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CAPÍTULO 3 – OS PRECEDENTES JUDICIAIS VINCULANTES COMO

3.5 Desafios a serem superados para que a adoção de precedentes judiciais

3.5.1 A importância da conscientização de que os precedentes judiciais vinculantes

Direito

Deve-se ter em mente que os precedentes judiciais também necessitam ser interpretados e evoluem na medida em que se submetem, ao longo do tempo, a interpretação180. Não se pode olvidar esse aspecto e acreditar, ilusoriamente, que os precedentes judiciais possam ser aplicados quase que automaticamente pelos magistrados, como se fossem autômatos181, sob pena de se incorrer no mesmo equívoco da Escola da Exegese, já denunciado no Capítulo 2. Se já foi visto que os juízes não são a mera “boca da lei”, também não se pode concebê-los como a simples “boca da jurisprudência”182.

É certo que, sendo o precedente judicial um texto e, portanto, linguagem, apresentará os desafios interpretativos já expostos quando abordamos a filosofia da linguagem, não eliminando por completo as incertezas acerca da aplicação do direito.

180 HANSFORD, Thomas G.; SPRIGGS II, James F. The politics of precedent on the U.S. Supreme Court.

New Jersey: Princeton University Press, 2008, p. 6.

181 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo

contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 193.

182 RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do

Além disso, na aplicação de um precedente judicial, faz-se necessário contextualizá-lo e identificar quais foram as razões fático-jurídicas determinantes para a sua elaboração, analisando-se, ainda, se os fatos do caso subsequente enquadram-se na moldura fática relevante do caso precedente, o que não é tarefa fácil. Os itens deste capítulo sobre ratio

decidendi, obiter dictum – 3.5.2. – e distinguishing – 3.5.3 – são esclarecedores sobre o

caráter não mecânico da aplicação de precedentes judiciais.

Tanto assim é que se reconhece que nem mesmo no common law é possível falar- se em certeza do Direito, mas, apenas, em capacidade de se estimar, com razoável grau de probabilidade, as consequências jurídicas de uma conduta, de forma minimamente adequada para que os cidadãos possam planejar as suas vidas com certa confiança183. O respeito aos precedentes judiciais, certamente, eleva sobremaneira o grau de previsibilidade das decisões judiciais, o que não quer dizer que estabeleça certeza em torno delas. Afinal, certeza e previsibilidade são conceitos distintos: “não obstante um específico resultado seja mais previsível que outros, ele ainda pode estar longe de ser certo”184.

Há, sem dúvida, alguma inevitável margem de discricionariedade185 dos

magistrados na interpretação dos precedentes judiciais vinculantes186. Desde que

compreendida a aplicação dos precedentes obrigatórios com essa ressalva, não se correria o risco de eles criarem um “neoabsolutismo hermenêutico”187, uma “neojurisprudência dos conceitos”188, como alertaram Lenio Luiz Streck e Georges Abboud189.

183 EISENBERG, Melvin Aron, op. cit., p. 158.

184 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008,

p. 159, tradução livre.

185 Estende-se ao tema da existência de certa discricionariedade dos juízes na interpretação dos precedentes

judiciais vinculantes o alerta anteriormente feito quanto à discricionariedade dos magistrados na interpretação das normas gerais e abstratas, no sentido de que esta dissertação, ao falar em discricionariedade, não defende a possibilidade de os juízes decidirem livremente, de forma arbitrária.

186 HANSFORD, Thomas G.; SPRIGGS II, James F., op. cit., p. 22.

187 STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes?

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 59.

188 Ibid., p. 78.

189 Elucida-se que as críticas de Streck – também feitas em outros textos constantes das referências bibliográficas

deste trabalho acadêmico – e de Abboud não se dirigem propriamente à adoção da doutrina dos precedentes judiciais vinculantes no Brasil, mas a uma forma de aplicação das súmulas vinculantes e de qualquer outro mecanismo de vinculação de juízes a certos paradigmas judiciais que não leva em consideração os contextos fáticos que os originaram e o caráter sempre em alguma medida criativo da sua interpretação, o que não pode decorrer de um raciocínio meramente silogístico. Maurício Ramires – em sua já citada obra Crítica à aplicação de precedentes no Direito brasileiro – tece essas mesmas críticas de Streck e de Abboud. Essa visão – ressalta-se – também é compartilhada pelo autor deste trabalho. Esta dissertação, no entanto, propõe um modelo de precedentes judiciais vinculantes ao qual tais críticas não são aplicáveis. É que ao aqui se defender a adoção, no Brasil, da sistemática dos precedentes judiciais vinculantes, enfatiza-se a necessidade de que, tal qual no common law, a sua aplicação seja necessariamente contextualizada, indissociável da identificação das circunstâncias fáticas relevantes do caso paradigmático e do exame da sua correspondência com os fatos do caso subsequente. Além disso, como se observa neste próprio item, também não se difunde uma visão ingênua da aplicação dos precedentes judiciais vinculantes baseada em um raciocínio silogístico capaz de

Contudo, como realça João Maurício Adeodato, nem todo texto é igualmente ambíguo e vago, e, sem dúvida, o precedente encontra-se em um nível de maior concretização do que as normas gerais e abstratas, tendo menor generalidade e, sobretudo, abstração, e, por isso, espaço hermenêutico reduzido em comparação com essas normas190.

Ademais, em um modelo, tal qual o proposto nesta pesquisa, dos precedentes judiciais concebidos como regras fortemente vinculantes dos órgãos judiciais que os elaboraram e dos inferiores – ainda que temperadas pela possibilidade de sua revogação em hipóteses especiais –, a extensão do campo de discricionariedade do julgador ao decidir um caso é drasticamente reduzida191.

Na visão de Neil Duxbury, um julgador pode decidir com ampla discricionariedade onde não há precedentes e com estreita discricionariedade onde há um precedente claro192.

No modelo que se propõe, ao decidir um caso sobre o qual já exista precedente vinculante, o horizonte de interpretação do magistrado, embora admita alguma discricionariedade, fica restrito ao sentido e ao alcance da regra jurídica contextualizada193 extraída do precedente e à sua correspondência com os fatos do caso atual. Ao julgar um caso sem levar em consideração qualquer precedente, o juiz tem como horizonte de interpretação uma variedade extremamente ampla de regras e de princípios jurídicos de grande abertura semântica para – como discutido no Capítulo 2 – colher daí, de forma quase incontrolável e praticamente em qualquer direção, especialmente em tempos de neoconstitucionalismo, a premissa de sua decisão judicial.

eliminar qualquer incerteza em torno do conteúdo da decisão judicial dela resultante. Muito pelo contrário: destaca-se, neste estudo, que é natural à doutrina do stare decisis, mesmo no common law, o reconhecimento de uma inevitável margem de discricionariedade do julgador na aplicação dos precedentes, decorrente do grande desafio interpretativo inerente à detecção da sua ratio decidendi e à decisão da correspondência ou não entre os fatos de um caso subsequente e os contornos fáticos relevantes do caso modelo.

190 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva,

2012, p. 284.

191 ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Judges as rule makers. In: EDLIN, Douglas E. Common law

theory. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 31-32.

192 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008,

p. 11.

193 Segundo Alexander e Sherwin, embora possam estar explícitas, as regras jurídicas veiculadas pelos

precedentes judiciais encontram-se, normalmente, implícitas neles. É extremamente desejável, no entanto, para que se amplie o grau de segurança jurídica na aplicação dos precedentes judiciais, que os tribunais, ao os elaborarem, dediquem-se a tornar explícitas as regras jurídicas subjacentes a eles e que deverão regular o julgamento dos casos futuros similares. ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Judges as rule makers. In: EDLIN, Douglas E, op. cit., p. 45-46.

Revela-se útil reproduzir aqui a ressalva, feita por René David, de que a regra de direito derivada do precedente judicial é menos abstrata do que a regra de direito das normas gerais e abstratas stricto sensu, como as veiculadas pelas leis194. Isso porque “coloca-se ao nível do caso concreto em razão do qual, e para cuja resolução, ela foi emitida”195,

conectando-se às minúcias fático-jurídicas do caso paradigmático e, por isso, apresentando grau elevado de especificação. A regra do precedente judicial é, assim, extremamente particularizada, pormenorizada, especializada, em comparação com a regra legal ou constitucional, por exemplo196.

A ordem emanada de um precedente judicial vinculante é, portanto – ainda que sujeita à interpretação e, por conseguinte, a algum inexorável espaço de flexibilidade do julgador – muito mais direta, concreta, detalhada, específica, fechada, determinada, certa do que aquela que decorre das normas gerais e abstratas stricto sensu. Como ressalta Marcelo Alves Dias de Souza, a precisão é um “prêmio que se ganha ao dar-se um passo da generalidade da lei em direção à concretude do precedente”197.

Em decorrência do gigantesco salto que o precedente judicial vinculante proporciona para esse estádio mais avançado de concretização em relação às normas gerais e abstratas stricto sensu e da drástica redução do espaço hermenêutico do magistrado na prolação da decisão judicial em casos similares, restringe-se, enormemente, o espectro das prováveis consequências a serem suportadas pelos cidadãos em virtude da adoção de determinado comportamento.

Dessa maneira, o reconhecimento da força intensamente vinculante dos precedentes judiciais torna mais previsível o conteúdo da decisão que trará impactos concretos à vida de um indivíduo na hipótese de certa conduta sua – de contornos fáticos correspondentes ao quadro fático relevante do caso paradigmático – ser examinada em um eventual processo judicial.

Logo, o que se defende neste trabalho acadêmico não é uma visão ingênua dos precedentes judiciais vinculantes como meio de eliminação de toda a incerteza na aplicação judicial do direito, mas como um instrumento – dentre vários outros que devem ser imaginados e efetivados – capaz de contribuir com o desejável aumento do grau de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do Direito, sem a ambição, portanto, de configurar panaceia para o problema da insegurança jurídica em sua integralidade.

194 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 25. 195 Ibid., p. 408-409.

196 Ibid., p. 412-414.

3.5.2 A complexa identificação do que representa a ratio decidendi do precedente judicial