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Conceito de liberdade de expressão

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 164-170)

3. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O PASSADO

3.1 Conceito de liberdade de expressão

É próprio da condição humana o desejo e mesmo a necessidade de manifestar os pensamentos, comunicando-se, buscando informações, apresentando dados, ideias, críticas e opiniões, produzindo arte, cultura e conhecimento, mediante o uso da palavra oral e escrita e também por outros mecanismos de expressão, como gestos, comportamentos e, inclusive, através do silêncio.

Para além da constatação de se tratar de um processo biológico e de um fenômeno social, deve-se avaliar quais os anseios políticos ligados à exteriorização do pensamento, bem como, consequentemente, cabe investigar qual o tratamento jurídico dado ao “expressar-se”.

Não há qualquer dúvida que a configuração de uma sociedade plural, democrática, questionadora e transparente está ligada intrinsecamente a um espaço de livre expressão.

Ainda que se possa, e mesmo se deva, questionar sobre o “quão livre somos”, como as notícias são produzidas e transmitidas, qual o desequilíbrio de forças entre os meios de comunicação, quais as influências e interesses exercidos sobre as informações históricas e pesquisas científicas, o fato é que somente a ampliação da liberdade de expressão, e não a sua redução ou supressão, concederá as forças necessárias para lidar também com tais indagações.

Como afirma Raoul Vaneigem (2003, p 15), “não há bom nem mal uso da liberdade de expressão, mas sim um uso insuficiente.”

Desse modo, fácil compreender a razão de a livre manifestação do pensamento ocupar posição de destaque entre os direitos humanos.217

218

                                                                                                               

217 A terminologia ligada aos direitos da pessoa humana não é uniforme,

podendo-se, todavia, destacar três denominações recorrentes: direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais. Dessa forma, consoante SARLET, direitos do homem são os “direitos naturais não, ou ainda não positivados” (2001, p. 34); direitos humanos são os que guardam “relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua

                                                                                                                                                                                                                                           

vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional” (2001, p. 33); e direitos fundamentais são os “direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado.” (2001, p. 34). Pode-se, ainda, afirmar que direito fundamental é a denominação preferida pelos publicistas alemães, e direitos do homem e direitos humanos são empregados mais frequentemente pelos autores anglo-americanos e latinos (BONAVIDES, 2001, p. 514). Esta diversidade semântica é observada na própria CRFB que, por exemplo, dispõe no art. 4º, II: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II- prevalência dos direitos humanos”; na epígrafe do Título II, e artigo 5º, § 1º: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”; no artigo 5º, LXXI: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”; e no artigo 60, § 4º, IV: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias individuais”. Ingo Wolfgang SARLET (2001, p. 82) partindo da análise das categorias de positivação, constitucionalização e fundamentalização (formal e material), também apresentadas por José Joaquim Gomes CANOTILHO (2000, p. 371- 374), prossegue na definição dos direitos fundamentais: “(...) são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não assento na Constituição formal”.

218 A afirmação histórica dos direitos fundamentais é retratada, geralmente,

através de quatro gerações ou dimensões, indicadoras de um processo evolutivo e cumulativo, portanto, não excludentes. Os direitos de primeira geração, cuja origem está no século XIX, conectam-se à liberdade e correspondem aos direitos de resistência, civis e políticos, sendo titular o indivíduo que se opõe ao Estado. Os de segunda dimensão referem-se aos direitos sociais, culturais e econômicos e aos direitos coletivos, tendo sido introduzidos no constitucionalismo através da concepção de Estado social, delineado primordialmente através da Constituição de Weimar de 1919. Os direitos de terceira geração possuem como destinatário o gênero humano e compreendem o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio-ambiente, à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, e à comunicação. E, os direitos fundamentais da quarta geração ou dimensão correspondem à democracia direta, à informação e ao pluralismo. (BONAVIDES, 2001, p. 514/517).

Para João dos Passos Martins Neto (2008, p. 27), a liberdade de expressão “consiste, basicamente, no direito de comunicar-se, ou de participar de relações comunicativas, quer como portador da mensagem (orador, escritor, expositor), quer como destinatário (ouvinte, leitor, espectador)”. Ainda o autor (2008, p. 27/28), a liberdade de expressão compreende “informações, opiniões, sentimentos e propostas, entre outros”, seus titulares são os indivíduos e instituições, especialmente a imprensa" e realiza-se mediante a “linguagem oral e escrita, de gestos simbólicos e imagens”.

Consoante Laurent Pech (2003, p. 21):

A liberdade de expressão deve ser entendida como a liberdade garantida a cada um de manifestar (ou não) os seus pensamentos, suas opiniões, suas crenças, de fato, todas as expressões do coração ou do espírito – seja pela fala, pela escrita ou por imagem, pelo gesto ou por uma determinada atitude, ou por todos os meios modernos de reprodução e de difusão do pensamento e da palavra – assim como a liberdade de comunicar aos outros as suas ideias ou informações, o que implica igualmente o direito de recebê-las.

Não obstante a precisão dos conceitos acima citados, segue-se com o propósito de se oferecer uma formulação.

Apesar de se saber não ser usual buscar definições na legislação, um bom caminho para se elaborar um conceito para a liberdade de expressão é investigar elementos no exame dos principais documentos normativos que a ela fazem referência.

A evolução histórica dos direitos fundamentais geralmente é tratada a partir do Virginia Declaration of Rights, de 12/06/1776, e da Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, de 26/08/1789, documentos que são apresentados como os grandes representantes iniciais da constitucionalização ou positivação dos direitos dos homens (CANOTILHO, 2000, p. 376).219

                                                                                                               

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É o que também ensina COMPARATO (1999, p. 38): “O artigo I da Declaração que ‘o bom povo da Virgínia’ tornou pública, em 12 de junho de 1776, constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na História. É o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmos. A ‘busca da felicidade’, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após, é a razão de ser desses direitos inerentes à própria condição humana. Uma razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações. Uma razão universal, como a própria pessoa

Nesses dois documentos, são observadas referências à liberdade de expressão.

A Declaração de Direitos da Virgínia, em sua seção 12, dispôs “que a liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade, não podendo ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos.”220

E da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, citam-se os artigos 10 e 11:

Art. 10. Ninguém pode ser molestado por suas

opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11. A livre comunicação das ideias e das

opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948221, da mesma forma, delineia a salvaguarda da expressão livre:

Artigo 18. (Liberdade de pensamento,

consciência e religião) - Toda a pessoa tem

direito a liberdade de pensamento, de consciência, e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção sozinho ou

coletivamente, tanto em público como

privadamente, pelo ensino, práticas, culto e realização de ritos.

                                                                                                                                                                                                                                           

humana. Treze anos depois, no ato de abertura da Revolução Francesa, a mesma ideia de liberdade e igualdade dos seres humanos é reafirmada e reforçada: ‘Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos’ (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, art. 1º). Faltou apenas o reconhecimento da fraternidade, isto é, a exigência de uma organização solidária da vida em comum, o que só se logrou alcançar com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidades em 10 de dezembro de 1948.”

220 Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-

anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-

Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-bom- povo-de-virginia-1776.html Acesso em 09/07/2015.

221 Disponível em http://www.un.org/fr/documents/udhr/, no idioma francês, um

dos oficiais da ONU – Organização das Nações Unidas. Acesso em 3/6/2015. Tradução livre.

Artigo 19. (Liberdade de expressão e de

informação) - Todo o indivíduo tem direito a

liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.

Artigo 20. (Liberdade de reunião e de

associação) - 1. Toda a pessoa tem direito a

liberdade de reunião e de associação pacíficas. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica de 1969, promulgada na ordem interna brasileira mediante o Decreto n. 678/92, trata da liberdade de consciência e religião (art. 12), da liberdade de pensamento e de expressão (artigo 13), do direito de retificação ou resposta (artigo 14), do direito de reunião (artigo 15) e da liberdade de associação.

Em virtude da extensão do texto, limita-se à citação ao artigo 13: Artigo 13

Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeita à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar:

a) O respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) A proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios

destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à

violência.

Da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reputa-se serem importantes para atender ao intento de se formular um conceito para a liberdade de expressão, os seguintes dispositivos:

Art. 5o (....)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem

armas, em locais abertos ao público,

independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de

informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Com inspiração na Declaração de Direitos da Virgínia de 1776, destaca-se a relevância da liberdade de expressão para a compreensão da própria dimensão de liberdade e o fato de ser um importante índice para medir a democracia de um Estado. A partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 extrai-se o direito de se comunicar livremente, através da fala, da escrita e da impressão, e de não ser molestado por opiniões, inclusive as religiosas. Da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, foca-se na inclusão do direito de procurar, receber e difundir informações e ideias, o que também é o que se destaca da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969. E da CRFB de 1988, que além de não destoar do estabelecido nos documentos legislativos internacionais, reforçando as diretrizes da matéria, prevê a responsabilização pela violação de outros direitos, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem.

A proposta é a de se elaborar um conceito amplo, que envolva a liberdade de manifestação de pensamento e o direito de acesso à informação, ou seja, que apresente como sujeitos da relação jurídica tanto quem profere a comunicação como o destinatário dela e considerando-se também a possibilidade de se ir em busca da informação mesmo quando esta estiver sendo obstruída.

Assim, a liberdade de expressão é um direito, de ordem individual e coletiva, cujos sujeitos são o emitente da comunicação e o destinatário dela, e que tem por objeto a proteção da manifestação de ideias, dados, opiniões, críticas, concepções, mediante a linguagem oral, escrita, gráfica, gestual, bem como através de sons e imagens, incluindo-se, ainda, o silêncio.

No conceito formulado, salienta-se, não se incluiu toda a comunicação, excluindo-se a violadora de direitos.

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 164-170)