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Espera-se ter ficado claro, neste capítulo, que: a) o juiz possui um significativo grau de discricionariedade364 sobre a determinação do conteúdo do direito que será realizado e que impactará, concretamente, a vida dos cidadãos; b) por conseguinte, o magistrado cria efetivamente direito, ao contrário do que propagava o positivismo legalista, que tanta influência exerceu na teoria e na prática jurídica; c) o conteúdo desse direito criado pelo juiz não pode ser suficientemente previsto com base no conhecimento do texto das normas gerais e abstratas; d) se assim é, diferentemente do que ainda hoje é comum se imaginar, os cidadãos não podem ter, pela mera ciência do teor dos textos das normas gerais e abstratas, um adequado grau de previsibilidade das prováveis consequências jurídicas das suas condutas, a ponto de orientarem, com segurança, o seu comportamento conforme o Direito; e) não haverá para os cidadãos um mínimo de previsibilidade acerca das consequências jurídicas das suas condutas, caso não possuam um mínimo de previsibilidade da maneira como o Judiciário provavelmente julgará o seu caso em um eventual processo judicial; f) por tudo isso, é necessário deslocar o centro de gravidade da concretização da segurança jurídica da norma geral e abstrata para a decisão judicial, passando a ser a previsibilidade desta e não exclusivamente daquela o principal objetivo das medidas voltadas à ampliação do nível de segurança jurídica.

363 A teoria jurídica contemporânea deve buscar, no entanto, soluções no sentido de tornar mais controlável –

reduzindo a patamares mais razoáveis – essa liberdade do julgador ou, mais especificamente, o seu subjetivismo, no manejo dos princípios constitucionais. Nesse sentido, André Ramos Tavares ensina que “o grande desafio do Direito contemporâneo não é o de oferecer previsão normativa específica para as mais variadas demandas e situações de possível conflito que possam surgir nas relações sociais. É antes o desafio de oferecer uma dentre as diversas previsões/soluções encontráveis no sistema, particularmente nas respectivas constituições. O problema, aqui, envolve a racionalização dos princípios existentes e justificação (controlável) da escolha realizada. Em síntese, significa trabalhar de maneira consistente a abertura da Constituição”. TAVARES, André Ramos. A Constituição aberta. Revista Latino-Americana de Estudos

Constitucionais, Fortaleza: Instituto Albaniza Sarasate, n. 8, jan.-jun. 2008.

364 Ressalta-se que se fala, nesta dissertação, em discricionariedade dos juízes ao proferir decisões judiciais

referindo-se à existência de considerável margem de liberdade dos magistrados na interpretação e na aplicação do Direito e, portanto, de não desprezível espaço de liberdade criativa. No entanto, ao reconhecer a aludida discricionariedade, este trabalho acadêmico não defende a possibilidade de os juízes decidirem livremente, de forma arbitrária, ainda que não se ignore que essa prática judicial não é tão rara.

Esclarece-se que a perspectiva adotada não é restrita ao hoje bem aceito ponto de vista de que o juiz cria direito sob o prisma formal ao produzir uma norma jurídica individual e concreta que integrará o sistema jurídico, como Kelsen já havia alertado. Parte-se, na verdade, da ideia de que o magistrado cria materialmente direito365 porque tem uma importante participação na construção do próprio conteúdo das normas gerais e abstratas, que, antes da decisão judicial, não era satisfatoriamente cognoscível, dada a natureza estruturalmente aberta e indeterminada das citadas normas. Além disso, o conteúdo da decisão judicial sofre forte influência de incontáveis variáveis de ordem subjetiva do julgador.

Como visto, é tão clara, nas mais recentes teorias do direito e da metodologia jurídica, a grande participação – com considerável grau de discricionariedade – do juiz na determinação do conteúdo do Direito366 que se chega a dizer que “por vezes dá-se a impressão de que o princípio da vinculação do juiz à lei foi abandonado, na prática, na metodologia moderna”367.

Mauro Cappelletti, no sentido do que se afirma, reconhece a dificuldade e complexidade do papel do juiz, que, em verdade, exerce uma escolha, dentre várias possíveis, ao prolatar uma decisão judicial:

Escolha significa discricionariedade, embora não necessariamente arbitrariedade; significa valoração e ‘balanceamento’; significa ter presentes os resultados práticos e as implicações morais da própria escolha; significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise linguística puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da história e da economia, da política e da ética, da sociologia e da psicologia. E assim o juiz não pode mais se ocultar, tão facilmente, detrás de uma concepção do direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma ‘neutra’. É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha diversa. E a experiência ensina que tal abertura sempre ou quase sempre estará presente.368

365 Mauro Cappelletti observa que, do ponto de vista substancial, não há uma diferença qualitativa entre as

atividades do legislador e a do juiz, que igualmente teriam a natureza de procedimentos de criação do Direito. A diferença entre a criatividade do Direito pelo juiz e pelo legislador seria quantitativa, de grau, uma vez que o último encontraria limites substanciais menos frequentes e menos precisos à sua atividade criativa do que o primeiro. Já no plano processual, há marcantes diferenças entre as naturezas do processo legislativo e do processo judicial. CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 26-27.

366 Isso não significa contrariar, nem mesmo ignorar, a ideia de Peter Haberle de que não é apenas o Poder

Judiciário, mas a sociedade como um todo, que tem a responsabilidade de atribuir sentido ao Direito, concretizando-o, até porque as normas gerais e abstratas são frequentemente cumpridas de maneira espontânea, sem o surgimento de qualquer processo judicial – HABERLE, Peter. A sociedade aberta dos

intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimentalista’ da

constituição. Porto Alegre: Fabris, 1997. Apenas não se nega que a atribuição de sentido do Direito – a sua concretização – feita pelo Judiciário é a oficial e, por isso mesmo, a que prevalecerá e impactará concretamente a vida dos cidadãos em uma eventual disputa judicial. Daí a importância de se refletir sobre medidas que contribuam para a previsibilidade do conteúdo das decisões judiciais.

367 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997,

p. 215.

Desse modo, não são implausíveis as palavras de Lord Radcliffe de que “jamais houve controvérsia mais estéril do que a concernente à questão de se o juiz é criador do direito. É óbvio que é. Como poderia não sê-lo?”369.

Sem dúvida, o primeiro passo para se combater a insegurança jurídica é detectá-la370. Essa foi a finalidade do presente capítulo: identificar e revelar, para poder combatê-la, a grave insegurança jurídica371 que decorre da natural imprevisibilidade das decisões judiciais – causada,

preponderantemente, pela estrutura aberta e indeterminada das normas gerais e abstratas – e da escassez de reflexões voltadas ao desenvolvimento de medidas que busquem tornar tais

decisões mais previsíveis – ou menos imprevisíveis.

Essa carência de medidas de ampliação do grau de previsibilidade das decisões judiciais é provocada, principalmente, pela ilusória crença positivista-legalista, ainda fortíssima, no caráter meramente mecânico da atividade do juiz, que apenas reproduziria, de forma silogística372 e, portanto, neutra, o conteúdo pronto e acabado das normas gerais e abstratas373.

Como as decisões judiciais seriam mera reprodução imitativa, no plano concreto, das normas gerais e abstratas, garantindo-se a previsibilidade dessas últimas, estaria assegurada a previsibilidade daquelas primeiras e – por conseguinte – das possíveis consequências práticas a serem suportadas pelos cidadãos, no âmbito de um eventual processo judicial, na hipótese de adotarem uma determinada conduta. Logo, acreditava-se possível obter-se um nível satisfatório de segurança jurídica por meio de medidas com foco exclusivo nas normas gerais e abstratas. Eis o motivo pelo qual a maior parte dos estudos – e decorrentes medidas práticas – que objetivava o aumento do nível de segurança jurídica preocupava-se, por exemplo, com a estabilidade e irretroatividade das leis, além da igualdade perante a lei, ignorando, por completo, a questão da oscilação da jurisprudência, da irretroatividade da mudança de entendimento jurisprudencial e da igualdade perante as decisões judiciais – a uniformidade da jurisprudência.

369 Apud CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 25.

370 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva,

2012, p. 449.

371 De tal magnitude é a carência de segurança jurídica percebida na atualidade que alguns chegam a apontar a

insegurança jurídica como o grande mal do século XXI. CAPEZ, FERNANDO; CAPEZ, FLAVIO. Insegurança jurídica: o mal do século XXI. In: GERMANOS, Paulo André Jorge (Org.). Segurança jurídica: coletânea de textos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 40.

372 Adequada a síntese de Streck e de Abboud de que “no paradigma filosófico em que nos encontramos, é

equivocado falar ainda em subsunção, indução ou dedução”. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges.

O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 66.

373 Bustamante sintetiza de maneira clara a posição que se adotou sobre esse ponto neste capítulo: “o conteúdo

do Direito não é algo previamente dado em normas inequívocas, algo para ser descoberto, mas uma prática construtiva e interpretativa de formação de significados por meio da argumentação”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 289.

No entanto, as inúmeras teorias e movimentos sucintamente apresentados neste capítulo – sobretudo o realismo jurídico, a filosofia da linguagem e a hermenêutica jurídica mais recentes bem como as teorias da argumentação jurídica e o neoconstitucionalismo – evidenciam que, mesmo no civil law374, a atividade judicial não é neutra, nem pode ser adequadamente prevista pelos cidadãos a partir dos textos das normas gerais e abstratas, isto é, o conteúdo da decisão judicial é bastante influenciado por inúmeros fatores extrajurídicos correlatos a atributos pessoais do juiz375. De forma mais direta: magistrados diferentes tendem a julgar diferentemente uma mesma questão jurídica, impondo consequências práticas distintas a cidadãos que adotaram um mesmo comportamento, em um mesmo contexto. Isso evidencia a verdadeira falácia que é o dogma da imparcialidade do juiz, divulgado pelo positivismo legalista e que ainda hoje habita as mentes dos juristas brasileiros376.

Com essa percepção, fica claro que nenhum cidadão poderá prever as possíveis consequências que impactarão concretamente a sua vida, como resultado de um eventual processo judicial que analise os efeitos jurídicos da sua conduta, mesmo conhecendo – utopicamente – todo o texto da Constituição e de todas as leis existentes no ordenamento, caso não conheça a forma como os juízes e os tribunais – sobretudo os superiores – vêm decidindo a correlata questão jurídica. Da mesma forma, para fins de segurança jurídica, qual o sentido de se buscar certa estabilidade das leis, reduzindo a sua frenética alteração, sem se preocupar, também, em evitar uma frequente oscilação jurisprudencial causada pela mudança na composição dos tribunais e não pela mutação da sociedade e dos seus valores? Ainda no campo da segurança jurídica, de nada adianta garantir-se, por exemplo, a irretroatividade da lei, sem que se garanta a irretroatividade da alteração de entendimento jurisprudencial. Inócuo falar-se em igualdade perante a lei se não houver, também, uniformidade de entendimentos

374 Bastante expressivo, nesse sentido, o pensamento de Almiro do Couto e Silva de que “é notório que os juízes

modernos estão muito distantes da ‘boca que pronuncia as palavras da lei’ ou dos juízes-autômatos, imaginados por Montesquieu. Hoje, não somente no sistema da common law, do judge made law, mas também nos sistemas que, como o nosso, ligam-se ao do Direito Romano, os juízes se transformaram em legisladores”. SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de Direito Público, São Paulo, ano XX, n. 84, p. 46-63, out.-dez. 1987, p. 52. Thomas da Rosa de Bustamante, a propósito, narra que, até mesmo na França, tem-se passado “a reconhecer – contrariamente à teoria tradicional, segundo a qual o juiz seria um mero autômato, a aplicar irrefletidamente a lei – a função criativa da jurisprudência e o caráter de ‘fonte do direito’ dos precedentes judiciais”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de, op. cit., p. 443.

375 Afinal, como recorda João Maurício Adeodato, até mesmo as teorias positivistas mais avançadas do século

XIX e outras posteriores, como a de Hans Kelsen, já recusavam a ideia de que o conceito de direito reduzia-se ao conjunto de leis e que o conteúdo da decisão judicial era o simples resultado da dedução silogística do conteúdo da norma geral e abstrata. ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 395.

acerca de um mesmo tema na jurisprudência377.

É por adotar tal premissa que esta dissertação pretende contribuir com o aumento do nível de segurança jurídica por meio do estudo de uma medida jurídica – dentre várias outras capazes de contribuir com esse objetivo – destinada a reduzir – sem a ingenuidade de esperar eliminá-la – a imprevisibilidade das decisões judiciais: o precedente judicial vinculante. Esse será o escopo dos dois próximos e últimos capítulos: refletir sobre o precedente judicial vinculante como instrumento de segurança jurídica. Paradoxalmente, “para lutar contra a insegurança do Direito, é preciso lançar mão de instrumentos jurídicos”378.

Tão clara é a criação do direito pelo juiz para Cappelletti que este afirma que a discussão verdadeiramente importante e problemática não deveria ser sobre o caráter criativo ou não criativo da decisão judicial, mas a do grau de criatividade e dos modos, limites e legitimidade dessa criatividade judicial379. Como anunciado, é no âmbito dessa preocupação com o grau, modo, limite e legitimidade da criação do direito pelo juiz que se insere a segunda parte desta dissertação, composta pelo Capítulo 3 e pelo Capítulo 4, que têm o escopo de iluminar a importância de, em nome da segurança jurídica dos cidadãos, restringir- se a criatividade judicial dos magistrados e tribunais brasileiros – embora não se advogue, de maneira alguma, uma ingênua possibilidade de sua eliminação – quando já exista precedente judicial sobre a questão jurídica.

377 Oferece-se, a seguir, um exemplo do que se afirma sobre a impossibilidade de se alcançar um grau admissível

de segurança jurídica por meio de medidas com foco exclusivo na norma geral e abstrata, sem contemplar as decisões judiciais. Uma lei tributária que retroaja para exigir o tributo de um contribuinte é considerada, além de inconstitucional, quase um sacrilégio. Uma lei tributária que, em razão da prática do mesmo fato, determine a cobrança de tributo de um dos concorrentes e não do outro é reputada, além de inconstitucional, praticamente uma heresia. No entanto, a modificação, com efeitos retroativos, de um entendimento jurisprudencial dominante no sentido da inconstitucionalidade de um tributo para o da sua constitucionalidade – embora produza efeitos práticos semelhantes aos da lei retroativa – é um fenômeno ignorado pela maior parte da doutrina relacionada à segurança jurídica, que pouco se dedicou ao princípio da irretroatividade na oscilação da jurisprudência. Concorrentes obtendo decisões judiciais contraditórias – um no sentido da constitucionalidade do tributo e outro no da inconstitucionalidade – também não parece uma situação que tenha angustiado a maioria daqueles que refletiram sobre a segurança jurídica, que talvez concebam essa desigualdade perante as decisões judiciais, representada pela heterogeneidade da jurisprudência, como uma natural decorrência da liberdade de julgamento dos magistrados, não obstante gere absurda concorrência desleal, tanto quanto o faria uma lei flagrantemente violadora do princípio da isonomia tributária.

378 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São

Paulo: Malheiros, 2011, p. 73.