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1.1 – A importância das Irmandades nas Minas

No documento cristianooliveiradesousa (páginas 31-35)

Um rápido passeio pelas ruas do Ouro Preto é suficiente para que se possa ter uma noção da importância que a religiosidade tinha para as pessoas que ali viveram desde sua fundação aos dias de hoje. A arquitetura religiosa, emoldurada pelos característicos telhados ouro-pretanos se beneficiou do relevo sinuoso das Minas formando um mosaico impressionante que nos leva a imaginar como era aquele cenário no século XVIII, em meio a procissões, festas e celebrações típicas do barroco. De fato a importância adquirida pelas confrarias religiosas no território das Minas – as responsáveis pela construção dos numerosos templos existentes ali – foi inclusive assunto de uma reportagem publicada em 1858 no jornal

O Correio Official de Minas:

O viajante que pela primeira vez pisar o solo montanhoso de nossa capital, e de qualquer ponto em que se colocar e se deparar de um golpe de vista com três, quatro e mais templos, não poderá deixar de admirar o grande número de tais santuários em relação a nossa população, e de encher-se de respeito por tantos monumentos de piedade e religião que nos legaram nossos antepassados, quando a mãos largas voltavam ao esplendor do culto grande e talvez a maior parte do produto dessas riquíssimas minas que se lhes apresentaram inesgotáveis (...)11

As confrarias religiosas assumiram nas Minas uma importância diferenciada em relação às demais regiões que integravam o Império Português. A descoberta do ouro pelos bandeirantes paulistas no final do século XVII na região que viria a se constituir anos mais tarde como a capitania de Minas Gerais deu à sociedade que ali surgiu algumas características diferenciadas. No inicio do século XVIII a região se tornou um importante centro econômico,

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Correio Official de Minas. Ouro Preto. Ano. 1858. N. 204. ano: II quinta-feira, 23 de dezembro. Arquivo da Igreja

e seu povoamento ocorreu de forma bastante acelerada. Pessoas das mais diferentes regiões se dirigiram às Minas em busca de enriquecimento rápido. Este grande afluxo de pessoas fez com que rapidamente se organizassem arraiais e vilas na região, onde muitas vezes a presença do Estado ainda não estava plenamente estabelecida. A igreja e a religiosidade assumem ali um papel preponderante. Caio Boschi, em sua clássica obra a respeito das confrarias mineiras e das disputas de poder na região entre o Estado e a Igreja (BOSCHI, 1986) nos dá uma importante definição de como estas questões se davam na capitania mineira. Segundo Boschi a Igreja, representada pelas irmandades, teria chegado ao território das Minas antes mesmo do Estado enquanto instituição, pois:

“Simples aventureiro, sem eira nem beira, o objetivo do recém-chegado era o de aproveitar-se das riquezas do Eldorado brasileiro e regressar a seu local de origem. (...) Sua vida, toda incerteza, ao lado do instinto natural de se agrupar, levaram-no a associar-se a pessoas que padeciam dos mesmos problemas, das mesmas mazelas. Desse modo, quando, aos domingos, o adventício se dirigia ao arraial para participar dos ofícios religiosos simultaneamente ao exercício da fé cristã ele buscava encontrar um ponto de apoio, um local de conforto diante da insegurança e da instabilidade de sua vida (...) E foi sob a sombra das capelas e com essa perspectiva associacionista que os primeiros mineiros se aglutinaram para instituir suas irmandades” (BOSCHI, 1986, p. 22)12.

A esse respeito, Boschi afirma que:

“ainda do ponto de vista cronológico, as irmandades mineiras chegaram mesmo a se constituir anteriormente à instalação do aparelho burocrático e militar, o que permite aventar a hipótese de que a solidez e a permanência da vida urbana em Minas Gerais deveram-se mais a essas comunidades leigas que ao Estado português” (BOSCHI, 1986, p. 32)

Segundo Boschi no início do desenvolvimento e ocupação do território das Minas o Estado teria se preocupado em ocupar as funções predominantemente político- administrativas, e às Irmandades teriam ficado as responsabilidades pelas funções urbanas13. De fato se nos atentarmos para o próprio traçado urbano das vilas mineiras no momento de sua formação podemos perceber que ele seguia o “sabor dos achados do ouro”, mas também poderia ser acompanhado pelas igrejas que as associações religiosas de leigos iriam construindo enquanto se ocupava a região.

“A religiosidade era parte fundamental na vida dos habitantes da colônia. Questões como a “boa-morte”, por exemplo, eram essenciais para aqueles homens. Integrar-se a uma irmandade preenchia assim, grande parte das suas necessidades, ou seja, a garantia de amparo na doença, na velhice e na morte, seja através de socorro financeiro ou espiritual. As irmandades, por exemplo, através do benefício do sufrágio, ficavam responsáveis pela celebração de

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Lembramos aqui que Boschi se referia ao momento de formação da sociedade mineira no trecho citado.

13 Obviamente estamos nos referindo aqui a um momento anterior ao estabelecimento de fato das vilas, e a

diversas missas, quando da morte do irmão. Além dos sufrágios, a irmandade assegurava ainda uma sepultura em solo sagrado aos irmãos defuntos. E isso, para aqueles homens, era, com certeza, meio caminho andado para a salvação de sua alma. Essas eram, sem dúvida, questões fundamentais, que levavam aqueles homens a buscar a filiação a uma irmandade” (SOUSA, 2008, p. 15).

As irmandades em Minas Gerais exerciam um papel de grande importância para os homens que ali se aventuravam em busca do ouro. As construções dos templos, e inclusive a quantidade e tamanho dos mesmos, eram critérios fundamentais na definição da importância de determinado bairro ou vila. “O “espírito de competição” entre os bairros, arraiais e vilas das Minas serviram também como um “agente propulsor do processo de urbanização dessas paragens.” (BOSCHI, 1986, p. 33). Aliás, o caráter urbano da sociedade mineira é mais uma das diferenças entre a forma como a região se desenvolveu. A exploração do ouro se dava em núcleos urbanos, contrastando com as sociedades fundamentalmente rurais das demais regiões da América Portuguesa. Boschi falando sobre as características da região mineradora afirma:

“O caráter aluvionário demonstrava a instabilidade e a incerteza da exploração aurífera que, às vezes, consistia em veios de duração efêmera. Assim, conquanto a vida urbana dos primeiros tempos fosse condicionada pela extração e pela produção do ouro, outras atividades se organizaram para lhes dar suporte e respaldo. Sabe-se hoje que o que manteve viva a dinâmica das povoações coloniais mineiras, mormente na segunda metade do século, não foi a exploração aurífera, mas outras atividades e instituições, como o comércio, a administração, as forças militares, a variada produção cultural e as associações leigas”.(BOSCHI, 1986, p. 30)

Dessa maneira, à medida que a sociedade nas Minas ia se complexificando, as associações religiosas de leigos também acompanhavam o ritmo, surgindo assim diferentes irmandades que se identificavam com setores específicos daquela sociedade. Em uma sociedade escravista como a sociedade da América Portuguesa, a primeira divisão era entre as irmandades de senhores e de escravos. Mas reduzir a categorização dessas irmandades apenas em dois grupos é simplificar demais aquela realidade. Fritz Teixeira de Salles, um dos primeiros a produzir uma obra que trata especificamente das associações religiosas de leigos nas Minas faz uma tipificação e observa uma constante na constituição das irmandades segundo a categoria social e econômica, naquele território durante o século XVIII. Assim:

“Santíssimo Sacramento, N. S. da Conceição, São Miguel e Almas, Bom Jesus dos Passos, Almas Santas e poucas outras, eram de brancos e classes dirigentes ou reinóis; Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, de negros escravos; N. S. das Mercês, N. S. do Amparo, Arquiconfraria do Cordão, de mulatos e crioulos, ou mesmo pretos forros; São Francisco de Assis e Ordem 3ª de N. S. do Carmo, dos comerciantes ricos e altos dignatários: estas últimas apareceram a partir de 1745 ou 1750” (SALLES, 1963, p. 47).

Conforme podemos observar pela caracterização feita por Salles, diversas eram as associações religiosas de leigos nas Minas e estas agrupavam em seu seio diferentes setores daquela sociedade. Fazer parte de uma congregação religiosa era requisito fundamental na vida social da América Portuguesa. Muito além da segurança que isto significava, era em meio àquelas associações religiosas que a vida social acontecia. Era dentre os membros de uma mesma irmandade que laços sociais se firmavam. Segundo Fritz Teixeira de Salles, era em meio a essas organizações que “as camadas sociais se aglutinavam (...) passando a usá-las como associações de interesse grupal” (SALLES, 1963, p. 34). O estudo de Salles serve até hoje como referência para os pesquisadores que resolvam se aventurar nos arquivos paroquiais à procura de documentos relativos a estas associações. A partir da caracterização feita por Salles, as associações religiosas de leigos deixam de ser apenas um dos tópicos abordados em estudos gerais relativos à história das Minas para se transformarem em foco de estudos específicos, gerando uma vasta bibliografia que trata do tema.

O estudo do historiador Caio César Boschi intitulado “Os leigos e o poder” e já aqui citado diversas vezes é, até hoje, o trabalho de maior peso historiográfico que tem as irmandades religiosas de leigos como seu objeto de estudo (BOSCHI, 1986). Em sua obra Boschi analisa as relações ente o Estado e a Igreja na região das Minas, mostrando assim o importante papel desempenhado pelas irmandades na vida religiosa e principalmente social daqueles homens. Além desta obra, vários são os estudos que abordam o tema das irmandades, em sua maioria enfatizando a questão do escravismo, a respeito das irmandades reconhecidamente identificadas como sendo aquelas que reuniam os negros ou mulatos em seu corpo de irmãos. Apenas recentemente o estudo das irmandades de grupos identificados como os de elites passaram e ser foco da historiografia que trabalha com a questão colonial. As Ordens Terceiras são uma das associações religiosas comumente associadas às elites locais. Mas a constituição social de seus membros não era a única diferença entre este tipo de associação religiosa com as demais irmandades existentes no império português. Para compreendermos melhor como as Ordens Terceiras se diferenciavam das demais associações religiosas de leigos, temos que realizar uma análise buscando compreender em que contexto se deu sua origem e as transformações pela qual passou até sua chegada e instalação em Vila Rica.

No documento cristianooliveiradesousa (páginas 31-35)