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O Aparecimento da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos

PARTE I – CONCEITO E ENQUADRAMENTO TEÓRICO: PATRIMÓNIO

Capítulo 3 – As levadas da ilha da Madeira: breve historial

3.3 Os proprietários das levadas, a sua administração e legislação

3.3.2 Levadas do Estado

3.3.2.1 O Aparecimento da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos

terrenos, tinham uma outra utilidade significativa, sendo esta a produção de energia, fazendo mover e funcionar os moinhos, engenhos e serras de água. A exemplo disso, Gaspar Frutuoso menciona a existência de uma levada que fazia mover cinco moinhos na proximidade da Ribeira de Santa Luzia272. Segundo Orlando Ribeiro, “em 1452 foi

instalada a primeira fábrica de açúcar, acionada pela água dos aquedutos (levadas) que se multiplicaram para irrigação das plantações de cana-de-açúcar”273.

Naturalmente, a energia era a força motriz exercida pela água transportada pelos aquedutos. Neste sentido, é possível compreender que, para além destes canais serem fundamentais para irrigar os terrenos de toda a ilha e contribuir, assim, para a subsistência da população, tiveram utilidade noutras vertentes, também, fulcrais. As levadas passaram, por consequência, a ser vistas como uma “ferramenta” multifuncional. Foi essa característica polivalente que permitiu a introdução de uma nova energia na ilha (hidroelétrica).

Tal como enfatiza Orlando Ribeiro, “a irrigação na Madeira conta-se entre as grandes vitórias alcançadas pelo homem sobre o clima. Além disso, as levadas representam uma fonte de energia importante”274. Como já referimos anteriormente, na

década de quarenta do século XX, o Estado apercebeu-se, pois, da necessidade de interferir sobre os recursos hídricos da ilha.

A criação da CAAHM foi uma das vias utlizadas, projetando um plano, cujo estudo durou de 1944 até 1947, que visava selecionar e regulamentar os problemas dos

271 ARM, Direção das Obras Públicas da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 625, Liv, CT,

Trigo, Adriano Augusto (1907), Plano Geral de Distribuição e Arrendamento das Aguas da Levada da

Serra do Fayal para Irrigação das Freguezias do Caniço, São Gonçalo e Santa Maria Maior, Funchal, Direção das Obras Públicas.

272 Frutuoso, Gaspar (1968), Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de

Ponta Delgada.

273 Ribeiro, Orlando (1985), A ilha da Madeira até meados do século X, Lisboa, Instituto da Cultura e

Língua Portuguesa, p. 48.

aproveitamentos hidráulicos da região assim como de alguns conflitos que se faziam sentir. O Estado, tendo conhecimento das condições próprias da ilha275, muito graças ao

engenheiro Manuel Rafael Amaro da Costa, presidente da mencionada comissão, da existência de muitos e abundantes caudais acima dos 1000 metros e das potencialidades das levadas, apercebeu-se de que a solução para os problemas existentes na costa sul passaria por captar a água existente, em fartura, no norte da ilha e que, na sua maioria, não era aproveitada, perdendo-se no oceano. Costa projetou um plano que, para além das muitas levadas que seriam tiradas entre os 600 e 1000 metros de altitude, seriam, também, construídas centrais hidroelétricas e hidroagrícolas, fazendo com que a mesma água se tornasse mais produtiva276.

A comissão, planeando levar as águas de norte a sul, viu oportunidade para rentabilizar ainda mais os benefícios das levadas e da água. Deste modo, ao construírem aqueles que seriam os maiores e mais extensos aquedutos da ilha, fizeram-se centrais hidroelétricas e hidroagrícolas, a cerca de 600 metros de altitude, captadoras das águas levadas, tirando o maior proveito possível pelas centrais, deixando, depois, a água percorrer o seu curso até aos terrenos que se encontram abaixo delas.

O plano a ser executado pela CAAHM, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 33 158, de 21 de outubro de 1943277, era constituído por várias fases. A preparação deste projeto

fundamentou-se no levantamento topográfico duma área com, aproximadamente, 20 mil hectares o que, numa ilha com uma orografia tão marcada, não foi fácil. Num trabalho de campo tão complexo, foram observados quais os terrenos que tinham de ser expropriados (cerca de 6 a 8 mil parcelas), foram tiradas muitas medidas, analisados os tipos de solo, construídos abrigos, entre muitos outros trabalhos e estudos que contribuíram para uma nova fase das levadas da Madeira278.

O aludido plano acabou por atribuir novamente ao Estado o domínio sobre as levadas e nascentes da Madeira, nomeadamente as que se encontravam desvinculadas à terra e eram comercializadas279. Mantendo-se a continuidade das levadas de heréus e das

275 Referidas no capítulo segundo deste trabalho.

276 Quintal, Raimundo (2011), «Levadas da Ilha da Madeira. Da epopeia da água ao nicho de turismo

ecológico», in Revista AmbientalMENTEsustentable,1 (11-12), Lisboa, Universidade de Lisboa, 138-154.

277 ARM, Relatório de avaliação de documentação acumulada do IGH, 198, separata dos decretos n.º 33

158, 33 159, 36 136 e 38 722, Serviços Hidroagrícolas, processo n.º R/1-37.2.

278 Costa, Manuel (1951), «O Aproveitamento da Água na Madeira. I-A marcha da obra através do tempo»,

in Revista Das Artes e da História da Madeira, 5, Funchal, Sociedade de Concertos da Madeira, 14-21.

associações privadas, o Estado procurou evitar que a utilização das levadas atingisse taxas incomportáveis280.

Da primeira fase, cujos trabalhos se iniciaram em junho de 1947 e findaram a 5 de julho do ano de 1953, fizeram parte tanto a Central de Salazar, a levada do Arco da Calheta-Ponta do Pargo, a levada de Machico-Caniçal, assim como a Central Hidroelétrica da Calheta. A levada do Norte faz, ainda, parte desta etapa, tendo sido inaugurada a 1 de junho de 1952, passando a irrigar muitos dos terrenos que se encontravam incultos.

A 3 de maio de 1953, é inaugurada a Central Hidroelétrica da Serra de Água281.

Foi um grande passo na iluminação elétrica de muitas casas e ruas da ilha, principalmente entre a Ribeira Brava e o Funchal282 (figura 12).

Figura 12. Central Hidroelétrica da Serra de Água (retirado do site da Empresa de Eletricidade da Madeira)

Foi uma obra dispendiosa que transformou a água em luz e em força, contribuindo para a modernização da ilha283. Neste sentido, as levadas tiveram um papel fundamental

para a edificação e funcionamento desta central, transportando, a céu aberto, a água pelos lugares mais inacessíveis, atravessando as montanhas nuns 16 quilómetros subterrâneos para abastecer um tanque com 1500 metros cúbicos na

Encumeada, a mil metros acima do mar, e daí, afluindo pelo cano branco de 835 metros de extensão e sessenta centímetros de diâmetro, cai do alto de 425 metros e batendo 750 vezes por minuto as pás da turbina vivificando noite e dia a gleba do agricultor ao longo de 35 quilómetros de aqueduto que daqui se estende até às portas

280 ARM, Relatório de avaliação de documentação acumulada do IGH, 198, separata dos decretos n.º 33

158, 33 159, 36 136 e 38 722, Serviços Hidroagrícolas, processo n.º R/1-37.2.

281 Denominada, igualmente, de Central de Salazar.

282 Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos (1953), Central de Salazar, Funchal, Junta

Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

do Funchal, vai criar e distribuir riqueza, conforto e bem-estar, por milhares e milhares de pessoas, que mal suspeitam da sua origem e criação284.

Após a passagem da água pelas turbinas da central era, e é, encaminhada até uma pequena barragem situada nas suas proximidades, irrigando, graças a um aqueduto, os terrenos entra a Ribeira Brava e Câmara de Lobos285.

Já no concelho da Calheta, inaugurou-se, a 5 de julho de 1953, a Central da Calheta, dando término à primeira fase do plano da CAAHM286 (figura 13).

Figura 13. Central Hidroelétrica da Calheta

As grandes obras da primeira fase, que procuraram, também, melhorar e beneficiar a agricultura na Calheta, contribuíram para um aumento da área do terreno arável do concelho, e da ilha, tendo-se refletido positivamente na economia e originado um impagável benefício ao nível da produção elétrica. A Central da Calheta era alimentada pelas águas provenientes das quedas do Paul da Serra, Rabaçal e Rocha Vermelha, situando-se a 658 metros acima do nível do mar. Esta central beneficiou das águas dos canais mais antigas como as da levada particular do Pico da Urze e as do ramal do Arco da Levada Nova do Rabaçal, assim como dos caudais das levadas da Azenha, dos Moinhos, da Senhora e, ainda, da Levada Velha do Rabaçal287. Algumas destas sofreram

alterações e melhoramentos visto não terem capacidade para transportar a quantidade de água de que se precisava. Juntas, e com as melhorias realizadas, originaram o caudal de

284 Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos (1953), Central de Salazar, Funchal, Junta

Geral do Distrito Autónomo do Funchal, p. 20.

285 Ibidem.

286 Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (1953), Levada e Central da

Calheta, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

825 litros por segundo, muito mais que os anteriores 525 litros por segundo que percorriam as antigas levadas do Rabaçal e de heréus. Junto à Central da Calheta foi construído um pequeno reservatório de 2800 metros cúbicos, tendo sido mantido o direito de propriedade das águas particulares, geridas através do giro sem que os proprietários (heréus) tenham sofrido mais encargos do que aqueles que, anteriormente, possuíam. Assim, cerca de 15 mil regantes e muitos terrenos beneficiaram dos melhoramentos executados pela comissão. A construção de 190 quilómetros de levadas, incluindo as secundárias, com 16 quilómetros subterrâneos, foi uma das melhorias realizadas, fazendo com que o aproveitamento das águas da Madeira fosse maior, com um caudal de cerca de 900 litros por segundo288.

Segundo o Dr. Júlio Esmeraldo de Gouveia, existiam sérios problemas sanitários devido às levadas e nascentes encontrarem-se em péssimo estado, representando um problema grave para a saúde pública289. Porém, o Eng.º Amaro da Costa enfatizou que

foi através da intervenção da CAAHM que tais problemas se solucionaram, uma vez que, de acordo com o mesmo, os proprietários das levadas particulares e respetivas associações não possuíam meios para financiar as necessárias obras e resolver a imparcialidade existente sobre os legítimos direitos dos heréus antigos290.

A Central da Calheta e a de Salazar, bem como as novas levadas, trouxeram para a ilha uma nova forma de vida aos seus habitantes. Este conjunto de obras seriam irrealizáveis através dos privados pois, financeiramente, foi muito exigente291.

A estas centrais seguiram-se mais duas que contribuíram para que 15% da energia elétrica consumida pela ilha fosse produzida, nomeadamente a da Ribeira da Janela e a da Fajã da Nogueira292 (figura 14). Da segunda fase do plano da Comissão fazem parte o

troço entre a Ponta Delgada e o Porto da Cruz e o troço entre o Funchal e Machico. Nesta fase incluiu-se, ainda, a perfuração do furado dos Tornos.

288Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (1953), Levada e Central da

Calheta, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

289 Discurso do Dr. Júlio Esmeraldo de Gouveia, Presidente da Câmara Municipal da Calheta, in Comissão

Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (1953), Levada e Central da Calheta, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal

290 Discurso do Presidente da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, Eng.º

Amaro da Costa, in Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (1953), Levada

e Central da Calheta, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

291 Idem.

292 Quintal, Raimundo (2013), «Levadas da Madeira, monumentos criados por heróis anónimos», in Revista

Figura 14. Centrais Hidroelétricas da Ribeira da Janela e da Fajã da Nogueira

Como é possível percecionar, o mencionado plano procurou aumentar a área de regadio e criar centrais hidroelétricas que permitiram fornecer eletricidade a uma grande parte da população. António Camacho Teixeira de Sousa, enquanto presidente da Junta Geral do Funchal, comparou a indústria hidroelétrica à agricultura no aspeto em que ambas estão, intimamente, dependentes das chuvas que regulam o seu rendimento293.

Hoje, sabe-se que as duas dependem não só das chuvas mas de todos os fatores referidos no capítulo segundo deste trabalho. Compreende-se, assim, que, embora a agricultura e a indústria hidroelétrica sejam muito diferentes, estas estão dependentes da mesma instituição – as levadas. O presidente da Junta Geral do Funchal salientou que, ao contrário da chuva que ninguém pode controlar, o revestimento florestal das serras, que interfere muito na quantidade de água, é da responsabilidade e está ao alcance do homem. Logo, as levadas, que dependem de todos os habitantes da ilha, são beneficiadas mas, em contrapartida, retribuem duplamente, melhorando a qualidade de vida de todos, apresentando soluções para alguns problemas sociais, aumentando o rendimento agrícola e de muitas indústrias e dando energia para o funcionamento das centrais.

Em contrapartida, e apesar de a Comissão ter procurado não afetar os direitos dos heréus, acabou por tomar posse de algumas águas privadas, suscitando alguns conflitos. Um dos mais marcantes, e dos mais recentes, ocorreu em 13 de maio de 1963 na Ponta do Sol. Os heréus da Levada do Moinho consideraram-se ultrajados pelo facto de a CAAHM querer retirar uma fração da água que corria na Ribeira da Ponta do Sol para abastecer a Levada Nova que se encontra acima da Levada do Moinho. Para esta associação, a levada privada sairia prejudicada, significando o seu fim, onde os heréus

293 Discurso do Eng.º António Camacho Teixeira de Sousa, presidente da Junta Geral do Funchal in

Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos (1953), Central de Salazar, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal.

teriam de pagar a água mais cara294. Para evitar qualquer tentativa de desvio das águas

para a Levada Nova, a associação colocou sob vigilância a madre das levadas durante cerca de quatro meses. Este caso acabou por ter um desfecho trágico, acontecendo a morte de uma rapariga, vítima de um tiro disparado por um polícia295. Nesta pequena história,

aplica-se a velha expressão “um caso de vida ou de morte”, onde a água e levadas significam, para os habitantes, a sua sobrevivência.

O plano levado a cabo pela comissão é de longe uma das iniciativas do Estado que maior impacto teve, pela sua crucial importância e pela magnitude do trabalho que se verificou. Para além de muitos empregos, permitiu a origem de novas indústrias na ilha, sendo economicamente e socialmente muito benéfico. Quanto às levadas, fez reviver a sua relevância para a Madeira, tendo contribuído para a sua ampliação, melhoramento e aproveitamento.

As levadas realizadas por esta comissão destacam-se pelas suas extensões, pela altitude a que se encontram, assim como pela vastidão que os furados alcançaram e, ainda, pelo curto espaço de tempo em que foram construídas. Tais construções, que abasteciam, simultaneamente, as centrais hidroelétricas e, ainda, os terrenos agrícolas, trouxeram uma nova realidade até então desconhecida, verificando-se uma enorme evolução, visível pelo facto de, em pouco tempo, terem sido construídos cerca de 400 quilómetros de levadas. É de salientar que mesmo algumas das antigas levadas tiveram uma participação ativa neste processo modernizador. Ao incluí-las neste plano, o Estado passou a indemnizar os heréus que as usavam pela não utilização da água a que tinham direito296.

Todo este processo foi uma estratégia que, de facto, mudou por completo a realidade e vida dos habitantes da ilha, aproveitando, mais eficazmente, um dos poucos recursos aí existentes.

294 Quintal, Raimundo (2011), «Levadas da Ilha da Madeira. Da epopeia da água ao nicho de turismo

ecológico», in Revista AmbientalMENTEsustentable,1 (11-12), Lisboa, Universidade de Lisboa, 138-154.

295 Ibidem.

296 Em confirmação dessa situação, encontrou-se, a título de exemplo, um ofício endereçado à firma Pereira

& Norberto, Lda., remetido por Sílvia Freitas, dando a informação de que quando as levadas antigas fossem incorporadas na nova rede de serviços, os heréus que utilizavam a sua água passariam a ser indemnizados pela não utilização a que tinham direito (ARM, Relatório de Avaliação de Documentação do IGH, 198, R/1-2.15., Ofício de Sílvia Freitas endereçado à firma Pereira & Norberto, Lda., Sítio da Terça, Água de Pena, 17 de novembro de 1982).