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Marcus Faro de Castro recorda que, até o século XVIII, os temas correlatos à constituição política e as formas próprias ao Estado eram preponderantemente tratados pela filosofia política ou, eventualmente, pela retórica319. É notório que, a partir do século XVIII,

desenvolveu-se o Constitucionalismo, com a crescente importância das Constituições escritas, garantidoras de direitos individuais reputados fundamentais, sobretudo a americana e a francesa, resultado das principais Revoluções Liberais.

315 ADEODATO, João Maurício, op. cit., p. 391; 400.

316 BENVINDO, Juliano Zaiden. On the limits of constitutional adjudication: deconstructing balancing and

judicial activism. Heidelberg; New York: Springer, 2010, p. 410.

317 ADEODATO, João Maurício, op. cit., p. 313.

318 Contra aqueles que acusam as teorias retóricas do direito de promoverem a incerteza, João Maurício

Adeodato argumenta que o que se deve temer são os totalitarismos e os seus defensores, sempre tão cheios de certeza por terem “visto a luz”, porquanto “a mãe da tolerância democrática é a dúvida”. ADEODATO, João Maurício, op. cit., p. 338.

319 CASTRO, Marcus Faro de. Formas jurídicas e mudança social: interações entre o direito, a filosofia, a

No entanto, constatou-se que, até a Segunda Guerra Mundial, apesar da existência de Constituições escritas supostamente garantidoras de direitos fundamentais, a cultura jurídica, na Europa continental, era essencialmente legicêntrica, tratando a lei quase como a fonte exclusiva do Direito, não atribuindo a devida força normativa às Constituições, concebidas como “programas políticos que deveriam inspirar a atuação do legislador, mas que não podiam ser invocados perante o Judiciário, na defesa de direitos”320.

Entendia-se que os direitos fundamentais tinham sua eficácia dependente da regulamentação por uma lei que os protegesse, não possuindo força normativa própria, diretamente invocável, pelo que eram impotentes “contra o arbítrio ou descaso das maiorias parlamentares”321.

Contudo, um forte anseio por profundas transformações nessa cultura jurídica decorreu da desilusão que adveio da percepção, durante a Segunda Guerra Mundial, da impotência das Constituições europeias em evitar a barbárie promovida por maiorias políticas, como no caso do nazismo alemão, e por governos totalitaristas em geral, como o fascista da Itália, ou o franquismo e salazarismo – que ainda durariam algumas décadas após o fim daquela guerra –, na Espanha e em Portugal. Promoveu-se na Europa continental, a partir daí, uma cultura jurídica de grande valorização da Constituição, considerada verdadeira norma jurídica e, portanto, com inexorável força normativa, e dos direitos fundamentais por ela austeramente protegidos322. Do ponto de vista da ideologia por trás das Constituições, o acento desloca-se da limitação de poder estatal para a efetivação dos direitos fundamentais323.

Com o escopo de proteger os cidadãos contra eventuais maiorias parlamentares totalitárias, as novas Constituições europeias foram-se tornando cada vez mais analíticas, disciplinando imensa variedade de temas que outrora eram estranhos ao debate constitucional. Ganharam força, ao lado dos tradicionais direitos individuais, direitos sociais de natureza prestacional. Mauro Cappelletti atribui ao fenômeno da “revolta contra o formalismo”, na teoria e na prática jurídicas, grande responsabilidade pela notável intensificação do caráter criativo da atividade do juiz nos últimos tempos. Essa rejeição ao formalismo no direito, por sua vez, estaria umbilicalmente ligada à visualização do Estado

320 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 9-49.

321 Ibid., p. 9-49. 322 Ibid., p. 9-49.

323 COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. In: CARBONELL,

como welfare state, concretizador, portanto, de direitos sociais324

O incrível destaque que os direitos sociais adquirem nesse modelo de Estado passa a exigir, para a sua efetivação, uma postura de maior ativismo por parte do juiz. Este adquire um grau de liberdade extremamente ampliado na interpretação dos direitos sociais, que se encontram previstos – não apenas no âmbito da Constituição, mas, também, no das leis e até dos documentos internacionais – em textos frequentemente abertos, já que vagos e ambíguos325, de elevada conotação axiológica, os quais costumam veicular regras baseadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados326 e, sobretudo, princípios327.

Assim, as novas Constituições eram repletas de normas impregnadas de teor axiológico, caracterizadas por elevada abstração, abertura e indeterminação semânticas, os princípios328, cuja possibilidade de aplicação direta pelo Poder Judiciário demandou o desenvolvimento de novas formas de raciocínio jurídico – como teorias da argumentação jurídica e técnicas de ponderação de princípios aparentemente colidentes – ante a insuficiência do clássico silogismo em com eles lidar329. A plasticidade dos princípios, aliada

ao desenvolvimento de teorias da argumentação jurídica, “incorporaram ao Direito elementos que o positivismo clássico costumava desprezar, como considerações de natureza moral ou

324 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 34; 60; 67. 325 A vagueza seria “um problema de denotação, referência, extensão, descrição, ou seja, do alcance da

expressão”, enquanto a ambiguidade “refere-se a dúvidas sobre o significado do termo linguístico, ou seja, é um problema de conotação, intenção, conteúdo, significação (ou ‘sentido’)”. Além disso, há a porosidade do termo, correlata “às modificações em seu uso cotidiano, as quais se dão no decorrer do tempo, modificando suas próprias ambiguidade e vagueza”. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 226.

326 Os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais são técnicas legislativas que utilizam conceitos

intencionalmente vagos ou ambíguos – abertos, portanto – e, por isso, ensejam, na sua interpretação, grande margem de liberdade para o juiz, com a finalidade de garantir a plena adaptabilidade da lei ao dinamismo social. A principal distinção apontada entre as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados seria que, nestes, os conceitos vagos encontram-se apenas no antecedente da norma, uma vez que as consequências jurídicas já se encontram fixadas de forma mais precisa, enquanto, naquelas, a vagueza está tanto no antecedente como no consequente normativo, o que confere ainda mais liberdade para o julgador. ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 164. Humberto Theodoro Júnior critica bastante a adoção, em larga escala, de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados por entender que haveria, nisso, “uma tendência do parlamento de despojar-se, em boa parte, de sua competência legislativa, relegando ao Judiciário completar a tarefa normativa, sem que os indivíduos possam prever, com segurança jurídica, como o órgão aplicador da regra vaga irá colmatá-la”. Com esse ponto de vista, o autor chega a afirmar que isso transformaria o juiz em legislador ex post facto, na medida em que a lei só adquiriria o seu conteúdo completo e definitivo após consumado o fato sobre o qual incidirá. THEODORO JÚNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, Porto Alegre, ano 17, n. 62, p. 65-96, 2006, p. 79.

327 CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 34; 60; 67.

328 Para maior aprofundamento teórico acerca dos princípios jurídicos, indispensável a leitura da obra: ÁVILA,

Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2011.

329 ARIZA, Santiago Sastre. La ciência jurídica ante el neoconstitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel (Org.).

relacionadas ao campo empírico subjacente às normas”330. Como efeito colateral da utilização da técnica de ponderação de princípios constitucionais e da interpretação moral da Constituição, o grau de certeza do Direito foi bastante diminuído331.

Esse maior protagonismo da Constituição, agora com força normativa332, ocasionou uma constitucionalização dos ordenamentos jurídicos, na medida em que os mais diversos ramos do Direito foram “invadidos” por Constituições apelidadas por Guastini de “invasoras” ou “intrometidas”, e passaram a sofrer uma releitura à luz das normas constitucionais333.

Com tudo isso, aumentou extraordinariamente a importância política do Poder Judiciário, passando os juízes a ter ampla margem de manobra na determinação do conteúdo das normas constitucionais334 e a exercer um papel muito mais ativo, diametralmente oposto ao do juiz autômato e neutro que pretendiam a Jurisprudência dos Conceitos e a Escola da Exegese335.

De grande importância para essa transformação na cultura jurídica da Europa continental rumo ao reconhecimento do caráter normativo e, em grande medida, principiológico da Constituição foi o pensador alemão Rudolf Smend e a sua ideia da Constituição como “um canal para a normativização de valores – projetados nos direitos constitucionais básicos – sobre os quais os cidadãos concordam”336. Smend teve significativa influência nas ideias de diversificados autores, como Theodor Viehweg – método tópico- problemático –, Konrad Hesse e Friedrich Müller337 – método hermenêutico-concretizador – e Peter Haberle – método concretista da ‘Constituição aberta’ –, que investigavam como

330 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.), op. cit., p. 9-49.

331 COMANDUCCI, Paolo, op. cit., p. 91.

332 CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo: significado y niveles de análisis. In: CARBONELL,

Miguel; JARAMILLO, Leonardo García (Org.). El canon neoconstitucional. Madri: Trotta, 2010, p. 160.

333 GUASTINI, Riccardo. La constitucionalización del ordenamento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL,

Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madri: Trotta, 2005, p. 49.

334 ARIZA, Santiago Sastre. La ciência jurídica ante el neoconstitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel (Org.).

Neoconstitucionalismo(s). Madri: Trotta, 2005, p. 242.

335 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e

protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 194-195.

336 CASTRO, Marcus Faro de. Formas jurídicas e mudança social: interações entre o direito, a filosofia, a

política e a economia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 193.

337 Como anotado no item sobre realismo jurídico norte-americano, Friedrich Müller é fortemente influenciado

pelas ideias não apenas de Rudolf Smend, mas, também, daquele movimento realista, sobretudo de Jerome Frank e Karl Llewellyn. Por sua vez, Müller influencia o pensamento de, dentre outros, Canotilho, Paulo Bonavides e Fábio Konder Comparato, pelo que o seu método concretizador vem a repercutir no âmbito do neoconstitucionalismo brasileiro. A brevíssima apresentação da teoria de Müller – realizada no tópico sobre realismo – permite perceber como as suas ideias servem como fundamento para a defesa da imprescindibilidade da atividade – criadora – do juiz para a efetivação dos direitos previstos no texto constitucional, sendo bastante útil, portanto, aos propósitos neoconstitucionalistas.

concretizar a constituição à luz da sua concepção como consenso social sobre valores básicos de uma comunidade concreta338.

Nesse diapasão, o pensamento de Smend alicerçou o surgimento da jurisprudência dos valores praticada pelo tribunal constitucional alemão, que, atualmente, é modelo inspirador do Supremo Tribunal Federal brasileiro339.

Teve, ainda, impacto – diretamente ou por meio das ideias dos já citados autores alemães por ele influenciados – nas ideias de juristas espanhóis – como Pablo Lucas Verdu e Antonio Enrique Peres Luño – e portugueses – José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, José Carlos Vieira de Andrade –, que, por sua vez, tiveram rica influência sobre constitucionalistas brasileiros como José Afonso da Silva, Paulo Bonavides e Eduardo Seabra Fagundes, que buscavam, no contexto da elaboração da Constituição de 1988, alternativas às orientações positivistas sobre as normas constitucionais340.

Essa revolucionária valorização da Constituição e o correlato reconhecimento da sua força normativa, da relevância dos seus princípios e do seu caráter aberto somente aportaram no Brasil décadas mais tarde, com o advento da Constituição de 1988, uma vez que, a despeito de já existir, no país, desde a proclamação da República, o controle de constitucionalidade, as normas constitucionais não eram vistas como verdadeiras normas jurídicas:

Até 1988, a lei valia muito mais do que a Constituição no tráfico jurídico, e, no Direito Público, o decreto e a portaria ainda valiam mais do que a lei. O Poder Judiciário não desempenhava um papel político tão importante, e não tinha o mesmo nível de independência de que passou a gozar posteriormente. As constituições eram pródigas na consagração de direitos, mas estes dependiam quase exclusivamente da boa vontade dos governantes de plantão para saírem do papel – o que normalmente não ocorria. Em contextos de crise, as fórmulas constitucionais não eram seguidas, e os quartéis arbitravam boa parte dos conflitos políticos ou institucionais que eclodiam no país.341

A exemplo do que ocorreu com as Constituições europeias posteriores à Segunda Guerra Mundial, a Constituição brasileira de 1988 – responsável por, após o fim da ditadura militar, consolidar, na esfera jurídica, a redemocratização do país – é analítica, contendo um enorme rol de direitos fundamentais de diversas gerações bem como uma grande quantidade de relevantes princípios e de instrumentos que ampliam, avassaladoramente, o poder político do Poder Judiciário.

338 CASTRO, Marcus Faro de. Formas jurídicas e mudança social: interações entre o direito, a filosofia, a

política e a economia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 193.

339 Ibid., p. 193. 340 Ibid., p. 193. 341 Ibid., p. 193.

Significativa parte da doutrina de Direito Constitucional brasileira identifica o surgimento, no Brasil, a partir da Constituição de 1988, de “um novo paradigma tanto na teoria jurídica quanto na prática dos tribunais”, frequentemente intitulado neoconstitucionalismo342.

Há grande dificuldade em conceituar, com precisão, o neoconstitucionalismo, porquanto os seus defensores costumam buscar fundamentos teóricos em pensadores com orientação muito heterogênea, como, por exemplo, Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Haberle, Gustavo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino, os quais nem sequer já se identificaram como neoconstitucionalistas343. Mesmo dentre os autores que se proclamam neoconstitucionalistas há estrondosas divergências de posições, a ponto de se falar não, propriamente, em um neoconstitucionalismo, mas em neoconstitucionalismos344.

Não obstante o mencionado pluralismo, há importantíssimas características comuns entre as ideias dos neoconstitucionalistas que justificam o seu agrupamento sob o termo neoconstitucionalismo. Nesse sentido, o aludido paradigma envolve vários fenômenos interdependentes assim, didaticamente, sintetizados por Daniel Sarmento:

(a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; (c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário.345

Já Humberto Ávila, em sentido similar, resume da seguinte maneira as principais características desse movimento de teorização e aplicação do Direito Constitucional:

princípios em vez de regras (ou mais princípios do que regras); ponderação no lugar de subsunção (ou mais ponderação do que subsunção); justiça particular em vez de justiça geral (ou mais análise individual e concreta do que geral e abstrata); Poder Judiciário em vez dos Poderes Legislativo e Executivo); Constituição em substituição à lei (ou maior, ou direta, aplicação da Constituição em vez da lei).346

342 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.), op. cit., p. 9-49.

343 Ibid., p. 9-49.

344 CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo: significado y niveles de análisis. In: CARBONELL,

Miguel; JARAMILLO, Leonardo García (Org.), op. cit., p. 9.

345 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.), op. cit., p. 9-49.

346 ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ‘ciência do direito’ e o ‘direito da ciência’. Revista

Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan.-fev.-

Percebe-se que essas ideias têm tido forte eco, nos últimos anos, não somente no âmbito acadêmico e nos tribunais brasileiros em geral, mas, especialmente, no STF, que “tem cada vez mais invocado princípios abertos nos seus julgamentos, recorrido à ponderação de interesses e ao princípio da proporcionalidade com frequência e até se valido de referências filosóficas na fundamentação de decisões”347. Até mesmo o mexicano Miguel Carbonell já relatou que o neoconstitucionalismo parece a cada dia conquistar mais seguidores no Brasil348. Como se vê, no neoconstitucionalismo, intensamente presente na prática atual dos juízes e tribunais brasileiros, o Direito adquire caráter significativamente principiológico, não apenas se reconhecendo a força normativa dos princípios constitucionais, como adquirindo estes uma impressionante – e antes impensável – relevância no processo de aplicação de toda e qualquer norma jurídica, constitucional ou não, integrante do ordenamento. O neoconstitucionalismo, assim, não se limitou a substituir o primado da lei pelo primado da Constituição, mas alterou toda a estrutura do pensamento jurídico349. Corrobora o que se afirma a observação de Sarmento sobre a prática dos tribunais brasileiros sob a influência neoconstitucionalista:

Se, até não muito tempo atrás, os princípios não eram tratados como autênticas normas por aqui – só tinha bom direito quem podia invocar uma regra legal clara e precisa em favor da sua pretensão – com a chegada do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo, passou-se em poucos anos da água para o vinho. Hoje, instalou-se um ambiente intelectual no Brasil que aplaude e valoriza as decisões principiológicas, e não aprecia tanto aquelas calcadas em regras legais, que são vistas como burocráticas ou positivistas – e positivismo hoje no país é quase um palavrão.350

Em razão da profunda constitucionalização do Direito, no neoconstitucionalismo, o processo de realização do Direito pelo juiz não mais se resume – e, como defendido no presente trabalho, em verdade, jamais se resumiu – à identificação da regra legal pertinente ao caso concreto e à sua aplicação mecânica, por meio de um raciocínio silogístico. No novo paradigma, o juiz deverá, ainda que identifique uma regra legal correlata ao caso, de qualquer ramo do Direito, cujo texto repute claro, interpretar essa norma infraconstitucional à luz das normas constitucionais, sobretudo dos princípios da Constituição.

347 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.), op. cit., p. 9-49.

348 CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo: significado y niveles de análisis. In: CARBONELL,

Miguel; JARAMILLO, Leonardo García (Org.), op. cit., p. 153.

349 RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010, p. 153.

350 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Não se trata de mera verificação da compatibilidade ou não da norma legal com as normas constitucionais de forma a declarar a sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade como premissa para decidir um caso. Trata-se, muito mais do que isso, de reler os institutos das mais variadas disciplinas jurídicas com um olhar crítico de quem pretende efetivar cada aspecto da Constituição por meio de cada específica norma infraconstitucional.

O juiz deverá, assim, mais do que declarar constitucional ou inconstitucional a regra legal citada, interpretá-la não apenas compreendendo o teor do seu texto e aplicando ao caso concreto o que a lei pareceu pretender, mas ler e aplicar o seu conteúdo de uma forma que ela possa ser utilizada em benefício – e não em prejuízo – da efetivação das normas da Constituição, em especial dos valores contidos nos seus princípios. Trata-se da chamada interpretação conforme, adequadora ou harmonizante das leis351.

É, ainda, habitual ao juiz neoconstitucionalista, além de interpretar toda e qualquer norma infraconstitucional com um olhar constitucional, aplicar as normas constitucionais, também em nome da força normativa e da supremacia da Constituição, diretamente ao caso concreto352, inclusive os princípios, estruturalmente ainda mais indeterminados e abertos do que a filosofia da linguagem já reconhece serem as regras.

Logo, o magistrado possui, no neoconstitucionalismo, a missão de efetivar, em cada uma das decisões judiciais de sua autoria – por aplicação direta ou por aplicação de normas infraconstitucionais interpretadas sob um viés constitucional –, uma Constituição aberta353, que dá grande ênfase aos princípios354 – e que é, portanto, consideravelmente

axiológica e em grande medida indeterminada. Tamanha é a indeterminação do direito concebido a partir da perspectiva neoconstitucionalista355 que Susanna Pozzolo chegou a se referir ao neoconstitucionalismo como “um constitucionalismo ambíguo”356.

351 GUASTINI, Riccardo. La constitucionalización del ordenamento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL,

Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madri: Trotta, 2005, p. 56-57.

352 Ibid., p. 55-56.

353 TAVARES, André Ramos. A Constituição aberta. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais,

Fortaleza: Instituto Albaniza Sarasate, n. 8, jan.-jun. 2008.

354 Embora Humberto Ávila afirme que a Constituição de 1988, em verdade, é uma Constituição de regras, não