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Como compreender a imagem desenhada como objeto? Ao assumirem os valores de troca monetária (transformando-se em mercadorias) as HQs são materializadas e se objetificam. O valor de circulação recai sobre estes objetos atribuindo-lhes valor simbólico. Editores impulsionam a produção visando ampliar seu valor de troca e agregar mais valor. Estas ações se desenvolvem interferindo no aspecto estético-material (tipos de papel de impressão, impressão colorida, volume do impresso) até os aspectos estético-conteudistas (tipo de colorização, tipo de desenho e temas da história). Assim, o elemento de circulação parece desenvolver uma interferência importante nestes materiais. E, segundo a perspectiva ainda humanista de Arjun Appadurai, trata-se de um vínculo político:

48 E neste ponto há uma concordância de Morin com Baudrillard (2004) ao identificar na erotização uma

estratégia publicitária de convencimento sobre o consumo dos objetos. Baudrillard aplica isso à essência da publicidade e não da passividade. Tudo que a publicidade toca caminha por uma “carga libidinal” (2004, p.182). É uma manipulação, mas que, em Baudrillard, não é relacionada aos agentes dominantes, mas às necessidades do próprio sistema dos objetos que são feitos para serem comercializados.

[...] a troca econômica cria valor; o valor é concretizado nas mercadorias que são trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas nas formas e funções da troca, possibilita a argumentação de que o que cria o vínculo entre a troca e o valor é a política, em seu sentido mais amplo. (APPADURAI, 2008, p.15).

O capital crucial para a obtenção de lucro na mercantilização das HQs é o capital cultural, historicamente circunscrito. A reprodução da realidade é o eixo norteador do processo de produção. (É algo que parece ter destaque, pois a Editora Marvel, diferente das demais, busca equilibrar fantasia e realidade de maneira correlacionada, onde uma é contexto da outra.).

Seguir as revistas em quadrinhos. Esta foi a trajetória da pesquisa. Minha suposição é de que sua circulação é um elemento de destaque importante para uma mudança significativa em sua relação com o “social”. Apesar da perspectiva de Appadurai caminhar ainda numa procura por intenções nas relações entre sujeitos e objetos (que tendo a desconsiderar), ela aponta como a questão econômica pode ser suplantada (por vias de um princípio mercantil, que é a circulação). De mero mecanismo reprodutor, enquanto objeto político ou ideológico, às vezes meramente mercantil, quando posto em circulação, em alguns casos, apresentará um novo tipo de agência. Isto é, um objeto que provocará mudanças sociais. Para tanto, (sem que este posicionamento comprometa minha abordagem teórica) é possível colocar em pauta tal hipótese e seguir os passos do objeto, de sua produção ao seu consumo, como proposto por Appadurai (2008, p.17):

[...] temos de seguir as coisas em si mesmas, pois seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias. Somente pela análise destas trajetórias podemos interpretar as transações e os cálculos humanos que dão vida às coisas. [...] são as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano e social.

Para analisar a circulação de um objeto na sociedade e seus vínculos com o “social”, segundo a metodologia humanista proposta por Igor Kopytoff (2008, p. 93) será necessário estabelecer um ciclo de vida biográfico da própria coisa, pois “examinar as biografias das coisas pode dar grande realce a facetas que de outra forma seriam ignoradas.” Desta forma,

Ao fazer a biografia de uma coisa, far-se-iam perguntas similares às que se fazem às pessoas: Quais são, sociologicamente, as possibilidades biográficas inerentes a esse ´status´, e à época e à cultura, e como se concretizam essas possibilidades? De onde vem a coisa, e quem a fabricou? Qual foi a sua carreira até aqui, e qual a carreira que as pessoas consideram ideal para esse tipo de coisa? Quais são as ‘idades’ ou as fases da ‘vida’ reconhecidas de uma coisa, e quais são os mercados culturais para elas? Como mudam os usos da coisa conforme ela fica mais velha, e o que lhe acontece quando a sua utilidade chega ao fim? (KOPYTOFF, 2008, p.92).

Neste primeiro momento analiso as histórias em quadrinhos como objetos que carregam as “marcas das estruturas sociais” (STALLYBRASS, 2012, p.25), adquirindo assim uma “vida social própria e complexa” tal como as colchas de uma operária da Nova Inglaterra do século XIX descritas pelo Peter Stallybrass no seu pequeno “O casaco de Marx: roupas, memória, dor” onde as trajetórias dos objetos são decisivas para compreender as das ideias. Como lá, a preservação das roupas demonstra sua instância econômica e simbólica, como capital, herança, moeda e propriedade. Aqui, os quadrinhos também circulam. Não chegam a se tornar herança – apesar do grande número de colecionadores e vendagens com valores astronômicos de itens considerados raros – mas também são preservados. E, ao contrário daquelas roupas, ainda circulam, mesmo tendo 50 anos de quando produzidos (nas gibiterias e livrarias).

Os quadrinhos são governados pelas comics shops que mantêm em seus acervos uma disponibilidade contínua das publicações, independente de quando foram produzidos. Enquanto na análise humanista de Stallybrass são os corpos das vestimentas que mudam, preservando-as, aqui, os corpos também atuam em sentido semelhante. Os corpos mudam, os leitores mudam e as revistas continuam com seus mesmos propósitos. Circulam e são lidas, colecionadas e trocadas como objeto mercantil e objetos até sagrados, pelos conteúdos e momentos que registraram. E terminam sendo uma forma de memória muito mais complexa e incisiva do que as vestimentas. Pois seus fatos são visíveis e seus vínculos com as narrativas tradicionais memoriais ainda mais explícitos. São imagens de uma época e narrativas de um tempo. Torna-se assim como o fustão descrito por Stallybrass (2012, p.61) uma “memória material”. Porém, ao tratar as imagens desenhadas como “memória”, recairíamos numa abordagem humanista, impondo-as uma visão determinista.

Esta memória material vincular-se-ia, por sua vez, a um problema relativo à construção de imagens desenhadas e a necessidade destas de representar o “social” (e não me refiro às representações sociais!). A seleção de imagens que os desenhistas usam para recompor suas prospecções imagéticas (o desenho das imagens ou as imagens desenhadas) não é aleatória ou, muito menos, sem propósito. Eles as selecionam. Projetam sobre o papel atributos, características e habilidades idealizadas, é verdade, mas também as selecionam a partir de processos internos inerentes ao ato de desenhar. Estas imagens se constroem sobre um “design”, isto é, esta habilidade de projetar através do desenho um conceito. Não é (e não me refiro) ao simples ato de desenhar – construir imagens significantes através de riscos sobre uma superfície – mas exatamente prospectar princípios estéticos que sejam verossímeis aos

leitores e possam levá-los a identificar o objeto\coisa enquanto algo com significado. Esta etapa é primeiramente da forma (aparência) e posteriormente do conteúdo. (Esta dimensão é importante para compreender o objeto e suas performances, para tanto, retornarei a esta problemática nos capítulos 3 e 4).

É devido ao peso de sua dimensão estética que as imagens desenhadas precisariam também ser avaliadas como objetos. É pela dimensão estética da mídia que estas características supracitadas se manifestam. São fatores que não podem ser alcançados pela dimensão da linguagem textual, só pela imagem. As HQs são um objeto vivo com dinâmica própria e capaz de orientar a ação dos indivíduos, tanto de seus produtores, quanto de seu público. Como a noção de objeto pressupõe um inanimismo, trata-se de uma coisa não- humana, feita por humanos e para humanos. Mas é justamente enquanto objeto-coisa que os objetos ganham a animação. Os quadrinhos são ao mesmo tempo coisa e objeto: “Como testemunho do mundo visto, o desenho não é preparatório para nada, mas é a coisa, ou a representação da própria coisa.” (ALPERS, 1999, p.132). São coisas, porque são vivos. São um tipo de estrutura mutável e maleável que tem durabilidade indeterminada (tanto quando é materializada em revistas e álbuns). É preciso ter em mente que se trata de um objeto híbrido. Tanto se refere a um produto material (revista, por exemplo) como refere-se à linguagem de expressão, tal qual produzir uma história em quadrinhos em pranchas desenhadas (o ato de desenhá-las). Os quadrinhos são, ao mesmo tempo, produto e linguagem de produto. Para uma compreensão mais ampla, poderia referir-me às HQs como “coisa”, conforme descrito por Ingold (Citando Heidegger):

[...] é um "acontecer", ou melhor, um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam. Observar uma coisa não é ser trancado do lado de fora, mas ser convidado para a reunião. [...] Há decerto um precedente dessa visão da coisa como uma reunião no significado antigo da palavra: um lugar onde as pessoas se reúnem para resolver suas questões. Se pensamos cada participante como seguindo um modo de vida particular, tecendo um fio através do mundo, então talvez possamos definir a coisa, como eu já havia sugerido, como um "parlamento de fios". Assim concebida, a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de estarem nele contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas. (INGOLD, 2012).

A coisa é algo que pode ser materializado, porém não se finda na forma. É algo essencialmente mutável, variável e vivo. Ingold antagoniza a relação entre coisa e objeto, posicionando-os como algo vivo e morto, possuidor de agência e sem ação. Sem adotar

totalmente sua posição, proponho uma terceira via, onde coisas e objetos se complementam e se relacionam com a agência sem as limitações impostas na teoria de Inglod.

Os objetos são estados situacionais das coisas. São momentos pelos quais as coisas se materializam e assumem uma forma definida e, visivelmente, finita. O conceito de objeto de Inglod é muito circunscrito e limitado. Para ele, o objeto é inanimado. Escapa de sua análise o fato que os objetos estão associados aos processos. Para ele, quando isso ocorre é um momento de mutação onde os objetos passam a serem coisas. Vejo de forma diferente. Os objetos possuem uma genealogia que os vincula a um processo. Retirá-lo deste vinculo é descaracterizá-lo de sua função objetificada. A função da pipa é voar (pipa-no-ar), quando pousada ou guardada – apesar de não deixar de ser pipa – ela não age como pipa. Ela não deixa de ser objeto quando está no ar, até porque ainda mantém o nome e a percepção – por parte das pessoas – quanto ao seu desígnio: pipa. Coisas e objetos caminham juntos. Invoco aqui a concepção sartriana que materializa a imagem, pela coisificação, em objeto, defendendo que tal instância permite-nos fugir da “metafísica ingênua da imagem” e do debate sobre essência e existência da relação imagem-objeto. Nesta concepção, a relação entre reprodução da realidade e materialização do objeto é suplantada. Se a imagem-objeto é mera reprodução, não haveria mais discussão que validasse suas instâncias e a imagem-objeto estaria relegada a inércia dos movimentos sociais. Minha perspectiva, neste trabalho, é diferente. A reprodução ao qual a imagem-objeto se vincula é apenas uma manifestação das qualidades de sua agência (crítica que retornarei em outro momento).

Para suplantar esta instância, talvez se fizesse necessário seguir Sartre (1984) quando define o movimento entre imagem e objeto pela coisificação de uma sobre o outro:

Essa forma inerte, que está aquém de todas as espontaneidades conscientes, que devemos observar, conhecer pouco a pouco, é o que chamamos coisa. [...] desde que desviamos o espírito da pura contemplação da imagem enquanto tal, desde que pensamos sobre a imagem sem formar imagens, verifica-se um deslize, e da afirmação da identidade de essência entre a imagem e o objeto passamos à de uma identidade de existência. Já que a imagem é o objeto, concluímos que a imagem existe como o objeto. [...] essa metafísica consiste em fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela mesma como uma coisa. (SARTRE, 1984, p.35-36).

E mais adiante:

A ontologia da imagem está agora completa e sistemática: a imagem é uma coisa inferior, que tem existência própria, que se dá à consciência como qualquer coisa e mantém relações externas com a coisa da qual é imagem. (SARTRE, 1984, p.37).

Matéria e consciência excluindo-se uma à outra, a imagem, na medida em que é desenhada materialmente, em alguma parte do cérebro, não poderia ser animada de consciência. Ela é um objeto, tanto quanto são os objetos exteriores. (SARTRE, 1984, p.39)

Esta definição situacional entre coisa, objeto e imagem, em Sartre, entretanto, não acrescenta maiores construtos explicativos à minha abordagem pós-humanista. O que me leva a descartá-la, pois termina por se configurar como uma proposta humanista (e às vezes, como apontaram seus críticos, anti-humanista).

Outro autor, que tem uma proposta diferenciada de sociologia dos objetos, é Jean Baudrillard. Em sua perspectiva há um peso de intencionalidades muito mais amplo: “A dimensão real em que vivem [os objetos] é prisioneira da dimensão moral que têm que significar” (BAUDRILLARD, 2004, p.22), pois pessoas e objetos estão interligados e um intervém no outro. São as pessoas que criam os objetos e lhe atribuem funcionalidades, da mesma forma que pessoas constituem suas ações a partir dos objetos em que se deparam nos contextos sociais. Esta funcionalidade é referente à utilidade primária de uma coisa que a torna pertinente no uso e que define, sobretudo, sua dimensão estética. A ideia de função em Baudrillard é resgatada da escola Bauhaus, onde a forma de algo deve ter vínculos diretos com seu uso e não uma interdependência estética e “disfuncional”. Tavares (2004, p. 220) aponta também que há uma segunda noção intrínseca, defendida por Baudrillard, relacionada a uma racionalidade onde “funcionalidade não qualifica de modo algum aquilo que se adapta a um fim, mas aquilo que se adapta a uma ordem ou a um sistema”. Neste sentido, Baudrillard defende (apesar das críticas do comentador supracitado) que os objetos manipulam os indivíduos. Este autor procura mostrar como os objetos são meios para analisar os fenômenos sociais: “A configuração do mobiliário é uma imagem fiel das estruturas familiares e sociais de uma época” (BAUDRILLARD, 2004, p.21).

Apesar disso, não aparece em Baudrillard nenhuma dimensão que acompanha as vicissitudes que acometem as relações entre pessoas e objetos. Ao contrário das ideias anteriormente citadas, Baudrillard enfatiza o papel dos objetos na determinação das ações dos indivíduos. O que não aparece neste autor é a dinâmica que transforma os objetos. Dinâmicas que não são inerentes simplesmente aos contextos sociais ou aos objetos, mas da relação entre eles. Penso que as imagens desenhadas (materializadas em revistas de quadrinhos de super- heróis) são ótimos exemplos destas vicissitudes. Em outros termos, a perspectiva de Baudrillard não leva em conta as diversas naturezas que os objetos podem assumir e recai, como nas perspectivas anteriores, numa visão assimétrica.

O que procurei mostrar até agora é que as imagens desenhadas podem ser vistas como objetos também. Sua dimensão de objeto decorre da própria materialização do desenho em impressão de revista, mas também do ato humano de colecionismo. O colecionismo, segundo Baudrillard (2004) muda a função das coisas-objeto. Se antes uma coisa tinha uma função qualquer (como a revista em quadrinhos ser mero veículo de entretenimento descartável) ao ser colecionável ele é abstraído de sua função e requalificado pelos indivíduos, reforçando, inclusive, seu estado de objeto-arte: “Todo objeto tem desta forma duas funções: uma que é a de ser utilizado, a outra de ser possuído” (BAUDRILLARD, 2004, p.94). O “ser possuído” se torna um “objeto-paixão” que o leva à apreciação com os mesmos prognósticos de objeto artístico ao ocasionar uma “satisfação pulsional” (Com a ressalva de ter seu desempenho em um grupo específico de indivíduos - os colecionadores. O que não é muito diferente do mundo da arte consolidada!). Enxergar as imagens desenhadas como objetos nos permite também escapar da máxima da teoria crítica ao restringir toda a mercantilização à dominação. Pois os objetos nascem, independente de suas funcionalidades, em um sistema de comercialização ou “sob o signo do crédito”, da publicidade e do consumo, como adverte Baudrillard (2004). Cientes do colecionismo e de seus impactos no consumo, os produtores visam atingir os colecionadores, criando uma influência circular, conforme descrita por Baudrillard (2004, p.97): “O Objeto [...] é para o homem como uma espécie de cachorro insensível que recebe as carícias e as restitui à sua maneira, ou antes as devolve como espelho fiel, não às imagens reais mas as desejadas.”

A presença destas instâncias que descrevem uma gama complexa de situações sociais nas histórias em quadrinhos deve estar associada ao processo e à necessidade de se vincular à realidade. Os acontecimentos e variações que ocorreram no universo dos quadrinhos ao longo das épocas de publicação e republicação demostram que esta “coisa é viva” (INGLOD, 2012) e que almeja, sobretudo, manter-se conectada à sociedade. Em outros termos, que suas vicissitudes e dinâmicas são processos de associação com o “social”.

É com estas perspectivas em mente que a natureza de uma imagem desenhada de uma história em quadrinhos não pode ser vista como arte ou obra de arte (ela não o é), nem tão pouco como mídia de massa (já que apresenta diferenças enormes com os demais produtos midiáticos) e nem tão pouco como um objeto inanimado cujas funcionalidades são conduzidas pelos indivíduos ou o contrário, com autonomia determinante. Elas devem ser vistas como um conjunto destes fatores, em hibridização. Devem ser tratadas como objetos artístico- midiáticos de entretenimento.

2.4.

Por uma Síntese entre Coisa e Objeto: a Imagem Desenhada como