza – a única, aliás, que constitui a essência do homem foi esquecida. Como se vê, surgiram, junto do psicologismo, um biologismo e um sociologismo que inculcaram simultaneamente e na mesma medida uma imagem desfigurada do homem.”69

A imagem desfigurada do homem citada acima está diretamente ligada à sua

fragmentação do homem, representada, principalmente, na sociedade industrial pela forma

como os salários são pagos. Várias formas de pagamento de salário coexistem: há pagamentos

mensais, quinzenais, diários, mas a novidade consiste no cálculo do trabalho ser realizado

pela quantidade de horas trabalhadas.

Encontramos também neste fato um componente de fragmentação do homem como

indivíduo. Ao existir a possibilidade do pagamento por horas trabalhadas, podemos dividir o

tempo do indivíduo de acordo, por exemplo, com as necessidades de produção da fábrica.

O tempo passa a ser o fator determinante da realidade da ação humana. O tempo

presente torna-se cada vez mais fragmentado, fragmentando assim o indivíduo. Instala-se um

novo calendário para o homem, que está dissociado do antigo tempo em que o plantio e a

colheita determinavam o seu tempo de trabalho e descanso.

Retomando o “Manifesto contra o Trabalho” do grupo Krisis citado anteriormente,

verificamos a mudança de enfoque da fragmentação do homem trabalhador.

69 FRANKL, Viktor E. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos da Logoterapia e análise existencial.

“ Somente o moderno sistema produtor de mercadorias criou , com seu fim em si mesmo da transformação permanente de energia humana em dinheiro, uma esfera particular, “dissociada” de todas as outras relações e abstraída dequalquer conteúdo, a esfera do assim chamado trabalho – uma esfera de atividade dependente, incondicionada e robótica, separada do restante contexto social e obedecendo a uma abstrata racionalidade funcional de “economia empresarial”, para além das necessidades. Nesta esfera separada da vida, o tempo deixa de ser tempo vivido e vivenciado; torna-se simples matéria prima que precisa ser otimizada: “tempo é dinheiro”. (...) A vida se realiza em outro lugar, ou não se realiza, porque o ritmo do tempo do trabalho reina sobre tudo” 70

Surge no tempo do trabalho um novo calendário e o homem precisa se posicionar de

forma diferente perante as novas realidades da vida. Eis uma diferente visão desse novo

posiocionamento humano conforme Eugen Rosenstock-Hussey.

“Em 1918, os trabalhadores marcharam nas ruas de Berlim com uma placa: “Oito horas de trabalho, oito horas de lazer, oito horas de sono”. Eles capitularam ao novo calendário; eles tinham tornado-se proletários reais. Eles agora mensuravam o seu próprio futuro de vida por métodos de custos, que não tem nada a ver com a vida de um homem, mas somente com a antecipação de horas para aquisição de uma parte de trabalho.”71

Outro componente observável da fragmentação do indivíduo, associado ao tempo, é a

instituição de turnos em uma fábrica. O tempo da produção é de 24 horas, portanto são

necessários três homens para suprir uma unidade do tempo disponível para a produção.

Nesta nova sociedade industrial “um homem” é visto como parte da produção. Como o

tempo de produção é interminável as horas de trabalho do homem devem estar disponíveis a

qualquer momento. Desta forma “todo individualismo no senso convencional é abolido.”

Vejamos em primeiro lugar de acordo com Eugen Rosenstock-Huessy e depois de acordo com

Viktor E. Frankl, como isto acontece:

“A representação do homem na indústria não pode ser adquirida pelo indivíduo. No trabalho técnico, o time é a unidade natural. Os três homens (representados pelos seus físicos) devem ser concebidos como uma unidade de trabalho, a menor molécula social possível. Nosso princípio de tempo, torna fácil observar o que “precursores” do espaço (fábrica) deliberadamente forçaram: aquele homem, ao entrar na fábrica é um terço de uma única força de trabalho que pode ser utilizado no sistema sem resultados desastrosos.”72

70 KRISIS, Grupo. Manifesto contra o Trabalho. Cadernos do LABUR. Tradução Heinz Dieter Heidemann .

São Paulo, Laboratório Geografia Urbana/FFLCH/USP, n.2, pp.27-28. Jul./99

71 ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. The multiformity of man. Vermont, USA: Argo Books, 2000. p. 22.

Tradução nossa.

“A relação natural do homem com o seu trabalho profissional, considerado como campo de possível realização criadora de valores e da realização única e plena de si mesmo, sofre muitas vezes um desvio em virtude das

circunstâncias dominantes no trabalho. Penso sobretudo nos homens que se

queixam de trabalhar oito ou mais horas por dia para um empresário, para os interesses dele, fazendo em série os mesmos movimentos, acionando sempre a mesma alavanca de uma máquina – num trabalho tanto mais exato e oportuno quanto mais impessoal e estandardizado. Evidentemente que, em tais circunstâncias, só se pode conceber o trabalho como simples meio para um fim, o fim de ganhar a vida, de ganhar os meios necessários para viver a vida propriamente dita.”73

Seguimos com as palavras de Viktor E. Frankl para falar da realidade do empregador:

“Mas o próprio empresário, o empregador, também não está sempre “livre” no seu

tempo livre; também nem sempre está dispensado de sofrer os mencionados desvios das

relações naturais do trabalho.”

74

Na grande maioria dos casos, mas não exclusivamente, é por intermédio do trabalho que

o homem realiza o seu sentido de vida, pois em “particular, o trabalho pode representar o

campo em que o ‘caráter de algo único’ do indivíduo se relaciona com a comunidade,

recebendo assim o seu sentido e o seu valor.”

75

O fato de se tornar especialista em sua função e “aceitar” a fragmentação existente na

vida devido ao trabalho não garantiu ao homem um emprego.

O profissional moderno fruto da divisão do trabalho, reconhece que a evolução

tecnológica faz com que novas fábricas apareçam decorrentes de novos produtos, tornando

outras fábricas obsoletas, e que a sua especialização pode ser substituída, a qualquer

momento, por uma máquina.

Da mesma forma, qualquer gestor de negócios ou empresário não garante a sua

perenidade no mundo dos negócios, pois sofre dos efeitos da evolução característica do tempo

em que vive.

O desemprego é uma realidade do mundo. O que o torna mais ou menos nefasto para a

sociedade é a forma como os homens lidam com esta realidade.

73 FRANKL, Viktor E. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos da Logoterapia e análise existencial.

Tradução de Alípio Maia de Castro. São Paulo: Quadrante, 2003. 4. ed. pp. 1-171. p. 162. (grifo nosso).

74 Ibidem p. 162.(grifo nosso). 75 Ibidem. p. 160.

Sendo o trabalho um meio, torná-lo fim único da vida deturpa o seu real valor e torna

insuficiente o valor da vida do ser humano.