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Capítulos IV – Deram-me as asas para voar

2. Do coletivo ao individual

2.1. A Identidade e individualidade

Esquecem-se que o Pedro é o Pedro e a Filipa é a Filipa, muitas das vezes [João, Anexo IV.3].

No contexto institucional, o processo de regulação e orientação das condutas estrutura-se segundo uma ordem coletiva que acaba por interferir nos modos de construção da identidade individual. Existe um processo de normatização em constante oscilação e com fronteiras dissipadas entre o individual e o coletivo. Segundo Huning e Guareschi, (2002:43) “os sujeitos são posicionados e se reconhecem como sujeitos, não por aquilo que se identificam, mas por aquilo que indicam como diferença”. Esta ideia da diferença vai ao encontro da constatação de João: estava sempre a pôr no mesmo saco do que eles, dos mais novos, bem mais novos, e que eu estava numa fase completamente diferente [Anexo IV.3].

A construção da identidade é um conceito complexo que envolve várias dimensões. Na tentativa de compreensão deste conceito recorremos a Hall (2001) de forma a esclarecer alguns pontos do processo de construção da identidade. Entende o autor que a identidade decorre de um processo que não é inato, mas essencialmente cultural, decorrente da interação entre os indivíduos e entre os grupos, durante a qual os indivíduos adquirem novas formas de se (re)conhecer. Assim sendo, a identidade vai sendo construída através da tensão entre o individual e o coletivo, entre o sujeito e os outros, representando um processo de identificação que se faz, também, a partir do exterior.

Trata-se de crianças e jovens em acolhimento, ou seja, provenientes de contextos assinalados de risco social e de vulnerabilidade. Neste sentido, esclarecem Hunninh e Guareschi (2002:49), que esta prática mais reguladora decorre de: “um processo de correção de identidades desviantes ou identidades de risco” que permite, por vezes, o surgimento de determinados sentimentos, como: (…)é quase meter um hiperativo dentro de

um quarto durante um dia de castigo (…) eu não era hiperativo, era quase | Nós não

podemos errar [Carlos, Anexo IV.3].

Segundo Hall e Woodward (2008), o processo de construção de identidade deve ser compreendido tendo em conta as seguintes dimensões: contextualização, reivindicações, razões de natureza relacional, condições sociais e materiais, social e simbólico, sistemas classificatórios, omissões e diferenças, contradições e nível psíquico, todavia analisaremos somente algumas destas dimensões.

Para os autores, a contextualização permite compreender como se pressupõe o reconhecimento da alteridade para a sua afirmação através da divisão social, cultural, política, histórica, etc. A este propósito, a jornada pela instituição constitui um fator preponderante no processo de construção da identidade, enquanto dimensão de

contextualização. Importa referir que estes jovens deram entrada para o Lar com idades aproximadas dos 8 anos [Anexo III.1].

No Focus Group 1, é possível rever algumas das situações que permitem uma breve contextualização das histórias dos jovens, essencialmente associada ao momento de entrada para o Lar19, bem como enquadrar o ambiente social e caracterizar algumas situações de risco e vulnerabilidade em que se encontravam, no seio familiar.

Para exemplificar a realidade vivida antes da entrada no Lar, Ana, no terceiro encontro, refere que: Eu desde pequenina ficava com os meus irmãos pequeninos, com seis anos, e o mais pequenino era bebé [Anexo IV.3].

João partilha o facto de ter uma família numerosa, em específico,12 irmãos20, à qual é muito apegado, como já foi indicado.

Pedro, antes de entrar no Lar, passava os seus dias a ver o que a mãe fazia ou a brincar, a fazer o que o irmão mais velho [Carlos] lhe havida ensinado, desde saltar das árvores

jogar à bola… mas sentia-se sozinho. Sentia-se sozinho mesmo tendo dois irmãos mais novos (Manuel e Filomena) a viver com ele, na casa da sua família.

Seu irmão Carlos vivia com a avó, e às vezes ia uma visita até à minha mãe [Anexo IV.2]. Em todos os casos, as separações familiares foram vividas com dificuldade e tornaram-se dolorosas. Por outro lado, a chegada a um novo ambiente proporcionou, além da resposta às necessidades básicas, um contexto de socialização marcado positivamente por relações de vínculo e afetividade.

19 Partes das histórias que a Diretora Maria Silva fez, relativamente aos momentos de entrada dos jovens, já estão enumerados no capítulo III no ponto 4.2 e também pormenorizados no Anexo III.4.

Como vimos, Hall e Woodward (2008) apresentam ainda o domínio dos sistemas classificatórios que permite organizar e dividir as relações sociais. Como já referimos no ponto 1.1, dimensão relacional, podemos verificar que as relações sociais dos jovens são estabelecidas, essencialmente, com três grupos: pessoas da família biológica, pessoas ligadas à instituição e grupos de pares.

Como tal, o primeiro grupo – família biológica – é fulcral, considerando a bagagem vivencial que estas crianças trazem do contexto familiar, material, psicossocial e sociocultural, podendo apresentar reações e comportamentos distintos, diferenciados (Magalhães, 2012). Foram destacados alguns episódios que evidenciam esta fase controversa da sua vida, face à separação, assim como os diferentes comportamentos registados. Para Carlos, a separação foi mais dolorosa: durante o tempo que ela estava fora era intolerante, insuportável, transformavas-te [Anexo III.4]. Já para Ana, toma outros contornos, como relata a Diretora: A mãe dela [Ana] chorava e ela ria-se, e ela dizia: “Já vamos?” Ui, ela estava feliz da vida [Anexo III.4]. A Ana, no encontro individual, fez

menção a este episódio em que expressava só se lembrar da mãe a chorar, quando veio para a instituição, como podemos verificar nas Notas de Campo III-8.

Quanto ao grupo de pessoas da instituição, apesar das diferenças a nível de empatia e proximidade, este grupo representa um processo dinâmico ao serviço da proteção, promoção do bem-estar, preparação e integração das crianças e jovens. Neste sentido, reúne várias práticas orientadas para a construção e consolidação de diretrizes, na medida do possível, numa real e plena integração aos vários níveis da sociedade (pessoal, social e cognitiva).

A título de exemplo, João descreve que o empenho dos funcionários foi importante para superar todas as dificuldades e ser a pessoa que é hoje. A Ana fala do acompanhamento que tiveram, uma vez que nem tínhamos objetivos de certeza [Anexo IV.3]. Carlos refere- se a eles, equiparando-os a uma relação de família [Anexo IV.3]. Para Pedro, eles permitiram que chegasse até aqui, pois ensinaram-me a estudar, entre as “mil e uma” maneiras de saber e aprender como estudar. Se não tivesse ido para a instituição não saberia nem uma [Anexo III.6].

Por último, o grupo de pares referido no ponto acima, ganha aqui destaque também, por caracterizar um grupo particular de socialização, com grande destaque na adolescência, constituindo um grupo de pessoas com características semelhantes, em necessidade de afirmação e construção individual.

De acordo com Graça (2010:12) o grupo de pares permite assumir:

 Uma série de identificações – ex: Eu era a mais revoltada lá da casa [Ana, Anexo IV.3]. Era uma pessoa n popular dentro do contexto escolar [João, Anexo IV.4].  Um papel de suporte para conter a angústia – ex: entra um pouco na brincadeira

deles [das crianças no Lar] para se distrair [Carlos, Anexo IV.3]

 A experimentação de diversos papeis, vivência de afetos – ex: (…) tornei-me mais incorreto em algumas coisas, mais negligente, (…) lá está, fui levado pelos meus amigos [Carlos, Anexo IV.2]. A relação é muito mais proxima com os meus irmãos, com o João e a Ana que estão lá [Lar] desde sempre [Pedro, Anexo III.6].  O desenvolvimento de atitudes, valores e ideias – ex: uma vez por semana tentamos

irmos lá jantar e confraternizar com o pessoal e também ouvir os mais pequenos e deixar-lhes também pequenas dicas acerca daquilo que nós também passamos e tentar deixar passar também um pouco o nosso testemunho [João, Anexo IV.3]. A este propósito, Pedro relata a história da sua passagem pela Universidade de Aveiro. Apesar de se ter desviado do objetivo de estudar durante a frequência do 1º ano, percebeu o erro mais tarde, agarrou a nova oportunidade que lhe deram e afirma: não vou falhar comigo mesmo [Anexo III.6].

Como pudemos ver, e de acordo com Giddens (1995), a (re)construção de identidades é o resultado de uma atividade reflexiva, na qual as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz da formação e informação recebidas sobre as próprias práticas, indo ao encontro da necessidade do indivíduo se adaptar aos diferentes contextos. O sujeito está constantemente num contínuo processo de construção e transformação. Como se pode constatar nas seguintes frases: eu era uma pessoa diferente do que sou agora | eu tornei-me uma pessoa mais fria [Pedro, Anexo IV.3].

Neste processo de (re)construção e afirmação de identidade importa refletir sobre várias

práticas de significação que segundo Huning e Guareschi (2002: 43):

(…)adquirem uma materialidade discursiva real (…) de sentidos em que está em jogo uma multiplicidade de categorias referenciais que se fazem a todo o momento, marcando, instituindo e constituindo novas formas dos grupos sociais definirem a si próprios e serem definidos pelos outros.

A título de exemplo desta prática de significação referida pelas autoras, apresenta-se a seguinte frase: Não João, não podes, porque sabes que tens que dar o exemplo [João, Anexo IV.3]. O resultado das proibições das saídas noturnas cria influencia no comportamento do restante grupo.

Por outro lado, outras práticas de significação são reveladas pelos jovens, como afirma Ana: – Imagina lá em cima no outro [referência a outra instituição de acolhimento] , nenhum dos miúdos tem roupa própria, agora não sei, mas na altura que fui lá não tinham. Eles tinham que dividir as roupas uns pelos outros, nós aqui temos. Eles não tinham, nós temos [roupa própria] [Anexo IV.2]. A apresentação física, a escolha de suas próprias roupas e acessórios ajudam a definir e assumir uma identidade individual, de forma mais acentuada, e característica da fase da adolescência.

No contexto institucional, podem encontrar-se outros aspetos cuja significação aponta, também, para a valorização da diferença e identidade dos jovens, como declara Pedro:

cada um tem acesso ao que gosta de fazer [Anexo IV.4]. Ainda, a partir da atividade do OT, na parte referente ao lazer, pode-se constatar as múltiplas e distintas atividades em que os jovens estiveram envolvidos: O Carlos andava no futebol, eu [João] andava na música. | No secundário [Pedro] andei no atletismo e cheguei a ser federado | Escuteiros? Eu [Ana] não ando nos escuteiros. Saio com os amigos [Anexo IV.4].

Na forma como os jovens se referem a determinados funcionários da instituição, transparece o sentimento de ter sido respeitada a sua individualidade. A título de exemplo -

O Gonçalo nunca me tratou por exemplo como trata o José [João, Anexo IV.3].

Será, então, possível existir identidade individual onde a dimensão coletiva é tão acentuada?

Certamente. Pelo que foi exposto, o respeito pela identidade e pela individualidade de cada jovem é o caminho para que cada um viva um percurso distinto, de acordo com as suas necessidades, os seus gostos e as suas aspirações. Na organização dos recursos, na definição de regras e na relação entre todos, subsiste alguma tensão entre o individual e o coletivo. Através do diálogo entre os jovens e os responsáveis, essa tensão resolve-se.