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A hermenêutica – que tem como grandes expoentes Friedrich Ernst Daniel Schleiermacher, Wilhelm Dilthey, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Ricouer – indica as condições da possibilidade de compreensão do sentido em geral e opõe-se ao conceito objetivista do conhecimento, suprimindo o tradicional esquema de separação entre sujeito- objeto, segundo o qual o sujeito cognoscente conhece o objeto em sua pura objetividade, sem qualquer interferência de fatores subjetivos284.

A compreensão seria, em verdade, simultaneamente objetiva e subjetiva, na medida em que “o sujeito que compreende insere-se no horizonte de compreensão e não se limita a representar passivamente o objeto da compreensão na sua consciência, mas configura-o”285.

Foram importantíssimas para o desenvolvimento dessa visão as ideias de Heidegger – retomadas por Gadamer – da estrutura circular do processo de compreensão, o chamado círculo hermenêutico286, e da pré-compreensão como condição prévia do próprio compreender287.

A interpretação de qualquer texto – e com o texto normativo jurídico não acontece diferente – depende não apenas da compreensão do sentido de cada uma das palavras que o formam como também do sentido do texto como um todo, isto é, do conjunto de frases e palavras que o compõem, globalmente consideradas. Esse processo de compreensão teria como ponto de partida uma suposição, mais ou menos vaga, do sentido – uma hipótese do significado – de cada uma das palavras e do texto como um todo. Se o hipotético significado de uma palavra não se adequar ao conjecturado sentido do texto como um todo, o intérprete terá de retificar sua suposição inicial quanto ao sentido da palavra em questão ou da mensagem.

284 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: HASSEMER, Winfried;

KAUFMANN, Arthur (Org.). Introdução à flosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 149-150.

285 Ibid., p. 150.

286 GADAMER, Hans-Georg, op. cit., p. 270-271.

287 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997,

Formulada nova hipótese para o sentido da específica palavra ou do texto como um todo, reinicia-se esse processo mental de verificação de compatibilidade entre os supostos significados – agora revisados – de cada palavra e do texto em si, o que poderá resultar na necessidade de nova retificação dos sentidos especulados e reinício desse processo. Daí a imagem proposta de um círculo hermenêutico, já que “o processo de olhar para a frente e para trás pode ter que repetir-se inúmeras vezes”288.

O mais importante, para o que se espera demonstrar, é a noção de que tais suposições de sentido em que se baseia o processo circular de compreensão de um texto são determinadas diretamente pela pré-compreensão, inerente ao intérprete, com a qual ele acessa a linguagem289. A comentada pré-compreensão – que influencia o resultado de todo o processo de compreensão do texto – depende, por sua vez, da vivência do intérprete, dos conhecimentos adquiridos a partir da sua experiência de vida290.

Em outras palavras, para a hermenêutica voltada à compreensão do sentido dos textos jurídicos, o juiz, ao contrário do que o positivismo legalista preconizava, “não subsume simplesmente o caso na lei, situando-se à margem deste processo, antes desempenha na chamada aplicação do direito um papel ativo-configurador”291. Como observa Arthur

Kaufmann, “cada interpretação implica, desde logo, que se disponha da lei, tornando-se o intérprete sujeito desse ato”292.

Se para a hermenêutica não há como se separar, nas ciências da compreensão, a racionalidade da personalidade de quem compreende, não tendo o sujeito cognoscente um papel simplesmente receptivo de um conteúdo pronto e acabado, externo e indiferente a ele, também não há como se defender que o juiz não exerce importante papel criativo no processo de compreensão do sentido das normas gerais e abstratas, sendo um mero autômato na determinação e aplicação do conteúdo do Direito293.

A forma como será compreendido o sentido dos textos jurídicos – e, por conseguinte, a maneira como eles serão aplicados – é, portanto, diretamente influenciada pelas pré-compreensões do julgador, moldadas por suas experiências. Logo, para a hermenêutica, juízes diferentes tendem a compreender distintamente o sentido de um mesmo texto jurídico, aplicando-o de maneira desigual.

288 LARENZ, Karl, op. cit., p. 212.

289 GADAMER, Hans-Georg, op. cit., p. 356-357. 290 LARENZ, Karl, op. cit., p. 288-289.

291 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: HASSEMER, Winfried;

KAUFMANN, Arthur (Org.). Introdução à flosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 150.

292 Ibid., p. 167. 293 Ibid., p. 151.

Isso coloca sob os holofotes quão grande era a ilusão positivista, sobretudo a da Escola da Exegese, de univocidade – e absoluta segurança jurídica – das normas gerais e abstratas, as quais deveriam ser literalmente interpretadas com base em processo lógico- subsuntivo, por qualquer juiz, que, de forma mecânica e inexorável, chegaria ao mesmo, único e previsível resultado.

Correto, então, Fritjof Haft: “o dogma da subsunção é insustentável. A aplicação do direito é – também – um trabalhar criativamente a lei. A lei é apenas a possibilidade do direito. Só na aplicação ao caso concreto ela se torna direito real”294.

Diante dessa percepção de que os textos das normas gerais e abstratas são incapazes de evitar interpretações – e, portanto, aplicações – diferentes do Direito, aponta-se que a decisão judicial somente pode ser legitimada por intermédio da argumentação jurídica e que o seu critério de correção seria a possibilidade de consenso entre os interessados295. Nessa

esteira, o sistema seria aberto, e a verdade – inclusive a normativa – jamais seria objetiva, absoluta, contida totalmente no objeto do conhecimento e à espera da neutra apreensão por parte do sujeito cognoscente, mas, sim, uma verdade intersubjetiva296.

Percebe-se que o que se apresenta, neste item, sobre a hermenêutica mais recente aproxima-se bastante das ideias já expostas anteriormente sobre a filosofia da linguagem e o giro linguístico. Não se trata de mera coincidência, já que, como destaca Gadamer, o processo hermenêutico é um processo de linguagem, isto é, a linguagem é o meio da experiência hermenêutica297. Dessa forma, é natural que o surgimento de novas ideias no âmbito de estudo da linguagem tenha influenciado o desenvolvimento de novas – e aproximadas – ideias no campo da hermenêutica. Igualmente natural que a análise da hermenêutica jurídica mais recente tenha-nos levado a uma conclusão bastante semelhante a que chegamos a partir do estudo do giro linguístico aplicado ao fenômeno jurídico.