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2.6 Uma Metodologia para a Imagem Desenhada ou Como Estudei os Objetos

2.6.3 As Estratégias De Investigação

Neste ponto é importante esclarecer como ocorreu a intervenção no campo e a coleta de dados para a pesquisa. Foi feita uma varredura em diversos materiais relacionados às publicações de quadrinhos: guias oficiais da editora Marvel Comics contendo as fichas biográficas de personagens, publicações oficiais da editora traçando o desenvolvimento histórico da editora; coletâneas de cartazes e capas das revistas e acervos físicos e virtuais de diversas coleções de gibis da Marvel. Após a leitura e varredura inicial, se desenvolveu a construção de uma amostragem intencional, baseada na problemática, com base em categorias relativas às dimensões étnico-raciais (gênero e “raça”) e a elaboração de modelos para a compreensão destas e de sua relação com a problemática. Essencialmente, o que se teve, foi o desenvolvimento de uma metodologia acumulativa e flexível, baseada nos dados e no problema de pesquisa.

Em relação ao processo de afunilamento da pesquisa foi necessário estabelecer condições cabíveis de execução e propício para uma representatividade (refiro-me à sustentação das inferências). Entre as imagens desenhadas (ilustrações, charges, cartuns, caricaturas, tiras e HQs) foram eleitas as Histórias em Quadrinhos e alguns elementos congêneres que acompanham as revistas de HQs: pôsteres, sessões de carta, capas e fichas de personagens. Dentro deste universo, os quadrinhos de super-heróis, entre estes, aqueles produzidos nos Estados Unidos da América e lá, os publicados por uma editora chamada Marvel Comics. Apesar deste afunilamento, os dados ainda são muito amplos, exigindo uma delimitação ainda mais redutora. Para equacionar a delimitação o último fator redutor foi o número de revistas que consegui mapear, configurando desta forma, uma amostragem intencional, não-probabilística e longitudinal. Ou, segundo a terminologia de Flick (2009), uma amostragem gradual sobre coleções completas. A lista definitiva de revistas, gibis, álbuns e demais publicações estão listadas no Anexo A – Lista das revistas de HQ consultadas. Uma das minhas hipóteses previa que seria possível identificar algum mecanismo interno às HQs que explicasse suas vicissitudes quanto às representações dos esquemas sociais. Para não cair

numa explicação intencionalista de valores, busquei comparar o uso das categorias ao longo do tempo como um meio de identificar os meios processuais de sua performance.

Muitas destas revistas estão disponíveis em bibliotecas digitais e na internet contendo todas as edições sequencializadas, o que permitiu um acesso rápido e direto aos materiais já publicados na língua original. Em alguns casos, casos identificados em revistas brasileiras foram exemplificados usando imagens das revistas originais, pelo simples fato da imagem digital já se encontrar pronta para inserção no trabalho. Esta situação configura ao estudo um caráter exploratório e mapeador, ainda não disponível, que mapeou, através de uma análise de conteúdo, as dinâmicas de representação visual destas histórias em relação aos temas eleitos (gênero e “raça”). Ao objetivar a análise de um número maior de publicações também possibilitou uma maior segurança quanto à influência da seleção de materiais durante a coleta de dados, conforme exposto por Cellard (2008). As questões levantadas por este autor, como representatividade e credibilidade dos documentos, ficaram evidentes, devido ao fato de serem publicações que atingiram dezenas de anos em constante sequência e publicação ininterrupta no Brasil. E ainda, segundo Cellard (2008, p. 297), tais documentos se enquadrariam como “documentos públicos não-arquivados”.

O longo intervalo de tempo (1960 a 2014) me permitiu trabalhar com estas publicações como documento, observando a diversidade de representações visuais temporais sobre os aspectos eleitos na pesquisa e identificando suas mudanças e esquemas adaptativos ao longo do tempo conforme as dinâmicas sociais nas políticas relacionadas às categorias e ao discurso étnico-racial. O que se pretendeu fazer foi construir um inventário amplo destas revistas\histórias, seguidas de uma seleção rigorosa do material que levou a desenvolver uma codificação necessária (similitudes e diferenças) para compreender e\ou responder o problema da pesquisa. O grande volume de material esteve relacionado ao nível pretendido de representação e validação da pesquisa, levando ainda em consideração o aviso de Cellard (2008, p. 298): “Uma pessoa que deseje empreender uma pesquisa documental deve, com o objetivo de constituir um corpus satisfatório, esgotar todas as pistas capazes de lhe fornecer informações interessantes”. Este esgotamento, em minha análise, só foi possível com a análise da coleção completa de dados, possibilitando desenvolver inferências mais abrangentes. Esta completude refere-se não a obra completa (tudo), mas à totalidade (todo) de dados disponíveis no mercado (impresso e digital). É uma totalidade referente ao acesso que tive aos dados.

Por fim: esta análise foi constituída das revistas em quadrinhos de super-heróis da editora Marvel, republicadas até 2014, e demais publicações correlatas como guias de leitura da editora e compêndios sobre personagens e enredos relativos às revistas e personagens da

editora; assim sendo, levou-se em consideração a análise penta dimensional proposta por Cellard (2008, p. 299-303), a saber: o contexto, os autores, a autenticidade, a natureza da publicação e os conceitos-chaves e a lógica interna das publicações. Estas dimensões, ao serem levadas em conta, minimizariam as principais críticas sobre o método de análise.

Estas fases dimensionais permitiram unir a análise documental à análise de conteúdo. A análise de conteúdo é uma das técnicas que possibilita sintetizar muitos dados e torná-los cabíveis de entendimento e uso nas pesquisas. Também, tendo em vista os objetivos teórico- metodológicos (reprodução, estereótipos, agência em uma perspectiva pós-humanista) pareceu-me indissociável deste tipo de análise, conforme exposto por Bauer (2002, p.192):

Podemos distinguir dois objetivos básicos da análise de conteúdo ao refletir sobre a natureza tríplice da mediação simbólica: um símbolo representa o mundo; esta representação remete a uma fonte e faz apelo a um público [...]. Através da reconstrução de representações, os analistas de conteúdo inferem a expressão dos contextos, e o apelo através desses contextos. Se enfocarmos a fonte, o texto é um meio de expressão. Fonte e público são o contexto e o foco de inferência. Um corpus de texto é a representação e a expressão de uma comunidade que escreve. Sob esta luz, o resultado de uma AC é a variável dependente, a coisa a ser explicada. Textos atribuídos contêm registros de eventos, valores, regras e normas, entretenimento e traços do conflito e do argumento. A AC nos permite reconstruir indicadores e cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, preconceitos e estereótipos e compará-los entre comunidades. Em outras palavras, a AC é pesquisa de opinião pública com outros meios. Quando o foco está no público, o texto é um meio de apelo: uma influência nos preconceitos, opiniões, atitudes e estereótipos das pessoas. Considerando os textos como uma força sedutora, os resultados da AC são variáveis independentes, que explicam as coisas. A modalidade desta influência é ainda controvertida; contudo, a AC fornece as variáveis independentes no delineamento de estudos sobre efeito da mídia, sobre o estabelecimento da agenda ou em estudos de desenvolvimento.

Apesar da descrição de Bauer ser extremamente amparada numa visão humanista que busca intencionalidades e determinismos, eu abdiquei desta perspectiva ao fazer um exercício de usar a análise de conteúdo como instrumento estéril, no sentido de não atribuir aos sujeitos (humanos ou não-humanos) ações intencionais, mas de criar um panorama que me permitisse ter acesso a um contexto histórico amplo que me sinalizasse os momentos de vicissitude. Não pude observar in loco minhas evidências empíricas, mas como meu objeto é material e deixou rastros observáveis, o que fiz foi acompanhar seus rastros, seu trânsito e sua gênesis (Assim como fez Latour [2000]).

A Análise de Conteúdo foi escolhida como instrumento substituto da etnografia latouriana, porém, objetivando superar o esquema de classificação sistemática e contagem de unidades de texto, constantemente criticadas por outras metodologias na Análise de Conteúdo,

alegando superficialidade no método. Procurei desenvolver uma triangulação com o contexto histórico-social e sua lógica interna (semiótica). Como alertado por Flick (2009, p.231): “[...] os documentos não são somente uma simples representação dos fatos ou da realidade. Alguém (ou uma instituição) os produz visando a algum objetivo (prático) e a algum tipo de uso (o que também inclui a definição sobre a quem está destinado o acesso a esses dados)”. E como já mencionei, o foco analítico previu identificar a performatividade destes documentos, por vias de seus ambientes de manipulação das imagens, tendo em vista que apesar de serem imagens inventadas ou produzidas, elas não deixam de conter informações importantes. Não se trata de considerá-las verossimilhantes à realidade, e nem denunciantes de valores, como atestam algumas abordagens: “a manipulação de imagem visual pode ser mais sutil e oculta, mas ela é claramente ideológica” (LOIZOS, 2002, p.140). É com isso que foi privilegiado não só o contexto dos elementos analisados e identificados, mas também inferências de estruturas latentes a eles relacionados e, além do esquema de contagem, os casos individuais que contradizem os esquemas estatísticos totalizantes e o questionamento dos casos que não aparecem nas análises (ausências), conforme indicações de Loizos (2002) e Harper (1994).

Em conformidade com os pressupostos levantados por Bauer (baseados em Krippendorff), a análise de conteúdo, utilizada neste trabalho, procura verificar tendências e padrões de mudança, resultando num corpus aberto e um agente para estabelecer de forma indicial baseadas na construção e reprodução dos estereótipos e seu deslocamento nos últimos cinquenta e quatro anos nestas publicações. Configurando-se, desta forma, como uma análise longitudinal:

Nas análises longitudinais, as comparações abarcam o mesmo contexto por um período de tempo mais longo. Isso nos permite detectar flutuações, regulares e irregulares, no conteúdo, e inferir mudanças concomitantes no contexto. Estudos mais elaborados funcionam como indicadores culturais: eles podem considerar muitos contextos por um período de muitos anos, [...] (BAUER, 2002, p. 195)

As etapas consistiram na identificação de categorias raciais entre os personagens como “negros”, “latinos”, “brancos”, “indígenas” e “alienígenas” conforme o esquema utilizado pela própria editora e os lugares destes personagens no universo das histórias e suas localizações na perspectiva dos desenhos. E, dentro destas categorias, a identificação de outras subcategorias recortadas na vilania e na situação de gênero. Estas categoriais foram relacionadas a partir dos estudos sobre estereótipos, elencadas como as mais recorrentes de identificação de padrões.

Após a identificação em quadros de contagem, foram utilizados gráficos de dispersão com o objetivo de comparar as unidades umas com as outras, apenas com o objetivo de tomar um panorama geral sobre a situação e sua representação visual. A partir do momento que foi possível mapear toda a trajetória destes personagens, foi feito uma busca localizada em registrar suas mudanças de representação visual, isto é, como um determinado personagem foi sendo desenhado ao longo dos anos e se houve mudanças na sua caracterização e, em caso positivo, que mudanças estéticas foram estas e quando, na linha do tempo, ocorreram. Estas “mudanças” são essencialmente de representação visual, do design de um personagem. Claramente, não é referente a uma mudança de roupa, trejeito ou estilo de desenho, simplesmente, mas mudança na representação de sinais que se relacionam diretamente com os esquemas étnico-raciais (conforme exposto no capítulo 4). O que busquei foi mapear que tipo de estratégias foram utilizadas pelas HQs neste tipo de representação. E que decorrem da dinâmica interna do objeto (sua performance).

Minha proposta, portanto, foi integrar os diferentes modelos de explicação focados na imagem desenhada em uma perspectiva longitudinal sob a produção e circulação destas imagens, que avalia as mudanças em sua caracterização, identificando suas razões de condução (estereótipos) e seus efeitos não pretendidos (agência).

Ainda é necessário esclarecer que, no caso desta pesquisa, não se adentra no aspecto do uso destas imagens como objeto de registro do cientista social. Isto é, não é um produto pelo qual o cientista registra dados da realidade através do desenho (comumente utilizado pelos biólogos e naturalistas em seus estudos), mas do momento de usar imagens produzidas previamente, por diversos segmentos da sociedade, para compreender suas dinâmicas internas.

CAPÍTULO 3

3. .

IMAGEM DESENHADA E

REPRODUÇÃO DO “SOCIAL”

Neste e no próximo capítulo, começo a descrever um processo histórico consolidado na produção dos quadrinhos de super-heróis da Marvel como uma exemplificação dos processos de negociação e acomodação que se estabeleceram nestes materiais que exemplificam, a meu ver, a performatividade das revistas em quadrinhos, e, por conseguinte, a simetria entre as agências humana e não-humanas a qual fazem referência.

Não se trata de representação (pois o termo coloca os fatos como “sombras” nas relações entre humanos e não-humanos, indivíduos e objetos [PICKERING, 1995]), mas de performance. Não se trata, porém, de esquecer as representações. Aqui elas são restritas à sua dimensão material e, por isso, referem-se à imagem, ou simplesmente, como representação visual ou representação do “social”. Não se trata de uma redução de um para o outro, mas do trânsito intermitente por vias da agência material.

Esta performance inicia sua dinâmica na localização de suas autoimagens produzidas pelos indivíduos diretamente relacionada ao contexto social ao qual foram submetidas. As reproduções destas imagens, por um indivíduo especifico, terminam por serem catalisadas ou (re)apropriadas por outros num processo continuo de (re)significações. Considera-se aqui perceber o universo dos produtores de quadrinhos, os próprios quadrinhos e seus consumidores\leitores como agentes que estabelecem esta relação de dependência recíproca com o ambiente social, por vias da reprodução. Isto é, estou interessado em mostrar a rede sócio-técnica e sócio-cultural que as HQs tendem a seguir (e apesar de não ter me concentrado em uma revista em específico e proceder por uma via ainda generalista, é por decorrência de que este percurso é comum e compartilhado pelas HQs de super-heróis.).

A reprodução do “social” muitas vezes é entendida, por vias de uma lógica estruturalista e humanista, como agente determinante. Longe disso, busco mostrar como estas apropriações (reprodução do “social”) são frutos de um esquema performático da produção dos quadrinhos. I. e, não se trata de uma pressão social, mas de uma negociação entre o processo de produção material dos quadrinhos (maneiras de desenhar), as agências humanas

em seus contextos naturais e as mediações de outros materiais como as mídias impressas que, em um movimento contrário, exercem actância sobre o processo de produção dos quadrinhos.

São dois ambientes específicos (embora associados entre si). Um de natureza mais sócio-cultural e outro, estético-visual, conforme descritos a seguir.