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Inexistência do direito ao esquecimento no ordenamento

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 184-190)

3. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O PASSADO

3.4. Inexistência do direito ao esquecimento no ordenamento

licitamente é comunicação protegida pela CRFB de 1988

Considerando as razões de proteção e a noção de valor expressivo apresentadas acima, não é difícil de se concluir que narrar o passado, em geral, é uma comunicação protegida.

O estudo do passado, certamente, promove a democracia, verdade, conhecimento, autonomia de consciência e tolerância.

                                                                                                               

248 A análise do conteúdo liga-se, portanto, ao que se optou denonimar como um

limite material. No último capítulo, ao exame do limite material será apresentado um limite instrumental.

Assim, genericamente, em um plano teórico, o direito ao esquecimento representa uma ameaça à liberdade de expressão.

De qualquer maneira, é preciso investigar, de forma específica, qual a opção feita pelo ordenamento jurídico brasileiro, em especial, o que foi estabelecido na constituição. Cabe, então, formular o seguinte questionamento: há algum dispositivo que faça previsão expressa de um “direito ao esquecimento”, seja nomeando-o como tal ou mesmo estabelecendo a proibição da comunicação de um fato em função de ele “pertencer” ao passado?

A primeira constatação a ser feita é que inexiste qualquer norma que disponha expressamente sobre um direito ao esquecimento como um fator limitante da liberdade de expressão no ordenamento jurídico brasileiro.

Advirta-se que, e é bem revelador do tom nada democrático de referido direito, a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67), não recepcionada pela CRFB de 1988, conforme decisão proferida no jugalmento da ADPF n. 130, determinava em seu art. 21, § 2o que “constitui crime de difamação a publicação ou transmissão, salvo se motivada por interesse público, de fato delituoso, se o ofendido já tiver cumprido pena a que tenha sido condenado em virtude dele”. Ainda que a expressão “interesse público” ampliasse consideravelmente as hipóteses de não aplicação do dispositivo, reconhece-se que já houve, no Brasil, uma determinação legal impositiva do esquecimento.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é enfática ao garantir que a manifestação do pensamento é livre, proibindo o anonimato (art. 5o , IV da CRFB). E é peremptória ao vedar toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 3o) e mesmo qualquer tipo de licença a fim de garantir a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5o, IX).

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou de forma muito explícita sobre a centralidade da liberdade de expressão para um Estado Democrático de Direito. Com destaque para as decisões proferidas no julgamento da ADPF n. 130 e da ADI n. 4815.

Já na ementa da ADPF n. 130, Relator Ministro Ayres Brito, foi firmado que “não há liberdade de imprensa249 pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário,

                                                                                                               

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pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica”.

No corpo do acórdão, o relator aprofunda:

Pois é definitiva lição da História que, em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica. É a trajetória humana, é a vida, são os fatos, o pensamento e as obras dos mais acreditados formadores de opinião que retratam sob todas as cores, luzes e contornos que imprensa apenas meio livre é um tão arremedo de imprensa como a própria meia verdade das coisas o é para a explicação cabal dos fenômenos, seres, condutas, ideias. Sobretudo ideias, cuja livre circulação no mundo é tão necessária quanto o desembaraçado fluir do sangue pelas nossas veias e o desobstruído percurso do ar pelos nossos pulmões e vias aéreas. (STF, 2009, p. 32)

A Ministra Carmem Lúcia, relatora da ADI n. 4815, questionadora da constitucionalidade do artigo 20 do Código Civil no que tange à necessidade de autorização do biografado, em seu voto, resume o que é censura.

Censura é forma de controle da informação: alguém, não o autor do pensamento e do que quer se expressar, impede a produção, a circulação ou a divulgação do pesamento ou, se obra artística do sentimento. Controla-se a palavra ou a forma de expressão do outro. Pode-se afirmar que se controla o outro. Alguém – o censor – faz-se senhor não apenas da expressão do pensamento ou do sentimento de alguém, mas também – o que é mais – controla o acervo de informação que se pode passar a outros.” (STF, 2016, p. 69)

Não é admissível, de conseguinte, que o Estado, seja através do executivo, legislativo ou judiciário, invista-se da condição de censor e proíba a manifestação da ideia, dizendo o que pode ou não pode ser expressado.

Desse modo, é ampla a noção de censura adotada, podendo ser prévia ou correspondente a sanções posteriores (quando, por óbvio, indevidas) administrativas (por exemplo, apreensões, proibição de exibições após a estreia, etc) e judiciais (responsabilidade civil e penal).

E embora a proibição de censura prévia seja o primeiro alvo dos defensores da liberdade de expressão, a condenação a posteriori é igualmente preocupante. Assim, o estudo da responsabilidade civil revela toda a sua importância, seja no que tange a condenações impróprias, quando a circulação da comunicação era legítima, seja no que concerne a condenações com valores muito altos, especialmente, quando o objeto é a reparação de danos morais.250

Dessa forma, além da fácil constatação de que, no Brasil, a tutela constitucional da liberdade de expressão garante a possibilidade de comunicações versarem sobre fatos do passado que se tornaram públicos licitamente, pois que vedada a censura e livre a manifestação do pensamento e por ter sido assegurado o direito de acesso às informações pelo art. 5o, XIV da CRFB, cumpre destacar certas previsões que confirmam a inadequação do suposto direito ao esquecimento à ordem jurídica nacional.

O direito ao esquecimento é, portanto, inconciliável com a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, III da CRFB); com o dever estatal de garantir o exercício da cultura e ter acesso às fontes da cultura nacional (art. 215 da CRFB); e com próprio patrimônio cultural brasileiro que é constituído de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216).

Ademais, não se pode olvidar o passado recente brasileiro de silêncio imposto, de verdades oficiais, de dados suprimidos, enfim, de censura burocratizada e absurda. Falar em um direito ao esquecimento neste contexto soa, no mínimo, preocupante.

E inexiste a possibilidade de se dizer que a dimensão coletiva estará preservada, que a memória e a História restarão íntegras e que liberdade de expressão, artística e científica não serão violadas. Tal argumento fundamenta-se na afirmação de que o direito ao

                                                                                                               

250 “Mas sem que tal reparação financeira descambe jamais para a exacerbação,

porquanto: primeiro, a excessividade indenizatória já é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa; segundo, esse carregar nas cores da indenização pode levar até mesmo ao fechamento de pequenos e médios órgãos de comunicação social, o que é de todo impensável num regime de plenitude da liberdade de informação jornalística. » (ADPF n. 130, Rel. Min. Ayres Brito, p. 48)

esquecimento tutela o indíviduo, atingindo tão-somente os fatos destituídos de interesse público. Trata-se, porém, de um processo perigoso e mesmo impraticável, pois como se reforçará no último capítulo, inexiste história apenas com “personagens principais” e circunscrita aos “grandes feitos”.

Após períodos de exceção, a opção atual do Brasil é pela abertura, pela liberdade, pela informação. As decisões do STF, como já salientado (especialmente na ADPF n. 130 e ADI n. 4815), mostram-se atentas à importância da liberdade de expressão e aos reflexos negativos de sua potencial restrição. Também é de certo modo tranquilizador que a legislação brasileira tenha nos últimos tempos privilegiado a informação e a transparência, por intermédio, por exemplo, da Lei do Habeas Data ( Lei n. 9.507/1997), Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011), Lei do Marco Civil da internet (Lei n. 12.965/2014, com destaque para o art. 3o, I que trata sobre a liberdade de expressão) e a criação das Comissões da Verdade, Nacional e Estaduais, oferecendo suporte para não se acreditar na consagração, ao menos expressa, de um direito ao esquecimento. Este Brasil, felizmente, distancia-se, do Estado que foi condenado pela Corte Interamericana de Direito Humanos no caso “Gomes Lund e outros”251 justamente por restrição a informações sobre as circunstâncias dos desaparecimentos das vítimas da Guerrilha do Araguaia.

Sustenta-se que referida fundamentação já seria suficiente para formar o convencimento necessário e esvaziar os argumentos favoráveis ao direito ao esquecimento.

Todavia, na doutrina, como já apresentado no capítulo anterior, são muitos os adeptos da restrição à abordagem de determinados fatos do passado.

E é extremamente inquietante observar que após os precedentes do STJ, o direito ao esquecimento tenha se tornado naquela corte um parâmetro para os conflitos envolvendo liberdade de expressão:

Esta Quarta Turma, analisando os contornos de eventual ilicitude de matérias jornalísticas, abraçou a tese segundo a qual a liberdade de imprensa, por não ser absoluta, encontra algumas

limitações, como por exemplo: "(I) o

compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da

                                                                                                               

251 Disponível em

personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi)" (REsp 801.109/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 12/06/2012). Também esta Corte, realizando

juízo de ponderação, acrescentou o traço da ausência de contemporaneidade como possível limitação da atividade informativa da imprensa, quando a notícia trouxer à tona fatos passados, em detrimento da dignidade humana e privacidade; reconheceu-se, assim, o direito ao esquecimento (REsp 1.335.153/RJ e Resp 1.334.097, ambos de minha relatoria, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013). (grifou-se) (REsp 12977787/RJ, Rel

Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 17/04/2015.

Na linha do que já se apresentou, reconhece-se que há manifestações que não tem valor expressivo e as violadoras de direitos não devem ser tuteladas. E, por óbvio, não é porque o fato ocorreu no passado que tudo poderá ser revelado.

A Constituição do mesmo modo que tutela a liberdade de expressão, dispõe sobre a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (art. 5o, X) e estabelece que, em tais casos, é devida a indenização por dano material, moral ou à imagem, além de se assegurar o direito de resposta proporcional ao agravo (art. 5o, IV). Reconhece-se que a convivência entre tais direitos e a liberdade de expressão é, de fato, complexa e trata-se de problema que exige sobremaneira do intérprete.

Porém, recorde-se, o direito ao esquecimento visa proibir que se volte a falar de um assunto já publicizado licitamente, ou seja, que, à época, não teve a divulgação contestada. Como bem se detalhou no primeiro capítulo, a celeuma eclode com o fluir do tempo que teria o condão de tornar o já público em algo sigiloso, fazendo desaparecer o valor expressivo da comunicação, o que é incompreensível, e compelindo o Estado a sancionar quem ousou relembrar um assunto com suposto potencial lesivo para a vida presente do envolvido.

Enfim, a salvaguarda da liberdade de expressão oferece elementos suficientes para afastar a possibilidade de um direito ao esquecimento. Na presente pesquisa, ao lado do fundamento da

liberdade de expressão, recorde-se que deve ser somado o exame crítico dos argumentos doutrinários e as linhas interpretativas dos precedentes do STJ, que identificam suporte normativo para o direito ao esquecimento, efetuado no capítulo anterior.

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 184-190)