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CAPÍTULO 3 – OS PRECEDENTES JUDICIAIS VINCULANTES COMO

3.1 Considerações propedêuticas

A primeira parte da dissertação, representada pelo Capítulo 1 e pelo Capítulo 2, teve os principais objetivos de demonstrar que: a) o princípio da segurança jurídica, muito além de ser uma norma jurídica de status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro – tendo, portanto, uma grande e inegável força normativa – é fundamento da – e é fundamentado pela – própria ideia de Direito e impõe que o Estado adote comportamentos que promovam o estado ideal de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do Direito; b) como é o Poder Judiciário que possui a competência de, em um processo judicial, interpretar oficialmente – e de maneira inevitavelmente construtiva, criativa – o direito e decidir, em definitivo, acerca das consequências jurídicas de certa conduta, impactando de maneira intensa e concreta a vida dos cidadãos, bem como na medida em que as normas gerais e abstratas possuem uma estrutura consideravelmente aberta e indeterminada, não está nessas, mas, sim, nas decisões judiciais o centro de gravidade da segurança jurídica; c) revela- se, portanto, extremamente desafiadora a realização do princípio da segurança jurídica diante da constatação de que se, por um lado, a promoção dos estados de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade do Direito depende fortemente da existência de um razoável grau de previsibilidade das decisões judiciais, por outro, o conteúdo das decisões judiciais, por inúmeros fatores já debatidos, não pode ser amplamente previsto com o mero conhecimento dos textos das normas gerais e abstratas, possuindo uma natural e inevitável margem de imprevisibilidade.

Esta segunda parte da dissertação – composta pelo presente e pelo próximo, e derradeiro, capítulo – tem o objetivo de estimular a imaginação e a efetivação de medidas de redução do grau de imprevisibilidade das decisões judiciais no Brasil. O foco, nesse sentido, será a análise da possibilidade de adoção, no Brasil, da doutrina dos precedentes judiciais vinculantes, típica do common law, e da sua importância como instrumento de elevação do grau de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade – e, portanto, de segurança jurídica – do Direito brasileiro.

Neste capítulo, o foco estará na definição de acordos semânticos sobre o que são os precedentes judiciais – sobretudo, os vinculantes –, no estudo da sua origem no common

law e de sua compatibilidade com os ordenamentos jurídicos do civil law, no exame das suas

consequências promotoras do estado de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade jurídicas e nos cuidados a serem tomados pelos juristas brasileiros para que não se acabe, pela eventual má implantação da sistemática em comento, prejudicando o nível de segurança jurídica do Direito brasileiro e o seu grau de adaptabilidade às mudanças sociais, em vez de prestigiá-los.

Imprescindível alertar que, embora se costume falar em teoria dos precedentes judiciais vinculantes, em doutrina dos precedentes judiciais vinculantes, em teoria do stare

decisis ou em doutrina do stare decisis, no singular – e aqui também o será feito, por razão de

simplificação –, existem, na verdade, diversos modelos teóricos de precedentes judiciais1, embora todos tenham a característica comum da defesa, em maior ou menor grau, da necessidade dos juízes e dos tribunais seguirem os precedentes judiciais.

Dentre esses modelos, alguns são extremamente fortes e chegam a inadmitir a possibilidade de revogação dos precedentes – como ocorria na Inglaterra, até 1966, com a

House of Lords – que não são considerados adequados por engessar o Direito.

Antagonicamente, outros modelos são extremamente fracos, conferindo excessiva margem de discricionariedade aos julgadores na interpretação dos precedentes judiciais, motivo pelo qual não são reputados apropriados à consecução da principal finalidade de uma sistemática de precedentes vinculantes: a promoção da segurança jurídica e da igualdade material perante as decisões judiciais2.

Isso pode ocorrer em decorrência da defesa de um modelo que concebe os precedentes judiciais como princípios jurídicos, com a sua estrutura acentuadamente aberta e

1 Para uma maior compreensão de alguns dos inúmeros modelos de abordagem dos precedentes judiciais, sugere-

se a leitura de: ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Judges as rule makers. In: EDLIN, Douglas E.

Common law theory. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 30-50.

2 Melvin Eisenberg enfatiza que a força do princípio do stare decisis, ou, mais especificamente, a intensidade da

força vinculante de um precedente judicial é inversamente proporcional à extensão da discricionariedade que o órgão judicial que deve aplicá-lo possui em relação à determinação – e consequente aplicação – do teor da norma jurídica veiculada pelo precedente – EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 51. Parte-se da premissa, no presente capítulo, de que a força vinculante dos precedentes judiciais promove a segurança jurídica e a igualdade ao contribuir, por exemplo, para a inteligibilidade do Direito, a uniformidade das decisões judiciais, a estabilidade dos entendimentos jurídicos dos tribunais, a proteção da confiança legítima dos cidadãos e a previsibilidade do modo como os órgãos judiciais decidirão um processo envolvendo uma determinada questão jurídica. Diante disso, um modelo de precedentes judiciais que enfraqueça bastante a sua força vinculante ou torne extremamente aberta – e, por isso, incerta – a interpretação do precedente judicial, gerando decisões judiciais que o aplicam de forma diametralmente oposta, não se mostra adequado ao principal objetivo perseguido por este capítulo: demonstrar quão útil é a prática de se seguir precedentes judiciais para a elevação do nível de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do Direito e, por conseguinte, para a ampliação do grau de segurança jurídica.

indeterminada, de grande elasticidade interpretativa, e a possibilidade de sua ponderação, de subjetividade pouco controlável, com outros princípios em um caso concreto – o que, certamente, enfraquece o precedente, diminuindo a probabilidade de que a solução por ele adotada seja efetivamente replicada em um caso similar. Também pode acontecer porque o modelo concebe os precedentes judiciais como apenas um dentre inúmeros fatores a serem levados em consideração – e sopesados – na elaboração da decisão judicial, minimizando a sua força vinculante. Ou, ainda, por se entender que, para que um precedente seja aplicado, deve haver tão exata identidade de fatos entre o caso paradigmático e o caso subsequente que, na prática, aquele raramente fundamentará a decisão de um caso similar.

Há, por outro lado, um modelo intermediário que reconhece intensa força vinculante aos precedentes judiciais, considerando que deles derivam regras jurídicas contextualizadas, mas que admite a possibilidade da sua revogação em hipóteses especiais que revelam a nocividade da sua manutenção, desde que de maneira suave, não surpreendente, não traumática e respeitando-se a confiança legítima dos cidadãos.

É esse o modelo mais adequado para que seja maximizada a utilidade dos precedentes judiciais vinculantes como instrumento de promoção da segurança jurídica3 – e

de outros relevantes objetivos do ordenamento jurídico, como a igualdade, a celeridade processual, a eficiência e a legitimidade do Poder Judiciário –, sem que se retire do Direito a sua adaptabilidade ao dinamismo das relações sociais.

Logo, adverte-se que sempre que neste trabalho acadêmico forem, doravante, utilizadas, com o objetivo de simplificação, as expressões doutrina ou teoria dos precedentes

3 Reproduz-se a explicação de Bustamante – à qual se adere – sobre a maior compatibilidade da segurança

jurídica com o modelo dos precedentes judiciais vinculantes enquanto regras: “[...] o que justifica a remissão a um precedente judicial é justamente a relativa determinação das normas adscritas que são paulatinamente produzidas pela jurisprudência. Raramente se verá, portanto, a hipótese de o aplicador do Direito se referir apenas a um princípio que tenha sido enunciado na argumentação que decide um caso anterior, pois em todo caso judicial está presente ao menos uma norma universal do tipo ‘regra’ que conjugue os fatos do caso com determinado tipo de consequência normativa. A técnica do precedente judicial só é importante porque por meio dela é possível reduzir o grau de indeterminação que é característico dos princípios jurídicos, de sorte que normalmente a ratio decidendi deve se revestir de um caráter de ‘regra’.” Certamente, o modelo dos precedentes judiciais vinculantes como princípios não favorece a segurança jurídica, uma vez que os princípios são bem menos determinados que as regras: enquanto essas fornecem uma consequência determinada para a hipotética ocorrência de certos fatos relevantes, aqueles apenas geram razões que demandam ações – sem que se definam quais; indeterminadas, portanto – que contribuam tanto quanto possível para os fins por eles estabelecidos. Além disso, as regras são aplicadas na base do tudo ou nada, enquanto os princípios admitem uma pouco previsível ponderação e consequente gradação. Por isso é que o autor – tal qual se faz neste estudo – concebe os precedentes judiciais vinculantes como “autênticas regras jurídicas que contêm determinações sobre a conduta devida”; é que “a técnica do precedente apenas se torna relevante nos casos em que é possível extrair uma ratio decidendi do tipo regra que seja capaz de elevar o grau de objetivação do Direito”. A ratio

decidendi compreendida como princípio não possui tal capacidade e, assim, “não tem um valor relevante como

‘precedente judicial’”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 340-353; 381; 468.

judiciais vinculantes, doutrina ou teoria do stare decisis, sistemática dos precedentes judiciais vinculantes ou análogas é a esse último citado modelo que se estará referindo.

Ilumina-se, finalmente, o fato de que dois casos nunca são precisamente idênticos, já que as situações fáticas são sempre rigorosamente únicas e irrepetíveis. Por isso, opta-se por utilizar, nesta segunda parte da dissertação, as expressões casos similares ou semelhantes, em vez de casos iguais ou idênticos, para se referir àqueles casos cujos fatos possuam tamanha correspondência ao quadro fático considerado determinante pelo órgão judicial que elaborou o precedente – para decidir da maneira que decidiu – que a mesma solução adotada no primeiro caso deverá ser seguida no julgamento daqueles. Por isso, sempre que se falar em casos similares ou semelhantes, será com essa conotação.

Com essas observações, considera-se que o leitor está preparado para melhor compreender as ideias que este terceiro capítulo pretende transmitir.