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2. AS VIDAS INVENTADAS

2.1. A REALIDADE “FABRICADA”

O filósofo José Ortega y Gasset em seu livro já citado “Meditación de la técnica y otros

ensayos sobre ciencia e filosofia” comenta sobre a perspectiva intrínseca do ser humano na

criação da técnica.

Assim como Ludwig Von Mises, segundo Ortega, é o desconforto com o mundo ao seu

redor que faz com que o homem invente novas formas de adaptar-se à realidade que lhe é

apresentada.

“O homem é essencialmente um insatisfeito e este fato – a insatisfação humana – é o melhor que o homem possui, precisamente porque o homem busca ter as coisas que não havia tido com o objetivo de satisfazer-se. Esta insatisfação que, várias vezes, é traduzida por desconforto com o mundo ao seu redor faz com que o homem reflita, movimente-se, intua e crie.

O homem, entretanto, não aceita sua circunstância senão somente que está submergido nela, recolhe-se e reflete. Ocupa-se, então, com coisas que não são imperativas do seu cotidiano ou necessidades de sua circunstância. Neste ato de recolher-se e refletir inventa e transforma o mundo que está ao seu redor, reforma sua circunstância ou a natureza e executa um segundo repertório de atos: faz fogo, constrói uma casa, cultiva um campo e produz um automóvel.”96

O filósofo ainda nos apresenta a definição do que é a técnica. Em sua opinião, todos os

atos técnicos e invenções possuem uma estrutura comum. Esta estrutura comum está ancorada

96 ORTEGA y GASSET, José. Meditacion de la técnica: y otros ensayos sobre ciencia y filosofía. Madrid:

na “criação” daquilo que não existe na natureza, mas que, de alguma forma, antecipamos sua

necessidade.

“Não importa que na circunstância do momento presente não haja fogo. Produzimos, em outras palavras, no momento presente, um esquema de atos que previamente havíamos inventado de uma vez e que permanece para sempre. Esse procedimento consiste constantemente na criação de um objeto ou aparato, cujo simples funcionamento nos proporciona aquilo que julgávamos necessário. Desta forma são os dois palitos e a fagulha com que o homem primitivo faz fogo, ou a casa que constrói que o separam do ambiente extremamente frio.

Destas ações resultam esses atos que modificam ou reformam a circunstância da natureza, torna-se possível que exista na natureza aquilo que não existia – seja o que não existe aqui e agora quando se necessita, seja o que em absoluto não existia.

O homem produz estes atos, invenções e criações que são chamados atos técnicos. O conjunto destes atos é chamado de “a técnica.” 97

Portanto, de acordo com o que vimos até aqui, podemos definir técnica como a reforma

que o homem impõe à natureza ou ao mundo ao seu redor com o objetivo de satisfazer as suas

necessidades. E ressaltamos que, a técnica é o contrário da adaptação do sujeito ao meio, é, na

realidade, a adaptação do meio ao sujeito para o que o homem obtenha o bem estar.

Aparentemente este bem estar proporcionado pela invenção tem uma característica de

supérfluo, porém depois de incorporado torna-se parte necessária da vida humana.

“[...] agora sabemos que as necessidades humanas são objetivamente supérfluas e que somente se convertem em necessidades para quem necessita do bem estar e para quem viver é, essencialmente, viver bem. Por isso, o animal é “a-técnico”: se contenta em viver com o objetivamente necessário para o simples existir. Desse ponto de vista da simples existência o animal é insuperável e não necessita da técnica. Mas o homem é homem porque para ele existir significa desde agora e sempre: bem estar. Por isso, é originariamente técnico, criador do supérfluo.”98

Segundo Ortega y Gasset, homem, técnica e bem estar são, em última instância,

sinônimos. E o processo de criação humana é contínuo.

“Basta que se mude um pouco substancialmente o perfil do bem estar que cerca o homem, que sofra alguma mutação a idéia da vida – a partir da qual e

97 ORTEGA y GASSET, José. Meditacion de la técnica: y otros ensayos sobre ciencia y filosofía. Madrid:

Alianza Editorial S.A., 2004.. p. 28. Tradução nossa.

para qual o homem faz tudo o que faz – para que a técnica tradicional tome outros rumos.”99

O homem, então, passa a refletir e a questionar, perguntando-se como poderia alterar

novamente esta realidade e produz “atos técnicos”.

“Ao achar a resposta, naquele momento, diante daquele contexto, ele

(o homem) se põe a produzir “atos técnicos” que correspondem a um

plano de atividades para o qual dedica esforço, primeiro para inventar

e depois executar um plano de atividades que permita, em primeiro

lugar, assegurar a satisfação das necessidades essenciais; em segundo

lugar, obter satisfação dessas necessidades com o mínimo de esforço;

e finalmente em terceiro lugar, criar possibilidades completamente

novas, produzindo objetos que não há na natureza do homem. Assim

foi e tem sido com o navegar, o voar, o falar, a radiocomunicação.”

100

O homem muda novamente sua realidade ao criar novas possibilidades e não se dá conta

que se esforça precisamente para economizar esforço.

Obviamente, a técnica é um esforço muito menor com o qual evitamos um esforço

muito maior e, portanto, algo perfeitamente claro e razoável. Essa característica está presente

em qualquer invenção desde a Idade Média até os nossos dias. A título de ilustração,

tomaremos uma parte do texto de Marc Bloch sobre o advento e conquistas do moinho d’água

que demonstra este fato:

“Em toda a análise de nossas velhas sociedades rurais, como também de nossas burguesias – tão freqüentemente originadas do campesinato das pequenas profissões – o moleiro, ao lado do estalajadeiro ou do mercador de gado tem seu lugar assegurado. Graças ao espírito engenhoso que, outrora, pela primeira vez, confiou a mó às “ninfas” das águas.

Mas, é sobretudo na história do instrumental humano que a iniciativa deste anônimo se inscreve como uma grande data. As gerações que nos precedem imediatamente e a nossa própria, assistiram a esta prodigiosa transformação nos transportes: a tração animal cedendo lugar a formas de energia puramente inorgânicas. Assim foi também, aproximadamente, a revolução produzida em um outro tipo de atividade, pelo surgimento do moinho d’água.

Porém, nesta progressiva substituição do mundo animado, cujo desenvolvimento resume talvez o essencial da evolução técnica (veja-se o ferro substituindo a madeira; a hulha, o carvão vegetal; os corantes, a cochinilha ou o índigo); neste controle que o homem exerce sobre as forças naturais profundas, de forma cada vez mais direta, sem passar por intermédio

99ORTEGA y GASSET, José. Meditacion de la técnica: y otros ensayos sobre ciencia y filosofía. Madrid:

Alianza Editorial S.A., 2004.. p. 27.Tradução nossa.

do transformador animal; neste processo, a etapa ultrapassada pouco antes do nascimento de Cristo foi, em um sentido, a mais decisiva de todas. Pois, a força então dominada estava entre as mais familiares e as mais fáceis de utilizar. Como também entre as mais potentes: a mesma em que hoje nossas turbinas são aplicadas para captar. Porque o ser organizado, cujo esforço era assim poupado, era tanto o homem como o animal. Enfim, porque era a primeira vez. Por isso, aí se permaneceu em suma, até a caldeira a vapor [...]”101

A vida humana transcende, dessa forma, a realidade natural. Não é dada como os atos

mais simples da natureza, senão o que se faz da natureza. E, este fazer a vida, criar a vida,

começa por ser a invenção da vida – a vida inventada.

A técnica existe, portanto, para dar vazão a uma necessidade intrínseca do homem – de

se satisfazer e buscar o seu bem estar – de viver a vida humana inventada.

Assim, entendemos uma das principais motivações humanas para modificar o mundo e

criar uma nova realidade por meio da técnica.