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Segundo Souza (2006), a noção de estereótipo é antiga e remonta à Grécia, cuja genealogia estabelece a junção dos termos stereos e túpos, rígido e traço, respectivamente. O estereótipo implica em algo que contém traços rígidos de alguma coisa. Pereira (2002) acrescenta que o conceito sofreu a influência de noções modernas advindas da psiquiatria e da

tipografia, fazendo referências à repetição de gestos e a impressão de tipos constantes, respectivamente. Em todos os casos o estereótipo ganha uma dimensão de reprodução:

[Os estereótipos são] artefatos humanos socialmente construídos, transmitidos de geração em geração, não apenas através de contatos diretos entre os diversos agentes sociais, mas também criados e reforçados pelos meios de comunicação, que são capazes de alterar as impressões sobre os grupos em vários sentidos. (PEREIRA, 2002, p.157).

É algo que se reproduz, enquanto imagem cristalizada sobre algo ou alguma coisa. É um rótulo. A rotulação traz a ideia de imagem fotográfica e estampa. De fotografia, por ser uma imagem congelada sobre algo, um recorte da realidade. Um registro cujos elementos estão estampados. É estampa, por deter uma propriedade representante. A coisa estampada tem seu espaço indentitário subtraído da estampa que lhe antecede em visão, a define, descreve seus conteúdos e lhe nomeia. O rótulo é uma imagem que define a coisa rotulada com o objetivo de informar ao expectador do que se trata a coisa. A referência aqui é do rótulo de objetos e coisas nas prateleiras, pois suas funções são a mesma: informar sobre a coisa.

Com o tempo (e os estudos) não tardou para que a noção evoluísse para registrar o “compartilhamento de opiniões sociais” (SOUZA, 2006, p. 152), sendo muito referenciada em diversas pesquisas de psicologia social que mapeavam opiniões das pessoas, buscando verossimilhanças entre as características físicas e sociais. Não demorou para que boa parte destes trabalhos se aproximasse da verificação das opiniões sociais acerca da identificação de traços dos grupos étnicos. Hoje, é comum que o termo “estereótipo” se refira às imagens generalizadas construídas por um grupo sobre o outro. São imagens que se estabelecem a partir da visão do outro e acerca de sua identificação.

O entendimento deste processo é encontrado no discurso filosófico sobre a imagem: ao analisar a concepção de imagem e o papel da imaginação em Spinoza, Kusunoki (2011, p.37-38), esclarece o seguinte fato:

A imaginação das regras de vida, por exemplo, fazem com que o homem não tenha padecimentos quando venham imagens negativas, como uma ofensa. Essas regras são referidas a princípios corretos de viver sob a conduta da razão, buscando sempre a amizade mútua, a sociedade comum, as coisas boas das pessoas, nunca desejando o mal delas etc. [...] a mente se dedica a conhecer clara e distintamente cada afeto de modo que o próprio afeto se desvincula do pensamento da causa exterior e se vincula a verdadeiros pensamentos, destruindo as flutuações de ânimo e transformando a paixão em idéia clara – ação [...] as imagens das coisas vinculam-se mais facilmente à imagem a que estão referidas as coisas que compreendemos claras e distintamente do que outras; pois se elas são claras e distintas, são

propriedades comuns das coisas e são mais freqüentemente suscitadas em nós.

Podemos associar esta ideia ao papel dos estereótipos? Provavelmente. Sartre, ao criticar a filosofia da imagem de Husserl, expõe a natureza mnemônica, definida por este último, da imagem mental, extremamente importante pra compreender a formação dos estereótipos:

Husserl explica que a imagem tem por função ‘preencher’ os saberes vazios, exatamente como fazem as coisas da percepção. Por exemplo, se penso numa cotovia, posso pensar nela no vazio, ou seja, produzir apenas uma intenção significante fixada na palavra ‘cotovia’. No entanto, para preencher essa consciência vazia e transformá-la em consciência intuitiva, é indiferente que eu forme uma imagem de cotovia ou que olhe pra uma cotovia em carne e osso. Esse preenchimento da significação pela imagem parece indicar que a imagem possui uma matéria impressiva concreta e que ela própria é um cheio, como a percepção. [...] Husserl distingue cuidadosamente da retenção, que é uma maneira não-posicional de conservar o passado como passado para a consciência, a rememoração, que consiste em fazer reaparecer as coisas do passado com suas qualidades. Trata-se, nesse segundo caso de uma presentificação (Vergegenwärtingung) e esta implica a reiteração, embora numa consciência modificada, de todos os atos perceptivos originais. [...] [Uma] imagem-lembrança não é outra coisa senão uma consciência perceptiva modificada, isto é, afetada de um coeficiente de passado. (SARTRE, 2008, p.129).

Maturando as implicações destas afirmativas husserlianas, Sartre descreve, mais adiante, o mecanismo de processamento das imagens, necessário para nossa explicação do estereótipo, ao discorrer que “[...] para descrever fielmente o que aparece como tal, devemos usar rigorosamente as mesmas expressões.” (2008, p.132), apesar de sua preocupação girar em torno da tensão entre imagem mental versus imagem real, e recair na intencionalidade dos indivíduos, não me deterei nesta problemática, pois o que importa aqui é perceber o mecanismo que atua nas imagens, tanto das pessoas ao gerar suas imagens mentais, quanto da imagem-objeto a se constituir como tal, seja pela mão de seu produtor (desenhista) seja na sua percepção geral (sentido compreendido pela dimensão social ao qual se refere). Não se trata de uma discussão sobre qual é a imagem verdadeira, tal como ocorre entre os filósofos, mas de enxergar os mecanismos associativos que se estruturam na constituição das imagens.

Esta dimensão é a base pela qual os estereótipos se desenvolvem e ganham a materialidade do desenho. Há contribuições que advêm de diversas fontes: da imagem- lembrança, passando pela imagem-ficção (que complementa a lacuna da anterior) e as próprias características constitutivas da imagem que garantam sua percepção enquanto referente à imagem-objeto. Esta instância é, portanto, consciente não por parte do individuo

produtor (necessariamente), não por parte do leitor (necessariamente), mas da relação tricotômica entre produtor, leitor e a própria imagem (objeto). Afinal ela não se completará enquanto imagem-objeto se não propuser os elementos necessários para desencadear a relação imagem-lembrança. E o estereótipo é, por sua vez, aquilo que é gerado a partir desta instância. É um mecanismo de resolução do processo como um todo. Ele permite que todo o mecanismo funcione adequadamente.

Becker (2009, p.197) ao analisar o trabalho do sociólogo Douglas Harper sobre mendigos, “[descreve] essa cultura [dos mendigos], as formas características de organização social em que os vagabundos estão envolvidos, as condições em que tais adaptações se desenvolvem e persistem”. Neste momento Becker alerta que os significados que estão associados às imagens, em ocasião da seleção de fotografias para uma matéria jornalística sobre os sem-teto, são determinados

“A partir do repertório de estereótipos disponíveis aos leitores” e que “qualquer coisa que uma reportagem diga sobre o ‘problema’ dos sem-tetos deve ser congruente com o que os leitores já sabem e acreditam. Uma fotografia apropriada confia, para sua legibilidade instantânea, que os leitores tenham esse conhecimento. Para o editor, e portanto, para o fotografo, o que é “sem-teto” já está decidido: eles não estão tentando descobrir coisas sobre isso. Seu problema é técnico: como obter imagem que conte melhor a história já escolhida.”

A trajetória teórica dos estereótipos os aproximou tanto dos estudos sobre discriminação e o preconceito, mas também envolvendo a cognição individual, o conflito, a identidade e a aprendizagem social. O estereótipo em todos estes ambientes cumpre com a mesma função: implica em desenvolver um registro mecânico e limitado de traços constitutivos sobre algo que precisa ser identificado como tal. Suas implicações é que são múltiplas: podem criar conflito, servem a disseminação das práticas de discriminação; é mecanismo de compreensão da realidade vivenciada ou de acesso aos valores sociais. E é aqui que ocorrem as confusões. Os estudos costumam atribuir aos estereótipos à prática. Eu entendo diferente. A estereotipia é um mecanismo de comunicação. É um efeito/procedimento que se incorpora na lógica semiótica da comunicação. E esta instância fica especialmente mais evidente nas imagens desenhadas.

As imagens desenhadas e a estereotipia compartilham relações muito proximais e estão juntas em um processo ainda mais complexo de relação com o “social”. Como já mencionei anteriormente, são através dos estereótipos que as imagens desenhadas engatilham um tipo especial de actância, conforme demostrarei no próximo capítulo. Antes de descrever a estereotipia das imagens desenhadas nos quadrinhos, é preciso discorrer brevemente sobre

minhas apropriações sobre o étnico-racial e de como ele se apresenta nos quadrinhos de super-heróis.

Esta associação sempre foi tratada pelos pesquisadores como uma denúncia da mentalidade dos produtores de quadrinhos (BARKER, 1989; McALLISTER, SEWELL JR, GORDON, 2009). O que proponho, me distanciando destes e de outros trabalhos anteriores, é enxergar esta perspectiva sob novo ângulo. Uma perspectiva pós-humanista, onde a estereotipia aparece como uma resistência material (à Pickering [1995]). Acredito que este processo de reprodução estereotípica é parte de um processo maior de negociação com o “social” e com inteligibilidade dos consumidores, por onde pode decorrer a discriminação, mas não como uma ação consciente ou vinculada à dominação ou a reprodução axiológica, mas simplesmente derivada do mecanismo de acomodação das negociações que são estabelecidas entre a produção material (desenhos) e as vontades dos indivíduos. Trata-se de uma performance contingencial. Um mecanismo de integração, com vista à legibilidade, entre os produtores, os leitores e o próprio material.

Enquanto esta ambientação não se esclarece, é preciso compreender os outros termos pelos quais fiz o levantamento e construí minha análise. Devido à natureza visual dos desenhos, seria possível escolher inúmeros temas para identificar o papel estereotípico na performance das HQs. Entre estes possíveis, escolhi os que não só se mostravam mais evidentes, quantitativamente falando, mas também fossem passíveis de controvérsias. As questões de representação visual dos padrões étnico-raciais sempre foram explicadas por vias da “ideologia”. Não pretendo me aprofundar nestas noções (uma breve contextualização pode ser vista no Apêndice C) e sim problematizar sua identificação no mundo das HQs.

Estudos sobre como tais materiais representam determinadas instâncias do “social” vem se desenvolvendo em diversos campos do saber. Os temas mais recorrentes são questões relacionadas ao gênero e a sexualidade, particularmente envoltos nas questões sobre o feminismo e as masculinidades ou dos comportamentos desviantes relacionados às orientações sexuais. Também é possível encontrar estudos que procuram traçar formas de representação do “social” de determinados grupos étnicos como os judeus nos Estados Unidos ou a construção estereotipada de imigrantes nestes materiais (charges, cartuns, quadrinhos).

Já houve diversos estudos que analisaram as questões raciais com as histórias em quadrinhos, de maneira diversificada e em segmentos distintos e, em sua maioria, em língua inglesa e não disponíveis em português. Há estudos sobre o papel da mulher e as representações étnico-raciais de grupos minoritários (CARPENTER, 2002). E outros que chegaram a investigar como os desenhistas incorporam as representações negativas nos

quadrinhos (ALDAMA, 2009). Há incursões estrangeiras na tentativa de avaliar como a identidade brasileira foi desenvolvida, durante a ditadura, pelos quadrinhos brasileiros (MANTHEI, 1994). Encontramos estudos sobre como os negros são representados em alguns grupos específicos, como os X-men (DAROWSKI, 2014) ou em outros gêneros, como na charge e no cartum (BRABANT & MOONEY, 1999) ou que analisam a representação de grupos étnicos específicos como judeus, asiáticos, iranianos (ALDAMA, 2010).

Talvez o único estudo e também o mais recente no Brasil, seja a tese de doutorado em comunicação de Chinem (2013) que mapeia a representação do negro nos quadrinhos brasileiros. Apesar destas investidas neste campo de representações não serem um tema totalmente novo, boa parte destes dados são restritos aos ambientes político-geográficos específicos e temporalmente circunscritos e recaem sobre a lógica tradicional humanista. Além de que, em sua grande maioria produzidos em língua inglesa e cujas ambientações terminam se restringindo aos seus próprios países. Ou ainda, de resgate histórico e, claramente, enciclopédico, no sentido de não apresentarem nenhuma explicação que contextualize ou teorize sobre o processo de exibição destes personagens (muito frequentemente, envolvendo outros gêneros de HQ).

Minha preocupação (e meu ineditismo) está no levantamento geral destas representações visuais, semioticamente, com vistas a compreender a situação performática na qual se desenvolvem as associações entre a produção de HQs, seu consumo e circulação no que tange às suas contingencias agenciais. Nos estudos desenvolvidos não houve um mapeamento geral, amplo, em relação às mudanças de representação visual, por exemplo foram estudos que se dirigem aos enredos e sentidos das histórias, mas que não avaliam ou se detêm nos seus vínculos imagéticos; que não pretendem explicar situações fora dos parâmetros da dominação axiológica.

Neste capítulo apresentarei sua ambientação geral focando em duas subcategorias: a diferenciação de gênero (numa perspectiva étnico-racial) e imagem do negro de maneira ampla. A questão da negritude foi eleita pelo destaque nas revistas. Depois dos “brancos” são os “negros” o grupo com maior referência nos quadrinhos, haja vista que outros grupos como judeus, asiáticos e árabes são bem menos frequentes e esporádicos que os dos negros, permitindo assim, uma maior riqueza de dados para a análise.

4.2. A PERFORMANCE DAS IMAGENS ÉTNICO-RACIAIS NOS