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PARTE I – CONCEITO E ENQUADRAMENTO TEÓRICO: PATRIMÓNIO

Capítulo 3 – As levadas da ilha da Madeira: breve historial

3.3 Os proprietários das levadas, a sua administração e legislação

3.3.1 Levadas Privadas

As levadas privadas surgiram com a necessidade dos proprietários de terras levarem a água até aos seus terrenos para obterem uma agricultura produtiva. Apercebendo-se de que os solos irrigados geravam uma maior produção e uma melhor qualidade dos produtos agrícolas, foram muitas as iniciativas por parte de privados,

244 ARM, Relatório de avaliação de documentação acumulada do IGH, 198, separata dos decretos n.º 33158,

33159, 36136 e 38722, Serviços Hidroagrícolas, processo n.º R/1-37.2.

245 Ibidem. 246 Ibidem.

247 Costa, Manuel (1950), «O aproveitamento da água na ilha da Madeira», in Revista das Artes e da

senhorios, que contribuíram para o surgimento de muitas levadas por toda a ilha. Visto entrarem com o capital para as construções dos aquedutos (muitas vezes os proprietários juntavam-se formando grupos para terem capacidade financeira para as dispendiosas construções), passaram a considerar-se donos das levadas e, consequentemente, acabaram, também, por se julgarem eternos usufrutuários e senhores das nascentes que alimentavam o caudal das mesmas (anexo C)248. Coube, desta forma, aos senhores, por

possuírem direitos de propriedade das mesmas, a administração das levadas privadas. O Estado foi perdendo, assim, o poder imperativo inicial do século XV, passando a administração das levadas para os juízes e comissões eleitas e compostas pelos heréus. Deste modo, os heréus foram sendo respeitados e considerados como proprietários das águas e das levadas e não somente como usufrutuários, ficando responsáveis de as conservar e construir com o seu capital. Consequentemente, surgiram alguns abusos que colocaram em causa a prática da agricultura em alguns sítios, pois quem não era possuidor de prédios, podia adquirir parte destas águas e explorá-las a preços exorbitantes, sendo colocada em causa o “princípio básico da vinculação da água à terra”249. Tal situação

contribuiu para que, muitas vezes, na mesma freguesia houvesse uma disparidade de preços entre as águas, ou seja, a água privada chegava a ser arrendada pelo dobro da do Estado250.

Neste âmbito, foram surgindo associações de heréus das levadas, sendo reconhecidas legalmente e possuindo estatutos próprios. Geralmente, estas eram, e são, compostas por uma assembleia geral dos consortes e, também, dos seus coproprietários, que visa, de forma legítima, autorizar a compra de bens imobiliários necessários por parte dos juízes e comissões diretoras, tendo como objetivo e destino um acrescentamento ou melhoramento destas para obter um maior rendimento dos mananciais dessas levadas, ou

248 A título de exemplo de como tal situação perdurou ao longo do tempo, encontra-se, em anexo, um

conjunto de ofícios expondo uma situação de utilização da água de uma nascente, da qual o Sr. José de Jesus e Freitas se achava proprietário (ARM, Relatório de Avaliação de Documentação do IGH, 197, processo n.º R/1-29.3, ofício de Sílvia Freitas para o chefe de gabinete de Sua Excelência o Presidente do Governo da Região Autónoma da Madeira, Funchal, 1981; ARM, Relatório de Avaliação de Documentação do IGH, 197, processo n.º R/1-29.3, ofício enviado ao senhor Presidente do Governo da Região Autónoma da Madeira, Santo António da Serra, 1981).

249 Fernandes, Filipa (2009), Levadas de Heréus na Ilha da Madeira. Partilha, conflito e memória da água

na Lombada da Ponta do Sol, Ponta do Sol, Câmara Municipal da Ponta do Sol, p. 49.

250 ARM, Direção das Obras Públicas da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 625, Liv, CT,

Trigo, Adriano Augusto (1907), Plano Geral de Distribuição e Arrendamento das Aguas da Levada da

Serra do Fayal para Irrigação das Freguezias do Caniço, São Gonçalo e Santa Maria Maior, Funchal, Direção das Obras Públicas.

seja, para preservá-las e conservá-las251. Para além disso, os agricultores (proprietários

e/ou coproprietários de uma levada), reunidos em associações de heréus, fazem, entre si, a distribuição das águas de uma dada levada, cobrando uma cota anual, proporcional à quantidade de água que cada um utilizará, sendo apenas suficiente para suportar as despesas de conservação dos canais252. Através, portanto, das associações de heréus, e

por os seus encargos financeiros não serem elevados devido ao pagamento de cotas pelos seus associados, os benefícios de irrigação alcançam o seu máximo253.

Estas associações, sem fins lucrativos, visam, normalmente, a recolha, canalização e distribuição de águas de rega pelos seus associados. Possuem receitas, como por exemplo as cotas pagas pelos associados, e donativos, uma assembleia geral, direção e conselho fiscal como órgãos, são detentoras, igualmente, de um regulamento geral interno onde constam os direitos e obrigações dos associados, as suas categorias e condições de admissão e exclusão, aprovadas pela assembleia geral (anexo D)254.

Estas associações possuem estatutos próprios que detêm como principal função regulamentar o uso das águas e levadas de forma a minimizar conflitos entre os seus usufrutuários e, também, para gerir e absorver um maior aproveitamento destas águas (anexo E)255. Existem, ainda hoje, levadas pertencentes a associações de heréus, embora

diminutamente256. Por outro lado, as levadas de um único dono acabaram por desaparecer,

muito pela exigente manutenção que estas acarretavam.

Num relatório apresentado pelo Visconde de Vale Paraíso, presidente da Comissão Delegada da Liga das Levadas, é possível compreender o rigor e o modo como eram administradas as mencionadas comissões e quais os seus objetivos257. Resolvendo

251 Art. 1.º, Lei de 26 de julho de 1888, in BMF, Jesus, Quirino Avelino (1898), «As águas e as levadas da

Madeira», in Revista Portugal em Africa, Vol. V, Lisboa, Companhia Nacional Editora, 83-127.

252 ARM, Direção das Obras Públicas da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 625, Liv, CT,

Trigo, Adriano Augusto (1907), Plano Geral de Distribuição e Arrendamento das Aguas da Levada da

Serra do Fayal para Irrigação das Freguezias do Caniço, São Gonçalo e Santa Maria Maior, Funchal, Direção das Obras Públicas.

253 Ibidem.

254 Em anexo, constam, a modo de exemplo, duas escrituras de associações de regantes (ARM, Estatutos

de Associações, Corporações de Culto, Confrarias e outras Associações Religiosas, Direção Regional da Administração Pública e Local, Cx. 2, n.º 7, Associação de Regantes da Levada dos Moinhos, 1988; ARM, Estatutos de Associações, Corporações de Culto, Confrarias e outras Associações Religiosas, Direção Regional da Administração Pública e Local, Cx. 4, n.º 33, Associação de Regantes da Levada da Madalena, 1997).

255 Em anexo, consta, a modo de exemplo, o Estatuto da Levada do Pico dos Irós da Freguesia de Gaula

(ARM, Estatutos de Associações, Corporações de Culto, Confrarias e outras Associações Religiosas – Governo Civil, Cx. 3, n.º 38, Estatutos da Levada do Pico dos Irós da Freguesia de Gaula, n.d.).

256 Quintal, Raimundo (2011), «Levadas da Ilha da Madeira. Da epopeia da água ao nicho de turismo

ecológico», in Revista AmbientalMENTEsustentable,1 (11-12), Lisboa, Universidade de Lisboa, 138-154.

257 BMF, Relatório apresentado pelo Visconde de Valle Paraizo, como presidente da Comissão Delegada

o Visconde ausentar-se da ilha, despediu-se do cargo de presidência, dando o seu parecer sobre a importância desta comissão. Segundo o mesmo, esta foi criada com o intuito de defender os interesses das levadas derivadas da Ribeira de Santa Luzia, principalmente as de D. Isabel, dos Moinhos e de Santa Luzia, que se encontravam ameaçadas, vítimas dos desvios das águas praticados nas zonas mais altas para terrenos junto à ribeira. Sendo que o objetivo era enriquecer os caudais e aumentar o rendimento das levadas já existentes, a comissão formou um serviço de vigilância de modo a prevenir a captação deliberada das águas. Dar o parecer sobre as receitas e despesas desta comissão era, simultaneamente, uma preocupação e objetivo. A comissão, sendo consciente do desaparecimento de documentação importante relacionada com as levadas coligadas, procurou reuni-las e arquivá-las para que, futuramente, pudessem-nas estudar.

Uma dessas levadas, a de Santa Luzia, é das mais antigas e importantes levadas particulares. Antes de ser privada, D. Manuel, num alvará datado de 1515258, percebendo

a importância desta para o seu meio envolvente, ordenou que o seu curso original nunca poderia vir a ser alterado. Mas já em 22 de março de 1485, D. Manuel havia decidido que a Ribeira de Santa Luzia não poderia ser dada a ninguém devido à sua relevância259.

Algumas destas comissões, ao criarem os seus estatutos, marcaram neles datas de quando e onde deveriam existir as reuniões para resolverem alguns assuntos de interesse geral. Curiosamente, as igrejas são referidas como sendo um lugar de encontro entre a administração e seus coproprietários. Sendo que a ida à missa, aos domingos, é uma prática comum a muitos madeirenses, geralmente estas reuniões tinham lugar no adro da igreja à saída da missa, onde todos os interessados, à sua vez, eram detentores da palavra para fazerem as suas propostas, reclamações e apreciações. A Levada dos Moinhos, na Ponta de Sol, é um exemplo no que concerne à preservação das tradições remotas, sendo que, ainda hoje, antes da entrada da água em giro, “os heréus reúnem-se no adro da Igreja da Lombada para eleger a comissão e dar de arrematação a levadagem”260. O mesmo

sucede-se com a Levada do Pico dos Irós, pertencente à freguesia de Gaula.

258 Silva, Padre Fernando Augusto da (1944), Levadas da Madeira, separata do artigo “Levadas” do

Elucidário Madeirense, 2.ª edição, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

259 Carta de D. Manuel, de 22 de março de 1485, in Melo, Luís (1972), «Tombo 1.º do Registo Geral da

Câmara Municipal do Funchal», António Aragão (dir.), Arquivo Histórico da Madeira, Boletim do Arquivo

Distrital do Funchal, vol. XV, série I, Funchal, Eco do Funchal.

260 Raimundo, Quintal (2010), «Madeira Levadas: The Water Ways to Discover Nature», in Henriques,

Eduardo, Sarmento, João & Lousada, Maria (eds.), Water and Tourism: Resources Management, Planning