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STF Caso da Chacina da Candelária/ RExt com

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 62-69)

1. DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO LIMITE À

1.2. O direito ao esquecimento como fator restritivo à

1.2.3. Jurisprudência

1.2.3.2. STF Caso da Chacina da Candelária/ RExt com

O Rext. com Agravo n. 789.246, relatado pelo Ministro Celso de Mello, corresponde à “Chacina da Candelária”, sendo recorrente Globo Comunicações e Participações S/A.

E o Rext. com Agravo n. 833.248, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, refere-se ao caso “Aída Curi”. E algumas observações são necessárias, em decorrência da repercussão geral.

Os irmãos da vítima, Aída Curi argumentam que o direito ao esquecimento, como um aspecto da proteção da dignidade humana ainda não foi apreciado pelo STF, concentrando-se a inovação no fato de que não se trata de uma busca pela ressocialização de um condenado, mas a análise do tema na esfera civil sob o ângulo da vítima. Sustentam também a importância de se conceder maior nitidez na relação entre os órgãos de imprensa e o princípio da dignidade.

A repercussão geral foi concedida com fulcro na necessária harmonização entre os princípios da liberdade de expressão e o direito à informação com a dignidade da pessoa humana e seus corolários, como imagem, intimidade e vida privada.49

O reconhecimento da repercussão geral deu origem ao tema n. 786 (“aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares”).

Importante advertir que este tema n. 786 deve ser lido com extrema cautela. Como se trata de um recurso interposto pela família da vítima, a fundamentação concentrou-se na invocação de um direito ao esquecimento adequado à situação concreta, ou seja, a eles relacionada.

No entanto, ao contrário do que uma leitura apressada poderia indicar, é fundamental que se registre que não há no STF nenhuma decisão que garanta o direito ao esquecimento como elemento limitador da liberdade de expressão mesmo quando se refira aos condenados, seja na esfera cível ou não. Há julgados relacionados à reabilitação criminal, atestado de antecedentes criminais e à questão da reincidência, mas nada ligado ao tema delimitado na presente tese, ou seja, à liberdade de falar sobre assuntos do passado.

                                                                                                               

49 Em 28/05/2016, a informação no site do STF é que, em 19/03/2015, foi dada

1.3. Direito ao esquecimento digital: peculiaridades

Inicialmente, cabe observar que quando, previamente, tratou-se da doutrina não se fez distinção quanto ao veículo de comunicação provocador da invocação do direito ao esquecimento. Foram apresentados aspectos gerais, por vezes, já incluindo o cenário virtual no debate. Isto porque se sustenta que o pano de fundo de um desejo de as pessoas serem esquecidas e de não terem o seu passado invocado e rememorado por uma comunicação é o mesmo, independentemente do formato em que a discussão é gerada, seja mídia impressa, de rádio, de televisão, cinematográfica, internet etc. O cenário diferente não é argumento suficiente para cindir o estudo, que deve se concentrar na fluência temporal como um possível obstáculo à livre expressão independentemente do veículo que se pretende promover a comunicação. Por este motivo, defende-se a importância de um estudo conjunto dos elementos essenciais sobre o tema, embora não se negue a existência de especificidades quando a questão concentra-se no ambiente da internet.

Cumpre, portanto, registrar contrariedade ao posicionamento do STJ no julgamento do caso da “Chacina da Candelária”, pois, conforme se destacou nos tópicos formulados quando de sua análise, o acórdão limitou o estudo para o caso de publicações na mídia televisa, excluindo a internet.

Reconhece-se a complexidade técnica quando a discussão é transposta para o ambiente virtual, e é com o objetivo de se examinar as principais peculiaridades do direito ao esquecimento digital que se justifica a elaboração do presente tópico.

A tecnologia, de fato, modificou o comportamento social. É indubitável que a humanidade vive um momento inédito, uma nova forma de organização pautada pela tecnologia, que deixou de ser acessível apenas para as grandes corporações e objeto de obras de ficção científica, passando a integrar a vida do indivíduo. Muito do que é comum, rotineiro nos dias de hoje, há 10 ou 20 anos era simplesmente impensável.

A internet mudou a forma de se ter o acesso à informação50. Ela é um espaço propício para o exercício da liberdade de expressão e, portanto, de comunicação.51

                                                                                                               

50 Não necessariamente sempre com mais qualidade, pois, até pelo excesso, é

preciso um bom conhecimento prévio para se identificar as boas fontes e referências

Hoje, a velocidade e a praticidade tornaram-se características facilmente perceptíveis em uma pesquisa, seja ela científica ou não.

Como a informação é a matéria-prima essencial da ciência, da política, da história, do jornalismo e mesmo da cultura e da arte, a rede mundial de computadores contribui para a circulação de ideias e a proliferação de opiniões.

Burgorgue-Larsen (2009, p. 67) fala de uma revolução do saber e mesmo de uma mudança nos métodos de trabalho e na deontologia dos jornalistas. A autora (2009, p. 70) afirma ainda que a internet passou a integrar a política e revisou a forma de expressão democrática.

A inovação trazida por este novo mundo reúne incontáveis vantagens.

Imagine-se os benefícios que se teria caso tivesse sido possível catalogar e disponibilizar virtualmente, por exemplo, dados climáticos dos últimos tempos ou de se ter fácil acesso às notícias de décadas e de séculos passados. Ou, vislumbre-se, o que se deseja que venha a ser factível em um futuro próximo, as vantagens de se ler de qualquer lugar, livros raros, muitos, ainda hoje, restritos a poucas salas de consulta de bibliotecas do mundo. As gerações futuras provavelmente terão esta chance.

No geral, defende-se, o saldo é positivo, mas, evidentemente, os efeitos colaterais existem e a ciência jurídica depara-se com inúmeros novos desafios. Acredita-se que determinados direitos como a privacidade e a imagem tornaram-se mais vulneráveis. Não é difícil perder o controle sobre a foto inserida (voluntariamente ou não) na rede social ou sobre as ideias e críticas expressadas em um texto postado em um blog. E as questões não se restringem a isto. A internet também é campo propício para a prática de crimes, como a violação da propriedade intelectual, das fraudes praticadas contra o comércio eletrônico e dos atentados contra dados sigilosos estatais ou não.

Ademais, as informações dos usuários da internet são armazenados e tratados por grandes corporações, que visam alta lucratividade, e que não estão apenas preocupadas em propiciar a melhor informação aos seus usuários.

                                                                                                                                                                                                                                           

51 STF, ADPF n. 130, Relator Ministro Carlos Britto, data do julgamento

30/04/2009. Extrai-se da ementa “Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação. »

Cintia Rosa Pereira de Lima (2014, p. 3) assevera que a busca pela informação e por dados pessoais é desmedida, alimentando o formato atual da economia de mercado. A autora chama atenção para o fato de que muitos serviços oferecidos na internet são aparentemente gratuitos, porém, na verdade, o preço são os dados sobre a própria pessoa (“the user is the content”).

Como assevera Isabelle Falque-Pierrotin (2012, p. 33), ainda que os pioneiros da internet reivindiquem a sua independência em relação aos governos, este idealismo não pode representar uma renúncia aos direitos fundamentais.

E não há dúvidas que toda a problemática envolvendo o direito ao esquecimento potencializa-se diante da forma em que se dá a divulgação das informações, bem como o armazenamento e o acesso de dados nos dias de hoje.

A obra “Delete – The Virtue of Forgetting in the Digital Age” de Viktor Mayer-Schönberger é referência para o estudo do direito ao esquecimento no ambiente da internet.

Já no início do livro, Mayer-Schönberger (2009, p. 11) narra um exemplo, o qual é fartamente repetido por outros autores que também tratam sobre o tema. É a história de Stacy Snyder que, em 2006, aos 25 anos, foi impedida de se tornar professora, apesar de ter concluído todos os créditos do curso, passado em todos os exames e feito toda as atividades práticas. O motivo da recusa foi o seu comportamento que, segundo a universidade, seria incompatível com o de uma professora. Tal conclusão decorreu de uma foto que ela mesma havia disponibilizado na rede social myspace, em que estava vestida com um chapéu de pirata e bebendo em um copo plástico, com a legenda “pirata bêbado". Para o autor não se trata de analisar a validade (ou estupidez) da decisão tomada pela universidade que negou o certificado a Stacy, mas refere-se a algo, consoante afirma, muito mais importante que é o esquecimento.

Outra situação apontada por Mayer-Schönberger (2009, p. 12) envolve Andrew Feldmar, psicoterapeuta canadense, que foi impedido de entrar nos Estados Unidos, coisa que já havia feito diversas vezes anteriormente, porque o guarda de fronteira acessou um motor de busca na internet e viu que ele era o autor de um artigo, no qual havia mencionado sua experiência com LSD na década de 60. Para o autor, ainda que Andrew não tivesse nenhum registro criminal e não utilizasse mais drogas desde 1974, como a tecnologia fez com que a sociedade perdesse a capacidade de esquecer, ele foi impedido de cruzar a fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos.

Mayer-Schönberger chega a valer-se de uma situação hipotética em que uma mulher, após ter se animado de reencontrar o amigo do passado, acaba por desistir do novo encontro ao ler os emails antigos e reviver as mágoas por ele provocadas. O autor tenta com este exemplo comprovar que o esquecimento é saudável e que a mulher já havia perdoado e estava sentindo-se feliz com o reencontro, mas que a tecnologia teria sido a responsável pelo ressurgimento dos sentimento ruins.52

Consoante afirma Mayer-Schönberger (2009, p. 11), antigamente, esquecer era a regra e lembrar era a exceção, mas, atualmente, com a tecnologia, esta lógica se inverteu. Ele (2009, p. 59/63) reconhece a importância do desenvolvimento tecnológico e das ferramentas criadas para contornar a incapacidade humana de memorização, afinal, inegável o papel fundamental da informação, por exemplo, para a medicina, economia e governo. No entanto, adverte para um possível mau uso destas informações armazenadas, o que se agrava com a dificuldade de se controlar o acesso das informações pessoais, o que, aliás não é algo que surgiu com as novas tecnologias, mas que foi por elas agravada.53

O autor (MAYER-SCHÖNBERGER, 2009, p. 100/102) afirma que é preciso reintroduzir o esquecimento. Há a necessidade de que ele seja facilitado, ainda que em uma proporção muito pequena54. Ele sugere alguns caminhos possíveis para viabilizar esta empreitada, como, por exemplo, um período de validade para a informação, através do qual o usuário ao criar um documento, possa selecionar por quanto tempo ele existirá, com a possibilidade de alterá-la55.

                                                                                                               

52 Talvez, uma caixa com cartas antigas, ou quem sabe até uma conversa com

uma amiga, teria provocado a mesma reação…

53 MAYER-SCHÖNBERGER (2009, p. 84/85) relata, por exemplo, o

cadastramento feito pelo governo holandês, na década de 30, de todos os cidadãos com o objetivo de melhor prestação dos serviços públicos, próprios da organização do welfare state. Na coleta de dados, solicitou-se nome, data de nascimento, endereço e religião, dentre outras informações. Porém, com a invasão pelos nazistas, estes dados foram acessados e os habitantes judeus e ciganos do país foram presos e mortos em uma percentual muito mais alto (73%) do que em outros países que não contavam com estes registros organizados, como, por exemplo, Bélgica (40%) e França (25%).

54

Nas palavras do autor (2009, p. 100), “I suggest we reset this balance, and make forgetting just a tiny bit easier again than remembering (…)”.

55 Na sequência, ele explica as questões técnicas atreladas a esta sugestão, o que

As provocações de Mayer-Schönberger são interessantes, pois, de fato, é preciso discutir a circulação e utilização dos dados pessoais na internet.

Daniel Sarmento (2015, p. 44), já citado, mesmo que tenha se oposto ao direito ao esquecimento no formato apresentado pelas decisões do STJ, também demonstra preocupação com o que afirma ser a memória praticamente infinita da internet e com a possibilidade de questões particulares ficarem armazenadas nas nuvens cibernéticas, impedindo, por exemplo, alguém de se empregar em virtude de uma foto em estado de embriaguez durante a sua adolescência. Ele (2015, p. 45) fala, então, da possibilidade de um direito ao esquecimento, apesar de sustentar a impropriedade da terminologia, que permita o controle sobre dados pessoais disponíveis na internet e destituídos de interesse público.

Aliás, não é incomum se deparar com boa dose de pessimismo quando o assunto é internet56, especialmente, no que concerne à eternização de informações negativas.

Lima (2014, p.1), por exemplo, destaca:

A sociedade atual apresenta uma característica interessante, qual seja: a consolidação de relações em rede. Este traço ficou ainda mais marcante com a Internet e seus aplicativos, notadamente as redes sociais, seja as de relacionamento (e.g.

Facebook), as de compartilhamento de

informações (e.g. YouTube) e as ferramentas de busca (e.g. Yahoo, Google, Bing etc). O problema destas novas ferramentas é que a inserção de uma informação tende a se eternizar. Em outras palavras, estes dados ficam disponíveis e latentes, pois a qualquer momento um comentário ou uma postagem pode reviver em proporção catastrófica fatos vividos por outras pessoas, geralmente em um contexto vexatório.

Arrisca-se a dizer que há um senso comum de que aquilo que é disponibilizado virtualmente tende a se perenizar, fazendo com o que o tempo de vida da informação prolongue-se indefinidamente e o esquecimento não mais integre o curso, outrora, considerado natural.

                                                                                                               

56

Ao menos é a constatação feita por Peter Fleischer na conferência sobre

“droit à l’oubli numérique” ocorrido em 12/11/2009, na Science Po em Paris,

disponível em http://www.numerama.com/magazine/14511-video-conference-

Com o intuito de contribuir para o debate, é salutar questionar se a internet, de fato, tem esta memória infalível.

Assim, Meg Leta Ambrose (2013, p. 369), no artigo “It’s about time: privacy, information life cycles, and the right to be forgotten”, informa que, não obstante o senso comum de que a informação permanence on line para sempre e que isto tem conduzido países da Europa, a União Europeia e mesmo os Estados Unidos a pensarem em um direito a ser esquecido, os números, na verdade, conduzem para uma conclusão diversa, pois “85% dos conteúdos desaparecem em um ano e 59% desaparecem em uma semana”.57

A dificuldade, porém, está em se saber quais as informações que permanecem, quais as razões para que isto se dê e se há um padrão para este processo.

Laure Marino (2013), em outro contexto, mas em tom igualmente questionador, afirma que no mundo digital, da mesma forma que no mundo de papel, o esquecimento decorre do tempo. A página não é apagada, mas a pesquisa pelo motor de busca com o tempo não mais a apresentará com destaque e “um resultado apresentado na página 10 tem pouco risco de ser consultado”.

Marino (2013) conclui:

Não demonizemos, então, a internet e sua memória de elefante. Uma página web de 2008 somente será vista se o internauta tiver a curiosidade de formular uma pesquisa precisa neste sentido, do mesmo modo como um jornal impresso de 2008 somente será consultado se o leitor fizer uma pesquisa em uma biblioteca. Não há maiores razões para interditar uma página da internet do que existem motivos para interditar o formato de papel.

                                                                                                               

57 “It’s about time: privacy, information life cycles, and the right to be

forgotten”de Meg Leta Ambrose Disponível em

http://stlr.stanford.edu/pdf/itsabouttime.pdf. «But, the internet has not defeated time, and information, like everything, gets old, decays, and dies, even on line. Quite the opposite of permanent, the Web cannot be self-preserving. One study from the field of content persistence, a body of research that has been almost wholly overlooked by legal scholars, found that 85% of content disappears in a year and that 59% disappears in a week, signifying a decrease in the lifespan of online content when compared with previous studies.» (AMBROSE, 2013, p. 369)

Enfim, não há dúvidas que se está diante de novas e grandes discussões provocadas pela internet.

E, no que tange propriamente ao estudo do direito ao esquecimento, entende-se necessário analisar as seguintes peculiaridades: as expressões right to forget e right to be forgotten e a relação com o controle de dados pessoais; a avaliação se existente e se cabível diferença entre a informação antiga com acesso facilitado pela internet e informação nova retratando o passado; a distinção entre desindexação e apagamento como possíveis instrumento para operacionalizar o esquecimento.

Ainda, será dado destaque a uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia - TJUE , de maio de 2014, que ficou conhecido como caso “Google Spain”, a qual fomentou o debate em torno do direito ao esquecimento digital.

No documento A liberdade de expressão e o passado (páginas 62-69)