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A ideia de esquecimento como fundamento para

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 33-37)

1. DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO LIMITE À

1.1. A ideia de esquecimento como fundamento para

O fluir do tempo produz efeitos jurídicos.

Verifica-se o vínculo entre tempo e Direito quando se buscando findar disputas futuras, determina-se encerrar no passado possíveis conflitos, como ocorre na anistia e na concessão de graça. Esta relação também é evidenciada, por exemplo, em questões como prescrição, decadência, período máximo para o armazenamento de informações em bancos de dados, reabilitação criminal.

E é comum vincular o direito ao esquecimento a todos esses temas, atribuindo-se-lhe grande amplitude.

Roseline Letteron (1996, p. 389/390) afirma que a primeira função do direito ao esquecimento é justamente a proteção dos

interesses estatais, por exemplo, quando se está diante da anistia e se busca garantir a coesão e a paz social.910

Tempo e Direito encontram-se, portanto, quando o assunto é “justiça de transição”, já que anistia, prescrição e graça são elementos constantes para a construção de uma nova ordem, após um período de exceção11.

No Brasil, com o objetivo de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, a Lei n. 12.528/2011 criou a Comissão Nacional da Verdade. Nos termos do art. 1º da referida lei, a finalidade é a “de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.” Deste modo, acredita-se que se buscou fomentar a discussão e de se

                                                                                                               

9 Para a autora, a segunda função está em atribuir ao indivíduo o direito de

obter um silêncio definitivo sobre o seu passado, configurando-se, assim, um direito da personalidade.

10 Em francês, no texto original. Ao longo do presente estudo, valeu-se da

tradução livre para todas as citações em idioma estrangeiro.

11

Hélène Ruiz Fabri (2007, p. 16) em estudo sobre “instituições de clemência”, que incluem justamente as nominadas anistia, prescrição e graça, faz a conexão com um direito ao esquecimento aplicado através de medidas verticais, estatais, tomadas pela autoridade pública com o objetivo de atender uma política criminal e mesmo de se alcançar uma paz social, mas, imediatamente, questiona acerca dos direitos das vítimas. Ela (2007, p. 17) afirma que a questão concentra-se muito mais no modo como são empregadas estas instituições de clemência e no eventual abuso, do que propriamente na sua existência, devendo- se pensar em critérios que permitam apreciar se são aceitáveis ou, ao contrário, se são tóxicas, apontando (2007, p. 26), por exemplo, para a necessidade de se avaliar a gravidade dos crimes, o contexto histórico, os autores da medida e os seus destinatários. Como aponta Della Morte (2007, p. 77/78), a anistia aparenta, atualmente, viver uma forte crise de identidade. Concebida como um instrumento do direito disposto a governar o tempo e pensada como uma moeda de troca nos processos de transição, a anistia passou a ser questionada pelo próprio Estado, que se manifesta (in)clemente com a sua própria clemência. Elisabeth Lambert Abdelgawad e Kathia Martin-Chenut (2007, p. 101/102), em análise sobre a prescrição, reconhecem ser, antes de mais nada, uma medida de interesse social. Em um contexto de Direito Internacional de Direitos do Homem, a questão, todavia, também liga-se ao direito à memória, à verdade, ao direito de reparação da sociedade e da vítima, bem como, de forma mais ampla, com a questão da justiça, da luta contra a impunidade, da garantia da paz e da segurança internacional, impondo-se, inclusive, um estudo sobre a imprescritibilidade.

retirar as memórias de um espaço clandestino, pois o esquecimento, em tal contexto, mostra-se prejudicial para a democracia.12

Paul Ricoeur (2007, p. 460-462) trata da questão da anistia, apontando para a sua origem, o decreto de Atenas de 403 a. C., em que se proibiu recordar os crimes cometidos pelos dois partidos, exigindo-se, para tanto, juramento individual dos cidadãos. Cuida-se, assevera o autor, de um esquecimento por imposição, do qual se valem democracias modernas, sob a justificativa da paz social. Porém, indica que, quanto a isto, há um problema filosófico. Ele questiona se a anistia não é prejudicial à verdade e à justiça e, ainda, qual fronteira entre anistia e amnésia.13

François Ost (2005, p. 153) em “O tempo do Direito” ao tratar do tema “perdão e o desligamento do passado” apresenta o esquecimento como algo ameaçador, contudo necessário. Em uma análise não jurídica, ele afirma que o “esquecimento é necessário como o repouso do corpo e a respiração do espírito” .

Ost (2005, p. 161/162) alerta, todavia, para o esquecimento- falsário e para o esquecimento-recalque. No primeiro, há uma imposição de uma História oficial mentirosa com o objetivo de legitimar um regime ou uma ideologia. No segundo, busca-se a amnésia coletiva a fim de apagar o sofrimento imposto pelos vencedores aos vencidos e às vítimas de guerras e de “conquistas”, ignorando-se, com isso, os genocídios, massacres e crimes contra a humanidade.

Para se avaliar as demais situações em que o tempo impacta o Direito e uma defesa do esquecimento do passado é operada, a seguir apresentam-se alguns destaques da doutrina nacional.

                                                                                                               

12 Em 10/12/2014, em cerimônia no Palácio do Planalto, foi entregue à

Presidenta Dilma Rousseff o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pelos membros José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Pedro Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso. O relatório final está disponível em http://www.cnv.gov.br/

13 Nas palavras de Paul Ricoeur (2007, p. 460-461): “É obviamente útil – é a

palavra justa – lembrar que todo mundo cometeu crimes, pôr um limite à revanche dos vencedores e evitar acrescentar os excessos da justiça aos do combate. Mais que tudo, é útil, como no tempo dos gregos e dos romanos, reafirmar a unidade nacional por uma cerimônia de linguagem, prolongada pelo cerimonial dos hinos e das celebrações públicas. Mas o defeito dessa unidade imaginária não seria o de apagar da memória oficial os exemplos de crimes suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado e, ao privar a opinião pública dos benefícios do dissensos, de condenar as memórias concorrentes a uma vida subterrânea malsã?”

Sidnei Agostinho Beneti (1994, p. 299) faz referência ao direito ao esquecimento ligando-o à fluência do prazo prescricional. Na verdade, ele remete a um estudo de Francisco Rezek, então Ministro do Supremo Tribunal Federal, criticando a existência de crimes imprescritíveis na CRFB, que, portanto, teria ignorado a influência do fator tempo sobre o processo penal.

Antonio Rulli Júnior e Antonio Rulli Neto (2012, p. 420-425) fundamentam o direito ao esquecimento na dignidade humana e também na inviolabilidade pessoal (art. 5o, X da CRFB e artigos 93 e 748 do CPP) e sustentam (2012, p. 425) que é a esfera penal quem oferece a mais fácil visualização, já que os registros contra o condenado não podem ser utilizados permanentemente contra ele.

Para Bucar (2013, p. 9), o direito ao esquecimento conecta-se diretamente ao controle temporal dos dados pessoais, já que é imperativa a possibilidade de mudar ao longo da vida, alterando-se o comportamento e a própria história, viabilizando, assim, um futuro livre. Para ele, inclusive, um exemplo do reconhecimento legal desta característica humana está na limitação do tempo de inscrição nos bancos de restrição ao crédito, bem como, na impossibilidade de se ter acesso às informações sobre o cumprimento de pena pelo condenado, conforme o art 748 do CPP, que trata da impossibilidade de se referir a ela na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros, exceto quando requisitadas por juiz criminal, o que se estenderia, conforme jurisprudência14, ao registro nos terminais dos Institutos de Identificação Criminal, dos dados pertinentes aos inquéritos arquivados; às ações penais trancadas; às absolvições transitadas em julgado; às decisões de extinção da punibilidade em virtude da prescrição; e as próprias condenações se já advinda a reabilitação.

Acredita-se, porém, que o direito ao esquecimento não deve ser apontado como elemento justificador de todos estes assuntos (prescrição, decadência, armazenamento de informações negativas em bancos de dados, reabilitação criminal, anistia, graça, etc). Isto, primeiramente, porque o tempo somente será, juridicamente, um estabilizador social se uma norma atribuir-lhe esta condição. Deste modo, esperar que exista uma acomodação dos conflitos porque os dias ou os anos passaram e que o esquecimento ocupou, naturalmente, o lugar das perturbações é, por certo, equivocado. E ainda que existente

                                                                                                               

14 Como exemplo, Daniel Bucar (2012, p. 11) cita o acórdão do Superior

Tribunal de Justiça – STJ, 5a Turma, RMS 33.300/RJ, Relatora Ministra Laurita

previsão legal, e para os referidos institutos ela existe, entende-se que a conexão destes ao esquecimento é inadequada, pois a fluência de um prazo não vai necessariamente acarretar no apagamento das memórias. 15

Essa ligação entre tempo, esquecimento e Direito vem sendo estendida para tolher o exercício da liberdade de expressão. E é sobre esta questão que, a partir do tópico seguinte, os esforços concentrar-se- ão.

1.2. O direito ao esquecimento como fator restritivo à liberdade de

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 33-37)