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A valorização, preservação e conservação

PARTE II – AS LEVADAS DA ILHA DA MADEIRA E O PATRIMÓNIO

Capítulo 4 – As levadas da ilha da Madeira como Património Cultural

4.3 As levadas da ilha da Madeira como Património Cultural

4.3.1 A valorização, preservação e conservação

De acordo com o que já abordámos, as levadas são muito importantes para a pequena ilha da Madeira, tendo contribuído, desde o século XV, para a sua evolução e desenvolvimento. Porém, reconhecer a sua importância não é suficiente, existindo uma constante necessidade de valorizá-las, preservá-las e repará-las. Por este motivo, e tendo proposto e relacionado as levadas com o património cultural, é preciso defender não só a construção em si como tudo aquilo que a rodeia. Primeiramente, há a necessidade de se proteger a ilha, ou seja, a geologia, a vegetação, a fauna, elementos a que já nos referimos, através de medidas sustentáveis e políticas que procurem proteger e salvaguardar, ao máximo, todos os elementos da natureza que, no fundo, são o que suportam toda a rede. É necessário, ainda, e talvez seja este o principal causador de problemas, sensibilizar a

353 Lamas, Maria (1956), Arquipélago da Madeira: maravilha atlântica, Funchal, Editorial Eco do Funchal,

população para que tenha uma atitude cívica exemplar, o que pode ter como ponto de partida a educação nas escolas e seios familiares.

Surgem, deste modo, algumas questões sobre a quem cabe a responsabilidade e o dever de satisfazer tais exigências. Embora se possa pensar que as levadas públicas cabem ao próprio Estado e as privadas aos seus heréus, essa é uma verdade inadequada.

Num mundo cada vez mais globalizado, onde as múltiplas sociedades se cruzam, interagindo umas com as outras, existe uma necessidade constante de nos identificarmos e diferenciarmos. Se a população vê as levadas como um dos principais elementos do seu património, como algo que a diferencia e destaca, logo tem uma responsabilidade para com as mesmas, independentemente de quem assume a sua administração. Depende de todos os habitantes zelar pela sua divulgação, valorização e preservação, pois só assim é possível perpetuar este elemento patrimonial único. Quando falamos de todas estas necessidades, é fulcral compreender que, para que este objetivo seja atingido, é necessário, primeiro que tudo, conhecer. Só conhecendo e investigando acerca de todo o processo histórico destes canais e do que são hoje, percorrendo-os com atenção, somos capazes de agir. Como já referimos no primeiro capítulo deste trabalho, é indispensável conhecer o património para reconhecer-se como parte dele e para valorizá-lo, sendo que, apenas através de uma atitude interventiva, é possível dar resposta às necessidades desta instituição.

Com uma sociedade madeirense cada vez mais urbana, acontece que esta responsabilidade social desvanece pela falta de contacto direto e frequente com este património que está, maioritariamente, situado nas zonas rurais. Parece-nos que, por vezes, as levadas só são respeitadas e vistas como algo fundamental apenas para aqueles que as utilizam diretamente, cingindo-se, predominantemente, aos agricultores. Muitas vezes, são os próprios usuários diretos da levada que, por precisarem muito dela, vão à procura da água e fazem a sua limpeza para que possam irrigar os seus terrenos, embora a responsabilidade destas tarefas estejam a cargo do levadeiro reconhecido por quem as administra.

A reparação destes canais de irrigação (pertencentes ao Estado), até há pouco tempo, era feita pela IGA. Esta entidade do Estado, nos últimos 9 anos, veio a recuperar muitos quilómetros de levadas, bem como a melhorar e construir novas infraestruturas com o principal intuito de melhorar o transporte das águas.

Compreende-se, pois, que as levadas e águas da Madeira continuam a ser cruciais nas políticas da região.

O Decreto -Lei n.º 77/2006, de 30 de março, referido aquando da abordagem das levadas na atualidade, acaba por favorecer, principalmente, as levadas do Estado na medida em que, existindo um maior controlo na qualidade e gestão das águas, existe uma maior preocupação a respeito da sua limpeza.

Pelo que já referimos, é percetível que o Estado tem tido alguma intervenção no que diz respeito à sua preservação, divulgação e valorização. O que podemos questionar é acerca do modo como toda a política em torno das levadas tem sido exercida e se toda a legislação relativa a este assunto tem cumprido o seu objetivo. Na nossa ótica geral, as levadas até têm vindo a ser valorizadas, recuperadas, preservadas e divulgadas, mas, com o decorrer deste trabalho, foi percetível que existe um desequilíbrio, na medida em que esta situação se cinge a um número muito reduzido de canais que, por serem mais conhecidos, têm sido muito beneficiados comparativamente com outros. Se o Estado e a população reconhecem as levadas como parte importante e integrante do seu património cultural, deverão ter uma atitude equilibrada, ou seja, é fulcral pensar em toda a rede e não apenas nas mais conhecidas pois acabaria por diminuir o seu valor patrimonial.

Tal só demonstra que as levadas não têm sido tratadas com a atenção necessária, indicando-nos que as temos como um dado adquirido que se valoriza e mantem por si mesmo. Esta situação talvez tenha vindo a suceder devido à existência de muitas levadas na ilha, mas, se analisarmos bem a situação, a verdade é que existem, também, muitos elementos relacionados consigo que se têm vindo a perder. Alguns desses componentes, se não forem atempadamente salvaguardados, cairão no esquecimento e no desconhecimento das gerações futuras. Nos últimos anos, tem-se verificado, por exemplo, que muitos dos canais estão caindo no desuso e abandono, degradando-se e desaparecendo. No desenvolvimento deste trabalho, foi possível concluir que tal situação acentuou-se com a transferência de muitas levadas privadas para o domínio do Estado. Com o Estado a ter, cada vez mais, uma ação interventiva, o que tem, por outro lado, aumentado a captação e distribuição de uma maior quantidade de água, têm sido muitos os usos, costumes e tradições que se têm perdido. Quando as levadas eram administradas pelos seus heréus existia todo um sistema de irrigação próprio, um conjunto de regras e normas estabelecidas através dos usos e costumes e que eram respeitados em toda a ilha, tendendo, alguns destes, a desaparecer. Este sistema de irrigação singular, representativo dos costumes e modos de vida dos nossos antepassados e influenciador dos estilos de vida de hoje, engloba elementos interessantes como os relógios d’água que eram utilizados para fazer a distribuição precisa da água em giro e que, hoje, são poucos os exemplares

existentes, o búzio que era tocado pelo levadeiro para sinalizar a distribuição da água de irrigação, a ampulheta, a lanterna de rega354 e, até, o próprio dialeto da região que contem,

ainda, muitas expressões exclusivas. É crucial referir que estes elementos estão a ser colocados em causa, havendo o risco de se perderem e de não perpetuarem, o que seria uma pena devido ao seu valor e autenticidade.

Como foi referido no ponto anterior, houve, no ano de 1994, uma proposta com o intuito de classificar as levadas como Património Mundial da Humanidade, sem ter podido avançar. Mais recentemente, o partido «Os Verdes» propuseram, na Assembleia da República, a sua recandidatura. Este tipo de iniciativas valorizam e chamam a atenção da população para as levadas, através, também, da promoção e mediatismo que daí surgem. Foram, ainda, ações muito importantes, pois é exigido pela UNESCO que o Estado demonstre um empenho total na preservação do património em causa, onde se pretende que o mesmo crie medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras apropriadas com o propósito de proteger o bem cultural.

Atualmente, as levadas são vistas como uma assunto apartidário e transversal às várias épocas que teve início graças a D. João I. São um bem pertencente a todos e para todos e, por isso, são vistas como uma herança importante para o âmbito regional e nacional, com uma relevância inquestionável para um vasto leque de sectores, espelhando a resiliência do homem, a sua relação com a água e a vontade de vencer a natureza.

Para valorizar, conservar e recuperar este património valioso existe a necessidade de compreender que é fulcral e essencial ter uma atitude envolvedora e interventiva de toda a sociedade, entidades e forças, como associações, autarquias, universidades, entre outras, e que juntas criem um conjunto de ideias e estratégias que defendam as levadas de modo a garantir a sua prosperidade no futuro assim como permitirem que as gerações vindouras as conheçam, estudem, utilizem e as contemplem.

Só através de uma valorização constante, de uma preservação, de uma monitorização assídua e de uma recuperação cuidada é possível salvaguardá-las. Para além das medidas acima supracitadas, consideramos que existem alguns pontos essenciais, como um levantamento das levadas existentes na Madeira e o seu estado de conservação, de documentação relacionada, de elementos consigo interligados, um estudo ordenado e bem planeado, um conjunto de políticas sustentáveis e bem delineadas para a sua valorização, preservação e recuperação sem que afetem a sua autenticidade, ou seja,

forma de conceção, materiais utilizados, tradições e técnicas de construção e regadio, o sistema ancestral da distribuição das águas e a especificidade legislativa que só as levadas da Madeira possuem. É um trabalho de médio a longo prazo que deve ser bem traçado por ser moroso e que seria uma mais-valia para termos um maior conhecimento sobre este assunto.

Dar a conhecê-las ao exterior é, também, uma estratégia fundamental. Para tal, é indispensável uma atualização da sinalética existente que deve ir ao encontro e de acordo com a internacional, para que se minimizem algumas das suas problemáticas como a segurança. É possível mencionar que as levadas carecem, igualmente, de uma maior atenção por parte daqueles que as gerem, devendo existir debates sérios que visem criar soluções imediatas e com a participação de todos. Para além disso, é opinião que a educação tem um papel relevante e, talvez, solucionador. Os docentes das escolas da Madeira têm o dever e papel de adequar o currículo às crianças da região, ou seja, deverá dar-se uma maior importância àquilo que existe no seu meio local, tornando as aprendizagens mais significativas. As crianças aprenderão, assim, a dar maior valor e a conhecer as levadas, a sua necessidade de construção, o seu papel no passado e presente, fomentando, consequentemente, a sua valorização, conservação e preservação futuras. As universidades são, de igual forma, imprescindíveis para tal promoção. Tal é o caso da Universidade da Madeira que organiza e divulga, regularmente, passeios a pé em levadas e veredas da ilha. Não é possível, identicamente, esquecer as pessoas mais idosas e aqueles que contactam diariamente e por razões de necessidade com estes aquedutos, uma vez que, com eles, é possível aprender e descobrir tanto.

Para finalizar, entende-se que, primeiro, é necessário preservar o bem-estar das levadas para que sejam evitadas, ao máximo, recuperações que, por vezes, são desajustadas, para que as tenhamos dignas de serem apresentadas ao mundo como um elemento de um valor incalculável e um exemplo a seguir por todos. Se, ao longo do tempo, os nossos antepassados superaram barreiras que pareciam inultrapassáveis e venceram todas as dificuldades penosas e duras para que hoje pudéssemos utilizar e contemplar uma obra de engenharia tão magnífica, não deverá ser assim tão difícil, hoje, darmos, também, o nosso contributo, salvaguardando esta instituição que tanto nos tem dado.