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2. AS VIDAS INVENTADAS

2.8. A VOCAÇÃO DO TRABALHO MUNDANO

Acreditamos que a utilização da técnica da imprensa, o movimento humanista associado

ao Renascimento, a Reforma Protestante e os seus desdobramentos no mundo religioso no

século XVI e posteriores, representaram uma grande transformação para o mundo do trabalho.

Seus efeitos são apenas ilustrados e nunca exauridos no aqui exposto.

Estabelece-se uma nova ordem na informação e comunicação entre as pessoas de várias

profissões e, igualmente, um mundo mais secular no sentido de o homem se colocar em

posição central.

Os conceitos advindos da Reforma – de ascese intramundana por meio do trabalho –

advogam um novo sentido para o trabalho, diferente do tradicionalismo já existente.

Não se pretende aqui afirmar que vem da Reforma o conceito de capitalismo como

adotamos hoje. Ou se o “espírito do capitalismo” está vinculado ao protestantismo. Isto não é

o nosso objeto de estudo.

Pretende-se mostrar como o eixo da visão do trabalho mundano passa a ser visto após a

Reforma Protestante. E o conceito de vocação diferencia-se do significado anterior dado pelos

“homens letrados”.

Max Weber explica-nos o conceito de vocação. Apesar de longo, optamos por mantê-lo

no original devido à sua relevância para o tema do sentido do trabalho.

“Não dá para não notar que já na palavra alemã Beruf, e talvez de forma ainda mais nítida no termo inglês calling, pelo menos ressoa uma conotação religiosa – a de uma missão dada por Deus – e quanto mais enfaticamente acentuamos a palavra num caso concreto, mais ela se faz sentir. E, ao acompanharmos a palavra ao longo da história e através das línguas de diferentes culturas, constata-se em primeiro lugar que os povos predominantemente católicos ignoram uma expressão de colorido análogo para aquilo que (em alemão) chamamos Beruf (no sentido de uma posição na vida, de um ramo de trabalho definido), tal como ignorou a Antiguidade clássica, ao passo que ela está presente em todos os povos predominantemente protestantes. Constata-se, ademais, que aí não se acha implicada nenhuma peculiaridade etnicamente condicionada das respectivas línguas, como por exemplo a expressão de um “espírito do povo germânico”, mas que a palavra, em seu sentido atual, provém das traduções da Bíblia [...] Na tradução luterana da Bíblia, parece que ela foi usada pela primeira vez numa passagem do Eclesiástico (11, 20-21) no exato sentido que hoje lhe conferimos. Não tardou desde então a assumir o seu significado atual na língua profana de todos os povos protestantes, sendo que antes disso não se notava na literatura profana nenhum indício de semelhante sentido léxico, nem mesmo na prosa dos pregadores, com a única exceção, ao que parece, de um dos místicos alemães cuja influência sobre Lutero é conhecida. E assim como o significado da palavra, assim também – como é amplamente sabido – a idéia é nova, e é um produto da Reforma. Não que certos traços dessa valorização do trabalho cotidiano no mundo, inerente a este conceito de Beruf [vocação] não estivessem presentes já na Idade Média ou mesmo na Antiguidade... Uma coisa antes de mais nada era absolutamente nova: a valorização do cumprimento do dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a auto-realização moral é capaz de assumir. Isso teve sua conseqüência inevitável a representação de uma significação religiosa do trabalho mundano de todo dia e conferiu pela primeira vez ao conceito de Beruf [vocação] esse sentido. No conceito de

Beruf, portanto, ganha expressão aquele dogma central de todas as

denominações protestantes que condena a distinção católica dos imperativos morais em “praecepta” e “consilia” e reconhece que o único meio de viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade intramundana pela ascese monástica, mas sim, exclusivamente, em cumprir com os deveres intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual se torna a sua “vocação profissional” ... Ora a conduta da vida monástica é encarada não só como evidentemente sem valor para a justificação perante Deus, mas também como produto de uma egoística falta de amor que se esquiva aos deveres do mundo. Em contraste com isso, o trabalho profissional mundano aparece como expressão exterior do amor ao próximo... Trata-se, como se vê, de argumento essencialmente escolástico que logo é abandonado, cedendo o passo à referência cada vez mais enfática

ao cumprimento dos deveres intramundanos como a única via de agradar a Deus em todas as situações, que esta e somente esta é a vontade de Deus, e por isso toda profissão lícita vale muito e vale igual perante Deus.”134

Há aqui, portanto, uma novidade no sentido do trabalho diário, visto como vocação

dada por Deus, a melhor forma de “no meio do mundo” agradar a Deus.

Ilustramos ainda as explicações acima ao citar novamente Jacques Barzun que interpreta

Max Weber e Richard H. Tawney:

“Weber e Tawney fundaram suas teses em bases psicológicas e sociais. O protestantismo, ao deixar o crente em dúvida acerca de sua salvação, embora acenando com a possibilidade da graça, encoraja-o a agir como se já fosse um eleito – sério, zeloso, trabalhador incansável. O seu código moral faz dele um permanente calculista – o homem de negócios ideal. Na terra e para além dela, enfrenta o risco com fortaleza de ânimo, ao mesmo tempo em que adota todas as precauções maduramente pensadas. O católico, em comparação, é um acomodado, paga seu conforto espiritual com “obras” simbólicas, que, em sua grande maioria, não tem qualquer efeito prático na terra. Em vez de exaltar o trabalho como virtude, o católico vê-o como a maldição de Adão. Sua igreja condena como usura qualquer pedido de juros sobre empréstimos. E o homem modelo não é aquele que se realiza por meio do seu sucesso material; pelo contrário, pobreza e humildade são a marca da santidade.”135

Nesse momento, é importante realçarmos o conceito de vocação por julgarmos de

extrema importância para o “sentido do trabalho”. Apesar deste conceito possuir uma

profundidade maior e diferente no que tange à ascese intramundana iniciada na Reforma

Protestante, a vocação para exercer uma atividade – sabemos – é fundamental para dar sentido

a qualquer trabalho humano que seja exercido por qualquer pessoa, homem ou mulher de

negócios, empresário, professor, cientista ou um especialista.

Como vimos anteriormente, os homens letrados já diziam que a sua vocação era a busca

da verdade e do conhecimento, seguido pelos puritanos que viam como vocação o trabalho

feito para glorificar a Deus e ajudar o próximo.

Adicionaremos o conceito de vocação do cientista, característico dos desdobramentos

dos movimentos nos quais estava inserido o trabalho dos séculos XVI ao século XIX, que se

mantém até os nossos dias. De acordo com Max Weber, a vocação do cientista está

134 WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução José Marcos Mariani de

Macedo; revisão técnica, edição de texto, apresentação, glossário, correspondência vocabular e índice remissivo Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 71-73.

135 BARZUN, Jacques. Da Alvorada à Decadência: a história da cultura ocidental de 1500 aos nossos dias.

intimamente ligada à especialização e ao fato de conseguir algo que permaneça, já que o

progresso científico pressupõe uma evolução em que todas as coisas se tornam obsoletas

dentro de algum tempo.

“[...] Em nossos dias e referida à organização científica, essa vocação é determinada, antes de tudo, pelo fato de que a ciência atingiu um estágio de especialização que ela outrora não conhecia e no qual, ao que nos é dado julgar, se manterá para sempre. A afirmação tem sentido não apenas em relação às condições externas do trabalho científico, mas também em relação às disposições interiores do próprio cientista, pois jamais um indivíduo poderá ter a certeza de alcançar qualquer coisa de verdadeiramente valiosa no domínio da ciência sem possuir uma rigorosa especialização. [...] Só a especialização estrita permitirá que o trabalhador científico experimente por uma vez, e certamente não mais que uma vez, a satisfação de dizer a si mesmo: desta vez consegui algo que permanecerá. Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista. [...] Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantêm afastados da ciência, sem essa paixão, sem essa certeza de que ‘milhares de anos se escoaram antes de você ter acesso à vida e milhares se escoarão em silêncio’ se você não for capaz de formular aquela conjetura; sem isso, você não possuirá jamais a vocação de cientista e melhor será que se dedique a outra atividade.”136

Segundo Weber são dois os fatores incondicionais para a vocação: a paixão e a

inspiração, independentemente da profissão em que o indivíduo atue.

“Com efeito, para o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que ele possa fazê-lo com paixão.

Outra coisa, entretanto, é igualmente certa: por mais intensa que seja essa paixão, por mais sincera e mais profunda, ela não bastará, absolutamente, para assegurar que se alcance êxito. Em verdade, essa paixão não passa de requisito da “inspiração”, que é o único fator decisivo. Hoje em dia, acha-se largamente disseminada, nos meios da juventude, a idéia de que a ciência se teria transformado numa operação de cálculo, que se realizaria em laboratórios e escritórios de estatística, não com toda a ‘alma’, porém apenas com o auxílio do entendimento frio, à semelhança do trabalho em uma fábrica. Ao que se deve desde logo responder que os que assim se manifestam não têm, freqüentemente, nenhuma idéia clara acerca do que se passa numa fábrica ou num laboratório. Com efeito, tanto num caso como no outro, é preciso que algo ocorra ao espírito do trabalhador – e precisamente a idéia exata – pois, de outra forma, ele nunca será capaz de produzir algo que encerre valor. Essa inspiração não pode ser forçada”.137

Desta forma chegamos aos requisitos essenciais para atuar-se em uma profissão com

vocação: paixão e inspiração, além de, obviamente, muito trabalho.

136 WEBER, Max. Ciência Política: Duas Vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da

Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2007. p. 24-25. (grifos do autor)

137 WEBER, Max. Ciência Política: Duas Vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da

Devemos ter em mente o sentido da vocação como o trabalho que a pessoa sente prazer

em realizar. Felizes são os homens para nós que podem trabalhar de acordo com a sua

vocação porque neste caso seu trabalho se torna mais “leve”, pois é feito com dedicação e

paixão e neste caso não é somente trabalho, mas também “diversão”.