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1.2 A Imagem Desenhada

1.2.1 A Ilustração e o Desenho Mnemônico

Na fábula de Plínio (citada no tópico anterior), as linhas e traços se unem para formar uma imagem, um desenho, que tem a função de resgatar a memória de algo ausente. O ato de desenhar consiste em reproduzir por estes traços coisas de memória (por mais que se olhe, ao vivo, quando os olhos retornam para o papel, é a memória visual que comanda a mão na execução os traços, além de que, poucos são os desenhistas que constroem imagens ao vivo. Todas tendem a trabalhar de memória com base em seus referentes).

A mesma função acomete os desenhos rupestres. De memória, os autores reproduziam de forma naturalista a fauna e a flora, catalogando-a e permitindo às gerações seguintes, reconhecer um animal sem o perigo do encontro face-a-face, identificando quais deveriam ser evitados e quais deveriam ser perseguidos. Além de seu aspecto mnemônico, o desenho surgiu com uma função informacional, por conseguinte, educacional.

Os traços do desenho permitem ao expectador tomar conhecimento de algo que é ausente e/ou desconhecido, apropriando-se das características que permitirão reconhecê-lo na observação real/direta. Por isso,

O uso de imagens para a transmissão de um conteúdo faz parte das representações visuais como forma de comunicação há bastante tempo. A sociedade contemporânea de consumo encontra em certos usos das imagens um instrumento para atingir de forma direta públicos diferentes que possuem em comum a visão e o reconhecimento de um repertório imagético cada vez mais universal. (CAVALCANTE, 2010, p.102).

Os desenhos com função mnemônica permeiam o espaço do sagrado, no surgimento das expressões visuais e da escrita. Já nas primeiras civilizações se encontram referências do uso de imagens, isoladas ou em conjunto, ladeando os textos sagrados. No Egito, Mesopotâmia, Grécia e entre os Maias e Incas, o uso do baixo relevo na pedra ou no barro, produziu uma série de pictogramas que associavam imagens e textos. Os desenhos tinham uma função narrativa e serviam tanto para ornamentação, como instrução da informação textual5. Neste

5 Como informa este pequeno fragmento: “Produzido no Egito da 19ª dinastia faraônica, século XII a.C., o Livro

dos Mortos é um dos mais antigos manuscritos ilustrados, onde texto e imagem combinados transmitem uma informação e narram acontecimentos. Enquanto o Livro dos Mortos é considerado um grande marco da origem da ilustração na potência de seu sentido narrativo lado a lado com um conteúdo textual escrito, o Sutra do Diamante (Chin, 868, d.C.) – uma referência para a filosofia Zen – é o primeiro livro impresso em xilogravura na forma de rolo. Reproduzido em várias cópias. O Sutra do Diamante foi impresso quase seiscentos nos antes da Bíblia de Gutemberg e trazia imagens e textos integrados com os ideogramas chineses e as ilustrações que acompanhavam a narrativa.” (CAVALCANTE, 2010, p. 98).

momento ainda não temos as ilustrações, propriamente ditas, mas sua função já é explícita: é um meio de (re)conhecer o desconhecido.

As bases da ilustração no Egito também permitem identificar outros aspectos necessários ao entendimento da imagem desenhada. Segundo Gombrich (2002, p.60-61):

Eles desenhavam de memória, de acordo com regras estritas, as quais asseguravam que tudo o que tivesse que entrar no quadro se destacaria com perfeita clareza. [...] tudo tinha que ser representado de seu ângulo mais característico. [...] seguiam uma regra que permitiam incluir tudo o que consideravam importante na forma humana.

Ao enfatizar a existência de um “estilo” e de uma lei estética na arte egípcia, Gombrich destaca uma característica que foi pincelada nos estudos clássicos de filosofia da imagem e da semiótica: há uma dimensão própria da imagem desenhada que interfere na maneira como ela é percebida. As linhas e traços que compõem o desenho provocam, por sua vez, uma dimensão pelo qual a forma do objeto-desenho se estrutura. Há leis próprias que condicionam a representação da realidade pelos traços. E são estas mesmas leis, tal qual descritas na arte egípcia, como “lei da frontalidade”, por exemplo que condicionam a visão do expectador na identificação de um objeto representado, neste caso, do corpo humano. Em outros termos:

A arte egípcia não se baseou no que o artista podia ver, e sim no que ele sabia fazer partindo de uma situação ou de alguém, [...] mais do que uma capacidade de observar ou captar o real, a arte ocorre por convenções

aprendidas em diferentes momentos do desenvolvimento cultural. A

construção das imagens dava-se segundo o que era possível dominar, ou seja, de representações já apreendidas e reconhecidas. O conhecimento de formas associava-se ao entendimento dos significados das mesmas. (CAVALCANTE, 2010, p.100, grifos meus.).

Assim sendo, obedecendo aos determinantes estéticos da lei vigente neste tipo de expressão, o corpo não seria reconhecido em escorço, única e exclusivamente, devido às normas culturais que se desenvolveram no reconhecimento da imagem na relação social que se estabelece entre objeto representado, objeto-imagem-representada e o expectador da imagem que faz seu reconhecimento. Esta ambientação será decisiva na compreensão da construção dos estereótipos pelas imagens desenhadas e voltarei a ela no capítulo destinado a esta discussão.

Durante toda a trajetória da história da arte na antiguidade, os desenhos, em forma de pintura, afresco e mural, estamparam espaços com fins informacionais. Na arte da Grécia com as pinturas em cerâmicas, passando pelos murais etruscos e romanos, registrando fatos históricos nas paredes, em afrescos; dos mosaicos românicos até os desenhos em seda na China e as pinturas em papel no Japão. O auge da inserção do desenho ocorrerá na idade

média, por volta do séc. XII, com o surgimento das iluminuras. E são destas que se desenvolvem o nome e as técnicas das ilustrações.

Fig. 1.01, 1.02 e 1.03 – Exemplos de Iluminuras: “Cristo caminha pelo calvário”, “Cenas da Paixão” e

“Cantiga 140”. As Iluminuras serviam como elemento atrativo e decorativo dos livros e adiantava a narrativa aos “leitores”, dos que sabiam ler e daqueles que eram analfabetos. As cenas desenhavam, principalmente, cenas bíblicas, mas tambem práticas de cotidiano, lendas urbanas ou casos reais que, talvez, já circulassem no imaginário popular. Sua utilização crescente caminhou para incorporar muitas imagens sequencializadas formadas em pranchas de página única.

Os livros deste período tinham grandes desenhos na abertura de capítulo ou nas capas internas, que além de coloridos eram ricamente ornamentados com folhas de ouro e, devido ao brilho do metal, ficaram conhecidos como “Manuscritos Iluminados” (Fig. 1.01 a 1.03). Estas decorações eram executadas por um artífice que incrementava o desenho aplicando-lhe o metal e as cores. O tempo corrompeu o termo fazendo surgir o ilustrador e a ilustração. A partir daí, aqueles desenhos que acompanhavam as mensagens sagradas passaram também a “iluminar a alma”. (MEGGS, 1998; ZEEGEN, 2005).

É neste período que a complexa estética do processo de desenhar começa a se estruturar. Ao mesmo tempo, o autor do desenho aprende que deve reproduzir um esquema comum (de seu mentor, por exemplo), e, posteriormente, poderá incluir variações na construção (o princípio da liberdade estética):

A formação do artista medieval ocorria de uma maneira diferente da conhecida na atualidade. Iniciava-se como aprendiz de um mestre, de quem seguia instruções para a realização de partes menos importantes de uma determinada obra. Aprendia-se a copiar e recompor cenas de livros antigos, adequando-os a outros contextos. Aos poucos, adquiria certa desenvoltura para uma cena desconhecida e sem modelos. Não havia a noção de caderno de estudos para registro da observação da natureza e nem a ideia do ‘retrato fiel’ de alguém, mas sim um desenho convencional com alguns sinais para o reconhecimento da personalidade representada. (CAVALCANTE, 2010, p.107-108).

As iluminuras foram frequentes até o séc. XVI, até o surgimento da tipografia impressa que permitiu a serialização e reprodução dos livros. Não foi apenas a imprensa de Gutemberg que revolucionou a impressão dos textos. As imagens também ganharam o espaço da reprodução serializada com o surgimento das técnicas de gravura. Quando a lógica da impressão tipográfica foi aplicada à técnica do baixo relevo na madeira, descobriu-se a possibilidade desta superfície replicar as imagens em positivo6, e posteriormente, imagens coloridas, com grande fator comercial, ao agregar valor às publicações7.

6 Surgia assim a xilogravura que usava as bases de madeira, e que, devido a durabilidade, não tardou para que

fosse substituída pela pedra e pelo metal, gerando a litogravura e água-forte, respectivamente. Muitos historiadores da arte (GOMBRINCH, 2002; CAVALCANTI, 2010) e designers (MEGGS, 1998; ZEEGEN, 2005) afirmam que a técnica da xilogravura surgiu na China e foi levada até a Europa, onde, por sua vez, foi aplicada ao metal e ao vidro. A influência das técnicas e do estilismo asiático foram muito importantes no desenvolvimento do desenho ocidental. Explorei uma parte deste assunto em minha dissertação de mestrado sobre os mangás nacionais (cf. BRAGA JR, 2011[2005a]).

7

Segundo, Schmitz (2008, [s.p.]): “A técnica da fotogravação de matrizes litográficas e a evolução dos materiais e métodos empregados em litografia durante o século XIX possibilitou a impressão de imagens em varias cores, utilizando-se uma matriz para cada cor. Esse avanço da técnica foi chamado de Cromolitografia. A ilustração comercial conquista nesse período cada vez mais liberdade de criação. Surgiu a figura do cromolitógrafo que, após o trabalho do ilustrador, decompunha e transferia as ilustrações paras as pedras litográficas, esse trabalho exigia um estudo minucioso da ilustração para que os tons fossem escolhidos e reproduzidos da forma correta. A

Dois fatos são importantes. Primeiro, a reprodução da imagem não apenas popularizou seu consumo e acesso, mas permitiu que a técnica (visando a reprodução e a comercialização) fosse empregada em novos procedimentos, artísticos, sociais e científicos de maneira mais intensa; segundo, a colorização das imagens reproduzidas não foi apenas um meio de agregar valor. Ela será o elemento principal do valor de realidade, ampliando, semioticamente, sua percepção de verossimilhança com seus referentes reais (estereotipia) (Fig. 1.04 a 1.06).

Fig. 1.04 – “Detalhe da iluminura da Cantiga 140. Nossa

Senhora abraça o Cristo crucificado. [...] Ela fita o grupo de homens à direita da cena. Suas capas, chapéus

pontiagudos e narizes aduncos entregam sua origem: são judeus. [...]. Indiretamente, são acusados da morte de

Jesus, pois, à esquerda, outro judeu porta a lança utilizada para o golpe de misericórdia nas costelas do crucificado”. (COSTA; DANTAS, 2008, [s.p.], grifos meus). As imagens desenhadas do tipo iluminura já apresentavam o papel de agentes reprodutores dos estereótipos. Caracterização física dos personagens apresenta ideias que os relacionam a um determinado grupo étnico (no caso, judeus). Este papel acompanhara toda a produção de desenhos e será que continua nos quadrinhos modernos?

Fig. 1.05 e 1.06 – “Mulher engravida do Próprio

Irmão” e “Mulher tem filhos do próprio Irmão”. As iluminuras retratam situações do cotidiano polêmicas e seus destinos como o julgamento do casal pelo rei ou o descarte da criança fruto do incesto. As iluminuras não serviam apenas como elemento estético atrativo, mas já atuavam como imagens moralizantes a apresentarem uma sequencia narrativa de apoio ao texto.

O desenho, em forma de ilustração, se expressará de duas formas técnicas, desassociadas como expressão artística (naquele momento, vinculado à religiosidade e à

cromolitografia caiu nas graças de editores e tipógrafos pois, além da melhora na qualidade das ilustrações, poderiam ser criados títulos e estilos tipográficos com toda a liberdade pelo artista ou ilustrador.”

historicização), para apoiar o desenvolvimento do pensamento científico e a pesquisa. Com a cartografia e com a ilustração científica, o desenho ganhará status de agente reprodutor da realidade, sem outras conotações.

A cartografia surgiu como uma técnica que permitia captar a essência de um espaço geográfico e reproduzi-lo sobre uma superfície bidimensional com possiblidade de guiar as ações do leitor em comparação com a paisagem. Tratava-se de uma forma pictórica de orientação espacial com possiblidades de descrição, confiáveis, dos aspectos físicos de uma localidade como relevo, profundidades, dimensões e formas geológicas. Mapas cartográficos existem desde a época dos egípcios, mesopotâmios, maias e astecas. Acompanhou toda a trajetória das civilizações ao redor do mundo, da Grécia ao Japão. Obviamente, a cartografia consistia na utilização dos traços e riscos, comumente utilizados no desenho, para a produção de uma realidade que se propunha real, correspondente ao concreto, observável pela visão do expectador. Nunca foi considerada uma leitura, interpretativa, da realidade, mas, uma reprodução desta8. Foi através destes mapas que a noção de território e lugar se materializaram na possiblidade da referência:

As figurações cartográficas são uma espécie de discurso condensado. Elas incutem uma grafia em seus planos. Trata-se, portanto, de aprender a ler os registros e enxergar através dos olhos de outro. Desta forma, busca-se descobrir as técnicas da caracterização espacial, a produção de uma ordem, a seleção, classificação e interpretação dos elementos de uma paisagem. Mas também nas significações dadas não se pode deixar de perceber a peremptória presença do desejo. Técnica – uma competência -, desejo – uma performance – e poder – uma pragmática – coadunam-se na semiótica espacial exposta nas cartas. (QUADROS, 2008, p.30).

Os mapas e cartografias sempre foram lidos como instrumentos de indicação geográfica. Não se questionava o fato do desenho ser um agente mediador da percepção ou de servir como guia dos passos de um individuo. Questionava-se se era bem feito ou mal feito, simplesmente. Se estava ou não atualizado, política ou fisicamente; se a escala era ou não apropriada; e assim por diante. É só mais recentemente que os estudiosos se voltaram para estes desenhos com o intuito de interpretar sua dimensão “social”, lendo os mapas não mais como instrumento de orientação espacial, mas como fonte histórica e, posteriormente, como

8

Sabemos que nenhum mapa reproduz a realidade. Todos são construções, de certa forma, arbitrárias (haja vista as diferentes correntes/teorias sobre captação cartográfica e, principalmente, devido ao principio da “escala de representação”), que possibilitam a circulação de um determinado tipo de consenso sígnico que permite a correlação entre os sinais, em formas de linhas, pontos e traços, com as estruturas geológicas dos espaços físicos. Deve-se levar em conta o aspecto de socialização ou de aprendizagem cultural para decifrar e compreender os mapas.

uma forma de conhecimento sobre o “social”, política, cultural e economicamente orientado (Fig. 1.07 a 1.09).

Fig. 1.07 – “Carte Geografiche. Séc. XVI” de Giacomo Franco. Os mapas e cartografias utilizaram o

desenho para orientar diversos aspectos da realidade, mas principalmente os aspectos geográficos e políticos. Os desenhos não são reproduções da realidade, mas criaram um sistema de sinais gráficos, que pelo consenso (de ordem científica), passaram a representar a realidade. Não se contesta ou se questiona os vínculos de realidade contidos nos mapas, mas apenas se conseguiram ou não representar adequadamente a realidade. Com os mapas temos um atestado de como os desenhos podem ter vínculos diferenciados em relação a tradução da realidade para os indivíduos.

Fig. 1.08 e 1.09 – “Mapa da Cólera de John Snow” e Cartum de Polo sobre suas descobertas. Segundo

Cairo (2011), Snow foi um pioneiro no uso do desenho na pesquisa estatística com objetivo de desvendar um problema “social”. Na Londres de 1854 as autoridade não sabiam como controlar o surto por morte de cólera. Snow pegou um mapa da cidade e começou a marcar traços para cada morte conforme os endereços das pessoas e percebeu que havia um padrão pelo qual as mortes circundavam uma determinada bomba d’água que, ao ser fechada, findou o surto. O mapa e o desenho o ajudaram a desenvolver sua hipótese (refletida no cartum ao lado) sobre a questão do contágio da doença junto à sociedade médica londrina e ao estabelecer um raciocínio visual, em torno das marcas gráficas do mapa. Seu rústico infográfico atribuiu ao desenho um status ainda ignorado: o uso do desenho para compreender problemas de pesquisa.

Estas orientações despertaram nos pesquisadores potencialidade de uso dos mapas como novas fontes de pesquisa, como atesta Harley (2009, p.02):

Os mapas serão considerados como parte integrante da família mais abrangente das imagens carregadas de um juízo de valor, deixando de ser percebidos essencialmente como levantamentos inertes de paisagens morfológicas ou como reflexos passivos do mundo dos objetos. Eles são considerados imagens que contribuem para o diálogo num mundo socialmente construído. Nós distinguimos assim a leitura dos mapas dos cânones da crítica cartográfica tradicional e de seu rosário de oposições binárias entre mapas “ verdadeiros e falsos ”, “ exatos e inexatos ”, “ objetivos e subjetivos ”, “ literais e simbólicos ”, baseados na “ integridade científica ” ou marcados por uma “ deformação ideológica ”. Os mapas nunca são imagens isentas de juízo de valor e, salvo no sentido euclidiano mais estrito, eles não são por eles mesmos nem verdadeiros nem falsos. Pela seletividade de seu conteúdo e por seus símbolos e estilos de representação, os mapas são um meio de imaginar, articular e estruturar o mundo dos homens. Aceitando-se tais premissas, torna-se mais fácil compreender a que ponto eles se prestam às manipulações por parte dos poderosos na sociedade.

Harley (2009, p.05) enumera ainda diversas situações onde os desenhos de mapas e cartografias prestaram um serviço político-ideológico (desassociado de seu aspecto orientador do espaço físico), no fortalecimento dos impérios e de suas ações, ora “os mapas terrestres detalhados eram elaborados em conformidade com as prescrições dos dirigentes das sucessivas dinastias e serviam como instrumentos burocráticos e militares e emblemas espaciais do Império”, ora como “para a defesa e para a guerra, para a administração interna ligada à expansão do governo central, e como instrumento de propaganda territorial com o objetivo de legitimar as identidades nacionais”. Assumiram a função de comprovantes como documentos de propriedade sobre as terras, ou a distorcerem, intencionalmente, as informações representadas, com fins políticos, militares ou simplesmente, para demonstrar poder ou controle econômico:

Os mapas aparentemente objetivos se caracterizam também por manipulações freqüentes de seu conteúdo. A censura cartográfica implica uma representação intencionalmente errônea que visa a enganar os usuários potenciais, geralmente aqueles considerados como oponentes do status quo territorial. Não se deve confundir com as supressões ou acréscimos relativos a um erro técnico, à incompetência, ou aos imperativos de tamanho ou de função. A censura cartográfica suprime dos mapas os elementos que, em geral, se deveria encontrar. Naturalmente, é mais difícil de notar que uma distorção patente. Justificadas por motivos de segurança nacional, de concorrência política ou de necessidade comercial, estas censuras são ainda largamente praticadas. A imagem censurada marca os limites do discurso autorizado e as omissões intencionais impedindo a representação de certos elementos; daí as ausências, origem de mal-estares por aqueles que são intencionalmente esquecidos. (HARLEY, 2009, p.11).

A aplicação da construção de imagens por desenhos referenciados na topografia do espaço relegaram à cartografia um status muito superior aos desenhos de artistas ou outras formas de ilustração. Prestar-se ao serviço científico foi decisivo para o estabelecimento deste novo patamar. Como esclarece Harley (2009, p.09):

A idéia de que os mapas podem produzir uma imagem “cientificamente ” exata do mundo, em que as informações fáticas são representadas sem pré- julgamentos está bem fundada na nossa mitologia cultural. Reconhecer que toda cartografia é uma ficção complexa, controlada, não nos impede de conservar uma distinção entre as apresentações do conteúdo dos mapas que são deliberadamente induzidos por um artifício cartográfico e aqueles em que o conteúdo estruturante da imagem não é examinado.

Entretanto, os desenhos cartográficos e as outras modalidades de desenho compartilham os mesmos instrumentos e regras de criação na representação gráfica. Escala, proporção, necessidade de representar o real com verossimilhança, entre outros aspectos, são observados pelos dois grupos. Assim, o que faz um ser completamente aceito como forma de conhecimento da realidade e os outros não? E ainda, estes efeitos políticos e sociais, identificados por Harley (2009) podem ser equitativos às demais modalidades de desenho? Minha sugestão de respostas para estas questões, em conformidade ao que já foi atestado por Latour (2000) em torno do uso dos mapas pelos cientistas, virá na decorrência dos capítulos deste trabalho. Antes de deixar estas informações claras, preciso retomar outra forma, também aceitável de conhecimento da realidade, assumida pelo desenho, nas ilustrações científicas.

A ilustração cientifica é a forma mais evidente do uso dos desenhos no campo das