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A importância das levadas para a ilha da Madeira

PARTE II – AS LEVADAS DA ILHA DA MADEIRA E O PATRIMÓNIO

Capítulo 4 – As levadas da ilha da Madeira como Património Cultural

4.1 A importância das levadas para a ilha da Madeira

É constatável, por tudo o que já foi exposto neste trabalho, que as levadas, desde o início do povoamento, têm uma forte e inseparável ligação com a própria ilha e suas gentes. São, sem dúvida, um dos elementos da sua cultura que mais se destaca, sendo assunto incontornável, identitário e indissociável da região.

Para a agricultura, principalmente na fase inicial do povoamento e no auge das culturas ricas, elas tiveram uma influência importantíssima, permitindo que a mesma tivesse um desenvolvimento como poucas vezes se viu em Portugal. As primeiras levadas, apesar de serem pouco extensas e de perderam grandes quantidades de água devido à sua estrutura rudimentar, possibilitaram o início da agricultura na ilha. Situando-se junto às ribeiras nas zonas mais a sul da ilha, serviam para regar hortaliças, tubérculos, cereais e

árvores de fruto que serviam para alimentar os habitantes302. A necessidade de importar

os alimentos foi sendo, por consequência, evitável graças às levadas que permitiram a prática de uma agricultura de subsistência. Esta prática era, porém, insuficiente para tornar esta região, afastada por longos quilómetros da periferia, economicamente e estrategicamente viável. Implementado o regime de sesmaria e introduzida a planta da cana-de-açúcar, que teria um papel fundamental na vida agrícola e económica, as levadas foram tornando-se no principal eixo sustentável de todo o crescimento que se verificou. Se estes canais de irrigação devem muito do seu progresso à cana-de-açúcar podemos afirmar, também, que esta deve, profundamente, às levadas da ilha da Madeira, uma vez que, sem elas, a desenvoltura que alcançou seria inatingível, tendo, inclusive, contribuído para que esta cultura se tornasse na monocultura praticada na ilha. Tal como já foi referido, as levadas e os canaviais complementaram-se pela sua dependência mútua. Sem os canaviais que, conjuntamente com os engenhos e moinhos, faziam a matéria-prima, o açúcar e o melaço, que era vendida e sustentava a economia de toda a região, a construção das levadas, muito provavelmente, acabaria por ter sido irrisória comparativamente com o que se tornou. Mas é, igualmente, verdade que sem as mesmas, irrigadoras incansáveis dos canaviais, a grandiosidade que as fases do açúcar atingiu na ilha não teria sido possível, pois o seu desenvolvimento dependia, em muito, da água.

Para além disso, estes canais de irrigação contribuíram para a evolução de muitas indústrias e de toda a economia da Madeira. Neste sentido, já o Padre Fernando Augusto da Silva e Carlos Meneses, no Elucidário Madeirense, afirmavam que “a verdade é que eles constituem o principal elemento da prosperidade da agricultura madeirense, sobretudo das chamadas «culturas ricas» (…) e um dos factores mais importantes das prosperidades de todo o arquipélago”, e, ainda que

a «importância e necessidade» das nossas levadas, isto é, a conservação e ampliação dos actuais aquedutos e a exploração de novos mananciais, constituem o principal factor da agricultura madeirense, como deixámos dito, e são portanto o elemento basilar e primordial de toda a economia do distrito303.

302 “(…) água de levadas, com que regam muita hortaliça de couves murcianas, berengelas e cardos e da

mais que há, e pomar de árvores de espinho, palmeiras, aciprestes, pereiras, romeiras e toda frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas” (Frutuoso, Gaspar (1968), Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, p. 114).

303 Silva, Padre Fernando Augusto da & Meneses, Carlos Azevedo de (1998), Elucidário Madeirense, 2.ª

ed., vol. 2, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura-Direção Regional dos Assuntos Culturais, pp. 455-456.

Tendo, no passado, sido responsáveis por fazer mover os moinhos, engenhos e serras de água, com as águas que transportavam, são, ainda hoje, uma das principais fontes de energia da ilha.

Para além disso, estes aquedutos, assim como as ribeiras, tiveram uma grande influência na forma como a população se foi fixando na ilha. Devido à conveniência de se situar o mais perto possível dos locais onde existe água, a fim de satisfazer necessidades, como é o caso das lides domésticas comuns, grande parte dos habitantes procuraram edificar as suas habitações junto às ribeiras. Mas, com o crescimento demográfico, as margens das ribeiras não chegavam para todos, sendo por isso que se verificou a edificação das habitações junto às levadas, de modo a continuarem a ter, por perto, água. Em outros casos, aconteceu, certamente, o oposto, tendo sido tiradas novas levadas que, antes de chegarem aos terrenos agrícolas, passavam nas proximidades das casas. Seja qual tenha sido o caso, o que é inquestionável é o facto de terem permitido e proporcionado, desde cedo, aos habitantes um elemento essencial à vida304. A ida à levada

para o retiro de água para a confeção de alimentos, higiene pessoal, para dar de beber aos animais e irrigar as pequenas hortas de subsistência eram situações e práticas comuns e naturais. A esplanada era, muitas vezes, o único caminho que permitia às pessoas se deslocarem até casa, transportarem produtos agrícolas, doentes, etc., e foi, muito provavelmente, graças às levadas que se resolveram incêndios e limparam as ruas, evitando muitos problemas para a saúde pública.

É, portanto, compreensível que estes canais tiveram um grande impacto na vida social dos antepassados, tornando-se parte essencial do seu quotidiano. Foram, por isso, uma instituição que causava, sempre, preocupação a todos os habitantes, existindo uma forte aproximação entre ambas as partes. É, também, percetível que têm vindo a evoluir, conjuntamente com a sociedade madeirense, sendo que a influência na melhoria da qualidade de vida da população é visível. A sua importância e valorização traduziu-se, igualmente, no surgimento de alguns conflitos aquando da sua utilização, manutenção e construção. O seu valor manifestou-se na necessidade de construção de toda a legislação relativa a este assunto, sendo, também, um meio para tentar colmatar conflitos, dúvidas e pontos fulcrais.

Tal relevância mantem-se até os dias de hoje, tendo, inclusivamente, vindo a crescer e a influenciar a sociedade, economia e ambiente. Não só continuam a

304 Baptista, João (2013), «A Água na Ilha da Madeira», in Revista Vegueta, Anuario de la Facultad de

desempenhar o seu primordial objetivo de irrigar os terrenos aráveis de toda a região, permitindo a continuidade da prática de agricultura, como são, ainda, a principal forma de aproveitamento dos recursos hídricos e utilizadas para novas funções. São exemplo as centrais hidroelétricas e hidroagrícolas que mudaram, por completo, a realidade madeirense, como já foi explanado. Para além disso, são a imagem promocional da Madeira a nível internacional, tendo uma grande influência na maior indústria do mundo, o turismo, sendo, por isso, essencial para toda a estratégia regional. De facto, “há estudos de investigação realizados no início do século XXI que evidenciam que cerca de 60% dos turistas que visitam a Madeira é para realizarem percursos nas levadas da Ilha e nas veredas que existem principalmente nas áreas montanhosas”305.

As levadas desempenham, neste sector, um papel crucial não só pela beleza das suas construções como por serem as principais vias de acesso aos lugares mais peculiares da ilha. Permitem muitos passeios que nos presenteiam com elementos únicos existentes na floresta Laurissilva, desde a sua fauna à sua flora endémica, e que permitem a observação de extraordinárias paisagens humanizadas e outras ainda intocáveis pelo homem. Estes canais possibilitam, assim, o acesso a um património natural único com um valor científico e cultural incalculável306. Mais recentemente, as levadas têm sido

escolhidas como lugares de excelência para atividades desportivas e lúdicas. São, também, fonte de inspiração para escritores, fotógrafos, entre muitos outros que não resistem em contemplar os seus encantos e engenho.

Apesar de ser difícil demonstrar, neste trabalho, toda a importância e relevância das levadas da Madeira, por ser um assunto amplo, é de salientar que estas são parte essencial da imagem da ilha, da sua economia, de toda a sociedade, da agricultura, da história, das tradições e da cultura, de Portugal e até do Mundo. São possuidoras de uma enorme relevância cultural e natural com um valor estético incalculável, destacando-se de todas as construções no mundo pela sua autenticidade funcional e escala, pela sua construção distinta, quer pelas altitudes como pelas técnicas que foram sendo utilizadas e aperfeiçoadas durante vários séculos. Graças a elas surgiu um conjunto de elementos patrimoniais únicos, como é o exemplo dos relógios d’água, detentores de uma essencial função na divisão e distribuição da água de regadio, dos lavadouros, dos primeiros

305 Baptista, João (2013), «A Água na Ilha da Madeira», in Revista Vegueta, Anuario de la Facultad de

Geografía e Historia, 13, Aveiro, Universidade de Aveiro, 31-42, p. 34.

306 Quintal, Raimundo (2011), «Levadas da Ilha da Madeira. Da epopeia da água ao nicho de turismo

fontenários, dos moinhos, das casas dos levadeiros, etc.. (figura 15). Influenciaram, ainda, a toponímia da RAM, são criadoras de histórias e lendas, entre muitos outros. Compreende-se, pois, que a rede de levadas da Madeira e todo o património circundante é, hoje, fulcral para a promoção e o desenvolvimento local e regional.

Figura 15. Relógio d'Água (Caniço) e casa de levadeiro (Calheta - Levada do Rabaçal)

São, inquestionavelmente, um elo de ligação com a nossa história e os nossos antepassados, fonte de inspiração e de progresso. São, sem dúvida, uma mais-valia para todos, não só pela sua utilidade como para compreendermos todo o processo histórico da sociedade madeirense, para além de serem um exemplo vivo de como o homem foi capaz de se adaptar e superar as adversidades apresentadas pela natureza sem nela interferir prejudicialmente. Para a população representam um conjunto de memórias e vivências que contribuíram, e continuam a contribuir, para uma marca identitária e diferenciadora, sendo, por isso, acarinhadas como uma das maiores riquezas que detêm. Para findar, podemos, ainda, referir que a rede de levadas da Madeira demonstra e é exemplo de um património sustentável e funcional.