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CAPÍTULO 3 – OS PRECEDENTES JUDICIAIS VINCULANTES COMO

3.4 A elevação do grau de segurança jurídica em decorrência dos precedentes

3.4.3 Os precedentes judiciais vinculantes e o aumento do nível de calculabilidade

No capítulo inaugural desta pesquisa, ficou registrado que, no estado ideal de calculabilidade, os cidadãos são capazes, no presente, de antecipar e medir, razoavelmente, futuras mudanças normativas, não sendo posteriormente surpreendidos pelas novas normas jurídicas, que se mostram suaves na forma de realizar as alterações em relação ao que antes era determinado pela ordem jurídica e com base no que aqueles vinham conduzindo as suas vidas.

172 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de, op. cit., p. 448-457.

173 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A função do Supremo Tribunal Federal e a força de seus precedentes:

enfoque nas causas repetitivas. In: PAULSEN, Leandro (Org.). Repercussão geral no recurso

extraordinário. Estudos em homenagem à Ministra Ellen Gracie. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011,

Comentou-se, na ocasião, que a surpresa dos indivíduos em relação às transformações do ordenamento jurídico pode ser reduzida por meio da postergação dos efeitos da nova norma jurídica, que permite àqueles disporem de um período de tempo razoável, após ter ciência da mudança normativa, para se adaptarem, sem serem pegos desprevenidos.

Compreende-se, desse modo, que o próprio princípio da segurança jurídica obriga os juízes e os tribunais a agirem com suavidade no câmbio de suas interpretações jurídicas dominantes, evitando a perniciosa surpresa dos cidadãos e permitindo a sua adaptação não traumática à nova posição dos órgãos judiciais.

Isso pode ser feito, por exemplo, por meio do aceno do órgão judicial, no julgamento de um caso, de que pretende, em decisão de caso futuro, alterar o seu entendimento dominante acerca da questão jurídica, embora ainda não o esteja fazendo. Também é possível que o órgão judicial, ao alterar o seu entendimento jurídico, fixe um prazo adequado para o início da eficácia dessa mudança normativa.

Nesse caso, o prazo – seja para a efetiva mudança de entendimento já anteriormente sinalizada, seja para o início dos efeitos do novo entendimento judicial já estabelecido em substituição de um anterior – deve ser tanto maior quanto maior for a repercussão, para o exercício das liberdades, das mudanças realizadas.

Foi analisado que a teoria dos precedentes judiciais vinculantes abrange a técnica do prospective overruling, que garante, nos casos em que a confiança legítima dos cidadãos a exija, a irretroatividade do novo precedente judicial que realiza câmbio da interpretação jurídica dominante no âmbito de um tribunal, em benefício da confiabilidade do Direito.

De forma semelhante, mas favorecendo, além da confiabilidade, preponderantemente a calculabilidade do Direito, por meio da suavidade das mudanças normativas, aquela teoria também contempla a técnica do prospective prospective overruling, na qual o novo precedente judicial, revogador de um precedente anterior, não apenas não retroage para atingir as situações fáticas que lhe são anteriores, como, também, tem os seus efeitos postergados para atingir somente situações fáticas que ainda ocorrerão a partir de uma certa data174.

Com isso, cientes de que a partir de determinada data será aplicado pelo Poder Judiciário aos fatos a ela posteriores uma nova interpretação jurídica, os cidadãos poderão adaptar as suas atividades, sem grandes traumas, ao entendimento que passará a ser adotado.

Outra técnica recomendada pela doutrina dos precedentes judiciais vinculantes, favorável ao estado de calculabilidade do Direito, é a técnica da sinalização ou technique of

signaling. Nessa técnica, o órgão judicial não ignora que certo precedente deve ser revogado

por alguma razão especial, mas, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e à suavidade das mudanças normativas por ele demandada, opta por não revogá-lo na ocasião, preferindo-se apontar a sua perda de consistência e sinalizar a sua futura revogação.

Dito de outra maneira, por meio da technique of signaling, um órgão judicial, não obstante siga determinado precedente, emite o aviso prévio de que este não é mais confiável, pavimentando o caminho para a sua revogação175.

O objetivo, portanto, é comunicar que o precedente que até então orientava a atividade dos cidadãos será revogado no futuro. Com isso, tanto se respeita a confiança legítima dos cidadãos no precedente em vias de revogação, os quais não serão frustrados por uma eventual aplicação retroativa de um novo precedente judicial que o substitua – no que se prestigia o ideal de confiabilidade do Direito –, como se evita a surpresa dos cidadãos com uma súbita mudança da interpretação jurídica dominante no órgão judicial176.

Enviando-se aos indivíduos um contundente sinal de que a revogação do precedente judicial e o câmbio de entendimento jurídico no juízo ou tribunal deverão ocorrer em breve, aqueles podem-se adaptar, preparando-se para a mudança normativa sem sustos.

Observa-se que a técnica da sinalização não se confunde com o já comentado

prospective prospective overruling, pois, neste, o precedente judicial é desde já revogado,

apenas adiando-se o início dos efeitos do novo precedente, enquanto naquela o precedente judicial não é revogado ainda, mas apenas se sinaliza que o deverá ser em breve.

Ao se conhecer tais técnicas, existentes no common law, de modificação suave, sem surpresas, dos precedentes judiciais, pode-se compreender o contexto das seguintes palavras de Lord Devlin, que, com certeza, não tinha em mente a prática judicial brasileira: “a mudança jurisprudencial bem raramente advém sem pré-aviso, como se fosse um relâmpago em céu sereno”177.

Também foi debatido que do princípio da igualdade deduz-se o princípio da coerência temporal, que exige que um órgão judicial vincule-se à sua própria atuação passada, isto é, aos seus próprios precedentes, salvo se possuir alguma justificativa relevante para a sua alteração, que deverá ser severamente fundamentada e respeitar a confiança legítima dos

175 EISENBERG, Melvin Aron, op. cit., p. 122.

176 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 335-336. 177 Apud CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 86.

cidadãos. Essa exigência de coerência fomenta, concomitantemente, o estado de confiabilidade e de calculabilidade do Direito.

Dessa maneira, os órgãos judiciais não podem-se afastar arbitrariamente, caprichosamente, da sua atuação precedente, estando autovinculados a ela por uma coerência reclamada pelos princípios da igualdade e da segurança jurídica, ressalvadas situações especiais que recomendem a alteração da interpretação jurídica dominante sobre uma dada questão jurídica.

Tão importante é essa observação que Larry Alexander e Emily Sherwin chegam até mesmo a argumentar que as mais significativas consequências morais das decisões judiciais relacionam-se com a confiança que os indivíduos depositam nos precedentes para, na expectativa de que as decisões judiciais futuras sejam coerentes com eles, ajustar o seu comportamento178.

Perceptível, nesse contexto, que a antes comentada noção de respeito ao autoprecedente, própria da teoria dos precedentes judiciais vinculantes, e a grande estabilidade dos entendimentos judiciais, dela decorrente, nos sistemas que a adotam, resultam em um elevadíssimo nível de permanência das interpretações jurídicas dos órgãos judiciais. Permanência tamanha que acaba por garantir aos cidadãos razoável margem de previsibilidade acerca das consequências jurídicas futuras dos seus atos, aperfeiçoando, com isso, não apenas a confiabilidade, mas, igualmente, a calculabilidade do Direito.

Não sem motivo, portanto, já se disse que a doutrina do stare decisis permite que o Direito mude gradualmente, sem tantas mudanças bruscas e drásticas que surpreendam os cidadãos, de tal forma que ele possa ser comparado a um navio que deve ser reconstruído enquanto navega: “por estar na água, não é possível substituir todas as suas partes de uma vez, então apenas algumas partes serão trocadas a cada vez”179.

Além disso, os precedentes judiciais vinculantes estabelecem, como investigado no item sobre a sua relação com a cognoscibilidade do Direito – 3.4.1 –, a interpretação oficial de um órgão judicial – e, em razão da vinculação, a dos demais órgãos judiciais que lhe são inferiores – sobre certa questão jurídica, restringindo o espectro das consequências jurídicas provavelmente impostas a uma conduta, no plano concreto, pelo Poder Judiciário.

Por outro lado, dentre as assertivas formuladas no Capítulo 1, havia a de que não é possível ao cidadão planejar adequadamente o seu comportamento se o processo judicial no qual será definida a consequência definitiva para os seus atos não tem prazo para terminar ou

178 ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Judges as rule makers. In: EDLIN, Douglas E. Common law

theory. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 28.

se tal prazo é excessivamente longo. Por esse motivo, concluiu-se que o estado de calculabilidade também envolve uma “segurança de definição”, concretizada por meio da duração razoável do processo.

Na sistemática dos precedentes judiciais vinculantes, os órgãos judiciais inferiores passam a aplicar, de imediato, o precedente já estabelecido pelos órgãos judiciais superiores e a litigiosidade recursal passa a ser desestimulada pela previsibilidade de que o resultado final coincidirá com o que as instâncias inferiores já decidiram ao aplicar o precedente. Dessa forma, o processo judicial torna-se mais célere, reduzindo o espectro de tempo para que a consequência definitiva do comportamento do cidadão seja efetivamente aplicada pelo Poder Judiciário.

Por todos os pontos suscitados neste item, os precedentes judiciais vinculantes são de instrumental importância para a realização do estado de calculabilidade do Direito.

3.5 Desafios a serem superados para que a adoção de precedentes judiciais vinculantes,