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Nos tópicos anteriores busquei descrever, em breves momentos, como a imagem se manifestava em diferentes vertentes, enaltecendo características que são importantes para compreender as implicações da imagem desenhada. De seu uso na ciência natural, biológica e geográfica e de como, nestes ambientes, a imagem desenhada assume um status diferenciado de registro e meio de compreender a realidade que não é compartilhado em igual nível com as ciências sociais ou outras formas de conhecimento.

Com o advento da fotografia a noção de imagem é reconfigurada e passa a ocupar novos espaços de representação, influencia diversos segmentos (da arte, do entretenimento, do comércio e até da informação jornalística) e despertando novos interesses da ciência. Algumas considerações que os teóricos das imagens fotográficas fizeram sobre a fotografia são completamente incorporadas pela imagem desenhada. É o caso das definições de Cartier- Bresson do instante decisivo que já eram buscadas pelos desenhistas na constituição de suas

imagens. A observação e o registro de memória, além desta racionalização de base emocional que busca vincular o momento com a forma. Se antes se achava que as imagens não faziam isto, eram aleatórias, com as teses de Cartier-Bresson se mostrou que a imagem, mesmo quando capturada em um instante por um objeto mecânico e uma reação físico-química é um produto racional derivado da ação do indivíduo. Se esta racionalização acomete a fotografia, é ainda mais evidente e impactante na constituição dos desenhos. E ainda mais, em diversos momentos é possível perceber como as questões formais e técnicas (tipo de lente e aparelhagem, iluminação, distância entre o objeto e o fotógrafo, entre outros elementos técnicos) influem na escolha e no registro da imagem fotográfica. O ato fotográfico para Cartier-Bresson é uma mediação entre o individuo, a máquina e o contexto ambiental. (Mediação que é, antes de tudo, simétrica).

Quando se faz fotografia de moda ou fotografia publicitária ainda é forte a influencia do desenho, seja como técnica seja como desígnio (projeto, design). Os artistas idealizam suas imagens antes mesmo de fotografá-las. Há um conceito visual que precisa tomar forma para se vivificar nas imagens captadas pela câmera (Fig. 1.21 e 1.22). Em outras palavras, em vários tipos de fotografia - artística, publicitária, de moda, ensaística e até fotojornalística, como alguns estudos têm revelado (Cf. LEITE, 2000; SOUSA, 1998), há um planejamento da constituição da imagem no qual o fotógrafo faz um esboço da composição em lápis, criando um desenho da imagem ou de sua proposta de imagem.

Fig.1.21 e 1.22 – Estudos (rafe) em desenho, ensaio fotográfico, montagens das fotos (fotomontagem) e

versão final para a capa do LP de Grace Jones Island Life. Foto publicado na revista New York, em 1978 de Jean Paul Goude. O imediatismo da fotografia submisso ao planejamento do desenho.

Da mesma forma há o caminho inverso. Desenhistas usam fotografias para desenhar seus personagens e cenários, incorporando a visão fotográfica no desenho (mostrarei esta

prática no capítulo 3). É a imagem de referência para coisas que o desenhista desconhece ou não consegue reconstituir de memória. A foto passa então a ser um recurso mnemônico ao desenhista. E no caso dos retratistas e caricaturistas, quando da impossibilidade de desenhar pelo modelo-vivo, usa-se o modelo-por-foto. Assim, inúmeros processos que acometem as fotografias passam para o desenho devido a sua utilização.

Também é de conhecimento que o cinema29 tem tido constantes aproximações com os quadrinhos, se apropriando de criações estéticas como no caso de Winsor McCay, Bud Fisher e Pat Sullivan que criaram efeitos nos desenhos de suas HQs que terminaram por ser nominados no cinema como o zoom in/out (em Little Nemo in the Slumberland de McCay), por exemplo, ou ainda, os grandes planos gerais publicados pela primeira vez em 1906 e que só aparecerão no cinema em 1910, como as perspectivas aéreas e panorâmicas desenvolvidas em 1910 e que só serão utilizadas no cinema em 1916, entre outros recursos que não cabe aqui se deter. Outras produções e personagens de quadrinhos surgem com evidente influência do cinema como é o caso de Dick Trace, influenciado pelos filmes de gangster, Tarzan e Jim das Selvas, pelos filmes do próprio Tarzan e King Kong, cujas proximidades estéticas já haviam sido identificadas pelos críticos:

A plenitude horgarthiana seria alcançada em admirável síntese & [sic] intensidade estética, quer nos planos centrados em exatas espirais, quer no geometrismo dos enquadramentos (que tem a mesma força expressional dos enquadramentos de Eisenstein e Antoninoni, mestres do cinema). (CIRNE, 1970, p.35).

E também:

A montagem elíptica, que é também própria do cinema, seve para suprimir redundâncias e tempos mortos na articulação de gravuras significativas, ao mesmo tempo que permite ao leitor a reconstituição ideal do continuum narrativo, ao suprir mentalmente os ‘vazios’ entre gravuras consecutivas. (GUBERN, 1979, p.67).

Ou ainda, como diz Gubern (1974, p.92. Traduzi.): “O cinema e os quadrinhos caminham juntos ao incorporarem a sensibilidade popular.”. E também McCloud (2006, p. 204) lembra que não só os quadrinhos tiveram uma associação com as tecnologias de fruição que “passaram a ser definidas por elas”, como o cinema com a câmara ou a música com o instrumento que a produz, e os quadrinhos coma impressão gráfica.

Esta aproximação também se deu com as gags que se proliferaram nas tiras dominicais dos jornais americanos, fato também experimentado no cinema:

29 No Apêndice B explorei um pouco mais demoradamente os elementos de constituição da imagem

A mais antiga forma de narrativa completa no cinema é a gag, uma breve piada visual cujo desenvolvimento narrativo tem duas fases, a preparação e o desfecho inesperado. As curtas histórias contadas nas gags adaptavam-se bem à breve duração dos primeiros filmes. Por incluírem uma surpresa, as gags têm a temporalidade típicas das atrações contendo uma interrupção que finaliza a história sem permitir que a ação peça um desenrolar posterior do enredo. (GUNNING apud COSTA, 2006, p.33).

As gags também foram o berço de desenvolvimento dos quadrinhos no séc. XIX. As tiras cômicas ou tirinhas dominicais inundaram a produção ocidental tanto na Europa quanto nos EUA. Esta recorrência de gênero seria uma característica da época ou uma situação estética compartilhada por estas expressões artísticas (de ordem da imagem)? Ou uma influência recíproca entre estas linguagens (?): “por sua qualidade enquanto meio de comunicação de massa, os quadrinhos continuam a influenciar, uma vez que já foram influenciados pelas reações e acontecimentos protagonizados por aquelas coletividades. (…)” (GUBERN, 1974, p. 83. Traduzi.).

Outra relação de aproximação com os quadrinhos ocorre com os filmes mudos. Os intertítulos e os balões das HQs se equiparam ao cinema mudo. Os críticos, pela introdução do som nos filmes, não ousam agendar seu surgimento a partir desta introdução tecnológica, afinal, não encontra filme hoje que não se utilize dos recursos de som. Entretanto, a sonorização está para o cinema tanto quanto a balonização está para os quadrinhos, mesmo assim, ainda há críticos enaltecendo a introdução do balonário como fator decisivo a linguagem que conhecemos hoje. Também foi uma preocupação frequente no cinema a tentativa de estabelecer relações temporais e espaciais entre os planos, fato acompanhado de perto pelas HQs.

O cinema já com as primeiras animações de McCay e Disney começaram a utilizar desenhos esquematizados para organizar na fotografia fílmica, o recorte do ângulo, melhor enquadramento, melhor sucessão (transição de imagens) para o design do filme. Os chamados story boards são um tipo de história em quadrinhos metodologicamente usado como instrumento na concepção ou nas primeiras etapas da produção de um filme. Neste momento as linguagens da imagem desenhada e da imagem cinematográfica se mesclam criando um novo gênero estético com aplicações e linguagem próprias. Ainda assim, nos deparamos com certa dependência ou influência recíproca entre as duas expressões. Da mesma forma que os primeiros desenhos animados foram feitos por cartunistas, a produção dos story boards conta com profissionais que são desenhistas e que circulam pelo mundo da produção de imagens desenhadas (caricaturistas, cartunistas, chargistas, quadrinhístas etc.). A possibilidade de

incorporação de linguagens entre as duas áreas pela simples circulação do profissional é significativa30.

Apesar de o desenho produzir imagens através de pigmentos secos e, de maneira mais tradicional, dos pós secos ao lápis, do giz de cera ao pastel, do carvão à sangria, do bitmap ao vetor matemático, e, se utilizar de madeiras, bicos de pena, pontas de metal, canudos ou hastes articuladas, do mouse à caneta scan, o desenho hoje pode ser simplesmente idealizado e nem se utilizar de nenhum destes instrumentos, isto é, ser apenas concebido. Assim, aquelas modalidade que tanto os críticos e curadores gostam de se referir são anti-naturalizadas na expressão artística atual. A técnica mista que incorpora tudo que for elemento é o grande lápis do desenhista contemporâneo. Se isto é visto nos artistas plásticos de hoje, por que não se encontraria nos demais segmentos artísticos? Se da botânica, passando pela indústria mecânica até o cinema e a moda, se utilizam do desenho, não é difícil concebê-lo como uma imagem-ferramenta de elevada expressão artística. O que se diria então ao avaliar outro segmento que é representado puramente pelo desenho? Afinal, ao falar em “Histórias em Quadrinhos” é a imagem de algo desenhado e que narra uma história que se concretiza na mente do expectador.

Essencialmente ligado ao desenho, os quadrinhos são sua própria imagem representativa. Quando o desenho é retomado nos estudos acadêmicos, “[...]tem sido precariamente, apenas como técnica e ‘alguma’ história. [...] quase sempre, nem desígnio, nem intenção, nem design, mas somente reprodução de algumas habilidades e aprendizado de técnicas.” (FRANGE,1995, p.23-24). E não é difícil encontrar vários manuais que já estipularam esquemas que gerenciam este processo criativo no desenho da anatomia, das roupas, faces e expressões corporais, da perspectiva, narrativa visual, composição e ângulos em suas mais diferentes técnicas (ACEVEDO, 1990; EISNER, 1989, 2005; JANSON, 2005).

Antes de tratar destas ligações, busquei neste capítulo discutir como se dá a transição do conceito de imagem e as particularidades que foram sendo agregadas ao especificar tipos de imagens produzidas por outros segmentos estéticos que mantêm relações intrínsecas uns com os outros, na tentativa de traçar um esquema que permita, num segundo momento, perceber suas mais diversas associações e aplicá-las aos quadrinhos.

30

Em um estudo anterior (Cf. BRAGA JR, 2005; 2011), com o objetivo de explicar a forma contemporânea do “mangá nacional” e como se processam os esquemas de hibridização nesta produção, retomei as situações históricas que levaram à criação do layout do mangá moderno pelo aproveitamento da produção de esquemas de story boards desenvolvidos por Osama Tezuka numa ação frustrada de produção de um desenho animado para Astro Boy. Assim os elementos tão fortes hoje do mangá nasceram da incorporação do processo de produção dos story boards de animação para o cinema que, posteriormente, foram reproduzidos pela dinâmica da indústria cultural no processo de reprodução cultural.

No próximo capítulo a questão da imagem será abordada como instrumento teórico e metodológico nas ciências sociais. E, desta vez, farei o caminho inverso. Resgato o uso da fotografia como metodologia, para traçar as bases metodológicas deste trabalho com as imagens desenhadas.

CAPÍTULO 2

2. .

A IMAGEM DESENHADA NAS CIÊNCIAS

SOCIAIS: ENTRE AS TEORIAS E OS MÉTODOS